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Desafios na gestão dos CAMV: Ter tempo para pensar no negócio

Conciliar a atividade médico-veterinária com a gestão do CAMV é talvez das tarefas mais exigentes para os médicos veterinários que assumem o cargo de direção clínica. Atualmente, recorrem, cada vez mais, a serviços de consultoria que prestam uma gestão profissional do negócio, permitindo otimizar não só a organização administrativa, como também os recursos humanos.

Em 2019, a Codivet − Cooperativa de Comercialização e Distribuição de Produtos Veterinários Nacional – quis percecionar a satisfação dos médicos veterinários relativamente à sua atividade. Para o efeito, levou a cabo um estudo − conduzido pela Kantar (Marktest) – cujos resultados foram apresentados nas Conferências Veterinária Atual, em dezembro de 2020, pela médica veterinária e CEO da Codivet, Marília Calçada. Com base numa abordagem qualitativa, o estudo assentou na realização de 15 entrevistas individuais aprofundadas, com a duração aproximada de uma hora cada, a sócios e candidatos a sócios Codivet, que incluíram responsáveis de clínicas, consultórios, domicílios e hospitais.

 

A dicotomia entre aquilo que é a atividade clínica do médico veterinário e a rotina inerente à gestão de um Centro de Atendimento Médico-Veterinário (CAMV) tem sido discutida dentro da classe e continua a ser referida pelos médicos veterinários – diretores clínicos − como difícil de conciliar. Dentro desta temática, o estudo mostrou que os aspetos reportados pelos entrevistados como mais prementes nos CAMV passam pela “relação com o cliente, gestão de stock e gestão de recursos humanos”. Os responsáveis pelo estudo explicam que “sobretudo nos segmentos de consultórios e clínicas é frequentemente difícil equilibrar o tempo despendido a exercer medicina veterinária e a gerir o CAMV”. Por outro lado, a impossibilidade de prestar o melhor tratamento por limitações do cliente tende a ter um impacto emocional elevado. “A vocação passa por serem médicos veterinários, tratarem os animas, e não propriamente pela relação com o cliente e a gestão do CAMV em geral”, acrescentam. Gerir o cliente nos diferentes momentos de contacto e a ausência de meios para apostar em formação tendem a ser fatores que geram alguma frustração. “A gestão do CAMV pode ser muito desafiante pela ausência de formação na relação com o cliente, na gestão de recursos humanos, na gestão de stocks, entre outros – sendo este último um dos aspetos mais críticos, uma vez que pode gerar perdas financeiras”.

A inexistência de ferramentas de gestão adequadas como, por exemplo, “acesso a softwares específicos”, é outra das dificuldades apontadas pela classe médico-veterinária. A competitividade e oferta alargada do mercado de produtos veterinários criam também alguma complexidade no momento da escolha. “Os diferentes players tendem a dar resposta às diferentes necessidades existentes e têm abordagens comerciais muito agressivas, o que acaba por tornar o papel do médico veterinário mais complexo, na verificação e comparação de preços, campanhas e novidades”, reforçam os responsáveis pelo estudo.

 

Perante este cenário, os entrevistados consideraram que “a gestão dos CAMV pode ser otimizada tanto ao nível das necessidades básicas – stock, compras, recursos humanos, atendimento ao cliente –, como complementares – marketing, formação e consultoria”.

As adversidades acima referidas fazem parte do dia-a-dia de muitos médicos veterinários que decidiram arriscar e abrir uma empresa em nome próprio. É o caso de Nuno Silva. “Cresci num ambiente familiar ligado ao empreendedorismo, o que acabou por motivar a vontade de abrir o meu próprio negócio − o Hospital Veterinário do Atlântico (HVA) −, em 2012, depois de trabalhar nos principais hospitais da região de Lisboa, durante cinco anos. Apesar de conhecer os desafios que isso acarretava, a realidade é que não estava totalmente preparado para o que aí vinha, principalmente devido à dimensão que o HVA ganhou em tão pouco tempo. Percebi que para garantir o sucesso do hospital, enquanto empresa, necessitava de dedicar muito tempo à gestão do negócio e este não estava ‘equipado’ para muitas questões que surgiriam”, explica o médico veterinário.

 

Neste contexto, sentiu necessidade de externalizar a gestão para se poder dedicar ao trabalho enquanto médico veterinário. Inicialmente optou por este caminho, através de diferentes parcerias e consultorias, mas, apesar dessas experiências terem sido enriquecedoras, não achou que estivessem a “atingir os resultados pretendidos para o investimento necessário”, refere. Este processo aguçou a vontade de investir mais na sua formação como gestor de empresas. Depois da tentativa de “externalização” da componente de gestão da sua clínica não ter chegado onde queria, acabou por decidir “abraçar”, ele próprio, esta área.

De médicos veterinários a gestores

O interesse pela gestão reforçava-se à medida que a experiência profissional e formativa ia aumentado. Nuno Silva fez uma pós-graduação em gestão de empresas e frequentou formações de coaching e finanças pessoais. Vendeu a sua empresa − o Hospital Veterinário do Atlântico − em inícios de 2019 e, nessa altura, surgiu um desafio por parte de um colega para o apoiar na gestão e otimização do seu negócio. “Começou como ‘uma brincadeira’, mas os resultados obtidos associados ao que experienciei com a dura exigência de gerir um negócio, fez com que surgisse a ideia de criar um projeto que pudesse ajudar outros colegas a não terem de passar pelas mesmas dores”. E foi assim que surgiu a VetObjectiv − consultora de gestão veterinária − pela mão de um médico veterinário que começava a dar os primeiros passos no mundo da gestão. Mas por que princípios se rege esta empresa? “Tem o objetivo de fornecer ferramentas, apoio e a motivação necessária a todos os colegas que sintam as mesmas dificuldades que eu senti enquanto proprietário de um CAMV e, também, aos que aspiram ter um negócio rentável, que funcione de forma eficaz, de modo que contribua para terem uma vida melhor e não pior”, explica.

 

“[A VetObjectiv] tem o objetivo de fornecer ferramentas, apoio e a motivação necessária a todos os colegas que sintam as mesmas dificuldades que eu senti enquanto proprietário de um CAMV e, também, aos que aspiram ter um negócio rentável, que funcione de forma eficaz, de modo que o seu negócio contribua para terem uma vida melhor e não pior” – Nuno Silva, fundador da VetObjectiv

Quem também optou por seguir o caminho da gestão foi Carla Lopes, licenciada em medicina veterinária, mas que nunca teve ambição de exercer em clínica – e acabou por nunca o fazer. A escolha do curso foi motivada por considerar que tinha o que era necessário para conduzi-la ao campo da investigação. Mais tarde, teve contacto com as áreas de Inspeção Sanitária, Higiene e Segurança Alimentar e Saúde Pública, às quais dedicou os seus estágios curriculares e a tese de mestrado. Findo o percurso académico, começou a prestar serviços como consultora de gestão na VetBizz Consulting. Seguiu-se um convite do Onevet Group para desenvolver um projeto que “visava a uniformização do procedimento de faturação e organização da informação gerada pela faturação para permitir analisar os key performance indicators”, explica a médica veterinária. Terminado este projeto, iniciou funções como gestora do VetOeiras Hospital Veterinário. Três anos depois, foi novamente convidada pelo OneVet Group, desta vez, para implementar um “único software de gestão clínica nos 19 CAMV do grupo”.

Quando iniciou a atividade de consultoria de gestão, constatou que os proprietários das clínicas e hospitais que apoiava, geralmente, “acumulavam funções de diretores clínicos, médicos veterinários − habitualmente os mais especializados da própria unidade − e, ainda, de gestores”. Carla Lopes sublinha que “esta acumulação de funções se tornava tanto mais complexa e extenuante quanto maior a dimensão do CAMV. Tratava-se, por isso, mais do que uma questão de despreparo para a gestão, de uma questão de falta de priorização e disponibilidade”. Para a gestora, estas duas áreas podem ser compatíveis, mas com uma organização excecional. “Considero ser possível que um proprietário de um CAMV concilie a prática clínica com a gestão se existir verdadeiro empenho em fazê-lo e uma clara separação dos períodos em que cada uma das funções é assumida, através, por exemplo, de uma calendarização e estabelecimento do horário em que se dedica a cada uma delas. Caso contrário, tenho verificado que as áreas acabam por colidir entre si ou com a esfera pessoal e familiar, o que poderá conduzir a falhas, insatisfação, sensação de incapacidade ou cansaço”, sublinha.

“Considero ser possível que um proprietário de um CAMV concilie a prática clínica com a gestão se existir verdadeiro empenho em fazê-lo e uma clara separação dos períodos em que cada uma das funções é assumida, através, por exemplo, de uma calendarização e estabelecimento do horário em que se dedica a cada uma delas” – Carla Lopes, fundadora da VetPartners Pet Business

À semelhança de Nuno Silva, Carla Lopes fundou, em 2019, a sua própria empresa – a VetPartners Pet Business. Esta ideia surge “após sete anos dedicados à gestão veterinária” e por considerar já ter “cimentado conhecimentos” que lhe permitiriam prestar uma “oferta de serviços de gestão capaz de conduzir à máxima eficiência, à criação de valor e sustentabilidade, promovendo maior disponibilidade para a atividade clínica”.

A procura por um serviço de gestão profissional

A VetPartners Pet Business abrange quatro áreas de atuação: “recrutamento e gestão de recursos humanos, que inclui recrutamento e seleção, elaboração e gestão de horários, mapas de férias e bancos de horas; finanças, gestão de compras e controlo de stocks, onde é feita uma otimização do processo de faturação e de cobrança de clientes; gestão de compras, stock mínimo adequado e controlo de custos; plano de marketing e CRM; e tecnologias de informação e equipamentos, através da manutenção das bases de dados de clientes, animais e produtos/serviços e implementação e configuração do software de gestão clínica”, refere a fundadora da empresa, Carla Lopes. A procura superou as expectativas iniciais e tem surgido naturalmente através do “boca-a-boca”. “Habitualmente, os clientes chegam até mim através de recomendação e já sabem concretamente o que pretendem”. Os serviços mais requisitados passam pela “reestruturação do processo de faturação, controlo e gestão de stocks, elaboração dos horários de trabalho e apoio na implementação de novo software”.

A VetObjectiv, de Nuno Silva, aposta num serviço flexível que permite adaptar o apoio e consultoria às necessidades dos proprietários dos CAMV. “Começamos por fazer uma revisão da estratégia e posicionamento, de modo a adequá-los aos seus objetivos − muitos colegas ‘tropeçam’ logo neste passo. Depois segue-se a avaliação e implementação de processos internos que visem a otimização do funcionamento, avaliação de projetos de investimento, formação da equipa em vendas, contacto com o cliente, gestão de stock, entre outros”. Resumindo, “a ideia é partilhar as dores de cada colega e melhorar o seu negócio de forma eficaz, prática e com conhecimento de causa”, explica.

Por outro lado, o fundador da VetObjectiv, considera que a adesão dos diretores clínicos aos serviços da sua consultora “tem sido um pouco paradoxal”. “Apesar de ter muitas reações positivas ao projeto, a realidade é que não tem havido muita procura”. Como justificação, Nuno Silva acredita que “muitos colegas considerem que não vale a pena o investimento” ou até “que não queiram partilhar ‘o segredo’ dos seus negócios”. Acrescenta ainda o contexto pandémico como impulsionador de um fraco investimento por parte da classe: “talvez por medo de investir em algo novo”, realça. O cenário atual acaba por causar constrangimentos também ao nível do trabalho comercial que seria necessário fazer, visto que é mais difícil “reunir com os colegas cara-a-cara e dar a conhecer mais profundamente os objetivos e mais-valias do projeto”.

Do lado de cá

Inês Pais e Cláudia Correia são diretoras clínicas de clínicas veterinárias e ambas recorreram recentemente a serviços de gestão externos. Antes de assumir o cargo atual, a responsável pela Clínica Veterinária BBVET, Inês Pais, trabalhou durante cinco anos como médica veterinária por conta de outrem. Abrir a minha própria clínica não foi uma decisão planeada, foi antes uma consequência natural da minha situação profissional na altura. Trabalhava numa clínica que, por incompatibilidade dos sócios, estava ‘abandonada’ e voltada para uma espécie de autogestão. Apesar disso, mantínhamos uma carteira de clientes simpática e bastante fiel. Uma vez que o encerramento do espaço era certo, resolvi dar continuidade ao trabalho que fiz − quase exclusivamente − durante o período em que lá trabalhei, e abri na mesma localidade. Acho que foi mesmo pelo desafio pessoal”, refere.

Considera que há dez anos, a gestão de um negócio era muito menos exigente, porque “não existiam metade das burocracias e obrigações que existem hoje”. O mais complicado, confidencia “é a falta de tempo para a vida pessoal”. “Com o avançar dos anos e a extensão da equipa tornou-se cada vez mais difícil conseguir conciliar os dois papéis”. Para Inês Pais, a rentabilidade do negócio e a gestão de recursos humanos são as suas maiores dificuldades. “É muito difícil equilibrar a carga de impostos pagos, as despesas elevadíssimas com material e recursos humanos e conseguir praticar preços que sejam acessíveis a grande parte da população. No fim disto tudo, ainda fazer lucro”. Por outro lado, “gerir as espectativas e as frustrações dos colegas, uma vez que a estabilidade da clínica depende muito do grau de satisfação da equipa”. As dificuldades inerentes ao cargo de diretor clínico levaram-na a recorrer aos serviços de uma consultora em gestão veterinária, a Vety. “Quando recorri à Vety estava num impasse profissional. Percebi que a clínica ou dava um passo em frente e evoluía, ou estagnava e começaria a decair. Sentia que precisava de reformular tudo”. Ficou acordado que o principal objetivo seria implementar organização na estrutura interna para aumentar a faturação e, consequentemente, gerar lucro. “Em menos de dois anos, dupliquei o número de pessoas na equipa e diminuí a carga horária, o que me permite dedicar mais tempo à gestão. Estive muito hesitante antes de tomar esta decisão, porque achei que era mais uma despesa, mas foi talvez das que me fez colher mais frutos”, revela a diretora clínica.

“É muito difícil equilibrar a carga de impostos pagos, as despesas elevadíssimas com material e recursos humanos e conseguir praticar preços que sejam acessíveis a grande parte da população. No fim disto tudo, ainda fazer lucro” – Inês Pais, diretora clínica da BBVET

Tal como Inês Pais, para Cláudia Correia a área da gestão de recursos humanos é a mais difícil, a par de toda a carga administrativa envolvida na atividade. Diz não ter tanto tempo quanto gostaria para pensar no negócio. “À medida que vamos crescendo temos obrigatoriamente de dedicar mais tempo à gestão. Sempre gostei muito mais de me dedicar à área clínica e, por vezes, esta conciliação é muito exigente. Além da componente técnica, social e emocional da nossa atividade, temos de gerar receita para cumprir os compromissos no fim do mês, mais ainda quando temos equipas de grande dimensão”, refere.

“À medida que vamos crescendo temos obrigatoriamente de dedicar mais tempo à gestão. Sempre gostei muito mais de me dedicar à área clínica e, por vezes, esta conciliação é muito exigente. Além da componente técnica, social e emocional da nossa atividade, temos de gerar receita para cumprir os compromissos no fim do mês, mais ainda quando temos equipas de grande dimensão” − Cláudia Correia, diretora clínica AlcabidecheVet

Recentemente recorreu aos serviços da Vetpartners, de Carla Lopes. “Começámos a trabalhar na área de recrutamento de pessoal e, como gostei muito da responsável e dos serviços prestados, o nosso envolvimento aumentou e desenhámos um plano de organização e implementação. A Vetpartners ajudou a implementar um software de gestão e KPI´s, a organizar os recursos humanos e também a apoiar na gestão diária (horários, formação de pessoas, compras, fornecedores, entre outros).” Cláudia Correia recomenda “vivamente” os serviços e acrescenta que este planeamento lhe permitiu “ter tempo e disponibilidade mental para aquilo que dever ser a principal função do diretor clínico, dedicar-se à medicina veterinária e à orientação da equipa”.

Abrir caminho para a gestão nos cursos de medicina veterinária

Carla Lopes evidencia a evolução da profissionalização da gestão veterinária na última década. “Ao longo dos últimos anos, tenho notado um aumento substancial no interesse e aposta na formação nesta área por parte dos médicos-veterinários. Noto uma classe mais atenta e mais informada, que frequenta palestras, congressos, cursos e pós-graduações dedicados ao tema”, realça. Já do ponto de vista académico defende que seria benéfica a inclusão de uma unidade curricular dedicada à gestão. “Considero que, dessa forma, aquando da entrada no mercado de trabalho, os recém-formados se sentiriam mais preparados para o desempenho daquilo que se espera deles, não só como clínicos, mas também como trabalhadores integrantes de um negócio”. Nuno Silva partilha a mesma opinião e destaca a inexistência de contacto com esta área na formação tradicional, nos cursos de medicina veterinária em Portugal, adiantando que as pós-graduações disponíveis no mercado, “que poderiam contribuir para colmatar de algum modo esta lacuna, normalmente são dispendiosas e ocupam muito tempo”. Por outro lado, acredita no potencial do mercado dos animais de companhia, mas considera que “os médicos veterinários não estão a conseguir captar todo esse potencial, que poderia ser traduzido em resultados profissionais e pessoais”, conclui.

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