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Gestão emocional – Um veterinário também chora?

Gestão emocional - Um veterinário também chora?

Prognósticos difíceis, eutanásia… Enquanto tentam dar resposta aos problemas de saúde de um animal, os médicos veterinários debatem-se outras questões, mais subjetivas e imprevisíveis: as emoções. Saber lidar com o que sentem e com as reações dos donos dos animais é o desafio que se coloca desde o primeiro dia.

Numa profissão exigente como a exercida por médicos veterinários nem sempre é fácil distanciar-se das situações a tratar. As emoções estão lá e é preciso geri-las da melhor forma, em prol da saúde do animal e do próprio médico veterinário. “A grande diferença para a Medicina Humana, na minha opinião, tem a ver com o critério com o qual cada pessoa se baseia para seguir essa via profissional. Gostar de animais é obviamente importante para seguir esta carreira, mas saber gerir emoções é tão ou mais importante”, afirma Rui Bernardino, médico veterinário no Jardim Zoológico de Lisboa. “Talvez na minha prática diária a frustração seja o principal desafio emocional. Perceber que colocar em prática aquelas que consideramos as melhores práticas, equipamentos e tecnologias nem sempre é suficiente”, revela.

Momentos difíceis

“Por mais racionais que sejamos a emoção é incontornável, mas a função do diretor clínico é transmitir serenidade, objetividade e rumo. Temos de nos adaptar aos diferentes tipos de cliente com que nos deparamos diariamente, mas isso é uma das principais funções de um prestador de serviços em qualquer área”, recorda Sérgio Alves, do Hospital Veterinário de Gaia. A eutanásia de um animal é, do ponto de vista do proprietário, o pior receio, mas clinicamente a melhor solução. “Quando esgotamos todas as possibilidades temos de recorrer à eutanásia. Na hora pode ser um choque. A decisão deve ser tomada pelo dono de modo a que este não fique com esse peso na consciência”, descreve Adriana Estrela, da Clínica Veterinária de Pardilhó: “é uma medida drástica e é preciso dar tempo às pessoas para refletir. Muitas vezes é a própria pessoa que diz: ‘chegou o dia, a hora’”.

Outros fatores podem dificultar o distanciamento emocional, como o elo médico-paciente. “Já trabalho há anos suficientes para ter acompanhado animais desde bebés até à altura da morte e isso cria uma ligação”, explica Adriana Estrela. Já Rui Bernardino reconhece existir uma grande proximidade com os animais que trata, “alguns pelo que representam, outros pelo inquestionável valor do ponto de vista da conservação ou porque com eles desenvolvemos algum tipo de ligação por razões médicas, cirúrgicas ou porque foram criados por nós.” Neste contexto, a situação pode tornar-se mais complexa, uma vez que “o facto de serem animais carismáticos conhecidos, por vezes, individualmente pelo público, alguns em vias de extinção ou mesmo extintos na natureza, torna o nosso trabalho mais “visível” a um maior número de pessoas”, comenta.

Em consulta a empatia, considerada um traço feminino, pode estar associada à proximidade dos donos e a dificuldade em afastar as emoções. Na opinião de Sérgio Alves, “a resposta perante qualquer situação emotiva depende da personalidade de cada pessoa e não do fato de ser homem ou mulher”. Por seu lado Adriana Estrela acredita existirem diferenças: “as mulheres são mais emotivas, conseguem comunicar talvez de uma forma diferente com o dono, mas têm de ter cuidado para se manterem objetivas e racionais.”

Estratégias eficazes

Lidar com a componente emocional é uma competência que deve ser trabalhada, defende Rui Bernardino: “Na nossa atividade, as emoções não podem interferir com a tomada de decisão. Saber gerir e controlar emoções em nada está relacionado com falta de sensibilidade. Acredito que muitas das vezes os dois conceitos são confundidos.” A capacidade de resposta também depende, em grande parte, da experiência do clínico. “Independentemente do grau de racionalidade há situações clínicas que não deixam ninguém indiferente e aí a experiência do clínico permite gerir melhor as emoções e os níveis de stresse”, defende Sérgio Alves. De acordo com este veterinário, as principais dificuldades surgem no início da carreira: “É sobretudo premente nos estagiários e recém-licenciados que ainda se confrontaram poucas vezes com este tipo de situações. É necessário, por vezes, confortar os colegas que ficam tão ou mais chocados que os proprietários.”

Nestas situações, a estratégia adotada por Adriana Estrela é a concentração: “O meu papel é fundamental e concentro-me no meu trabalho, em fazê-lo bem.” Manter o espírito claro e a objetividade é essencial, como alerta Rui Bernardino: “Penso que a maioria das decisões menos acertadas (se assim o poderemos considerar) acontece quando, por egoísmo, não temos clarividência na decisão. Por vezes a situação mais desconfortável para nós é a melhor opção para o paciente e temos de ter capacidade de lidar com isso. Ter essa determinação e colocarmo-nos em segundo plano é fundamental, no final o sentimento de admiração e respeito que sentimos por estes animais é o que deve sobressair.”

À flor da pele

Embora reconheçam que se trata de uma profissão emocionalmente exigente, nem todos os veterinários entrevistados encaram de igual forma as demonstrações de tristeza. “Quando estamos a assistir à despedida do dono e do seu animal, que muitas vezes acompanhámos ao longo da vida, também nos custa. Não desato a chorar, mas não há quem não se comova. Somos humanos. Não vejo mal nenhum em mostrarmos as nossas emoções”, afirma Adriana Estrela. Por outro lado Sérgio Alves defende: “Profissionalmente não penso que seja admissível a um médico chorar perante um cliente. Contudo não condeno ou censuro quem o faça, uma vez que há pessoas mais sensíveis e emotivas que outras.”

Na ausência de formação no âmbito da gestão emocional é a experiência na prática clínica que ajuda os veterinários a superar as adversidades. “Existem alguns grupos de apoio no Facebook nos quais colegas partilham as situações que viveram e tentam ajudar. Isso é positivo, pois as pessoas sentem que não estão sozinhas”, conta Adriana Estrela, salientando que “devia haver mais formação e informação”. As competências necessárias poderiam ser orientadas pela Universidade, mas devem ser adquiridas numa fase mais precoce, defende Rui Bernardino: “Os pais, a sociedade, as escolas têm certamente um papel decisivo. Viver e experienciar situações em que temos de aprender a fazer a nossa própria gestão emocional é fundamental. Neste caso em particular, o facto de ter sempre vivido rodeado de animais domésticos e selvagens permitiu-me lidar e crescer com as perspetivas da sua vida e morte. Compreender a vida animal é muito mais complexo do que apenas gostar de animais e é um processo permanente, sempre em desenvolvimento. A nossa própria perceção vai-se modificando ao longo dos anos.”

Saber “desligar”

“Há muitos colegas a serem acompanhados em termos psicológicos. Ao fim de uns anos, as situações começam a deixar marcas”, alerta Adriana Estrela. Tal como noutras áreas é importante manter um equilíbrio entre a esfera profissional e pessoal. Como reconhece Sérgio Alves, “não é fácil numa profissão tão absorvente como a nossa não levar os problemas do trabalho para casa, mas tento valorizar o tempo que tenho para mim. Isso significa passar tempos de qualidade junto da minha família e amigos”. A família é igualmente o refúgio de Adriana Estrela: “O distanciamento surgiu de uma forma natural com o nascimento dos meus filhos. Aprendi a relativizar muito mais. Trabalho com a mesma dedicação e empenho, mas a verdade é que consigo separar melhor as coisas.”

Na opinião de Rui Bernardino é vital evitar a interferência entre os dois mundos pois “cada pessoa é muito mais do que ‘apenas’ aquilo em que trabalha diariamente. Se nos centramos apenas nessa vertente então deixamos de existir enquanto indivíduos. A vida pessoal é a que nos permite manter a identidade”.

Discurso direto

Experiências que marcaram o percurso de três médicos veterinários

“Recordo perfeitamente a primeira eutanásia que fiz. A proprietária teria aproximadamente a mesma idade que eu, era também recém-licenciada (professora), teria 22/ 23 anos e chorava copiosamente, pois a cadela era sua companheira desde a infância. A cadela era uma Labradora preta passou todo o tempo a lamber-me as mãos e as lagrimas da proprietária durante o procedimento. Foi deveras complicado.” Sérgio Alves

“Os primeiros casos marcam-nos de uma forma especial e essa foi uma aprendizagem que se iniciou relativamente cedo, quando tive que eutanasiar (ainda estudante no terceiro ano) um verdadeiro companheiro (um boxer chamado Bosni) com o qual tinha uma relação de há muitos anos. Senti que tinha mais sentido ser eu a fazê-lo. O mesmo se repetiu mais tarde, quando tive de amputar a minha cadela de então: Riva, uma pointer. Acredito que nestes momentos também conseguimos mostrar quanto os admiramos e os respeitamos.” Rui Bernardino

“Na altura estagiava num hospital de cavalos, nos EUA. A meio da noite recebemos uma égua grávida em fim da gestação com uma cólica. Fomos acompanhando o caso e houve ali uma certa hesitação, como era uma égua gestante não se avançou logo para a cirurgia, e quando intervimos para retirar o poldro, ele nasceu morto. Tínhamos estado a acompanhar e estava bem. A égua foi para cirurgia e acabou por ser eutanasiada. Foi muito complicado. Recordo-me que chorei muito, porque percebi naquela hora que esta profissão ia ter dias, assim em que a história tem um final infeliz.” Adriana Estrela

“Recentemente tive de dar a notícia a um menino de quatro anos, acompanhado pela mãe, de que a gata deles estava muito doente e não podia fazer nada para a ajudar (tinha leucemia e uma anemia grave). A senhora não se conseguiu controlar, chorava compulsivamente. Ver o esforço que o menino fez para não chorar à frente da mãe, para não a preocupar ainda mais, partiu-me o coração. Depois encontrei-o a chorar sozinho à entrada da Clínica.” Adriana Estrela

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