Veterinária Actual – O que motivou a criação do Programa Antídoto?
Ricardo Brandão – O objectivo inicial era conhecer o impacto desta problemática nos animais selvagens, sabendo que existem muitas espécies protegidas ameaçadas pelo uso de veneno, nomeadamente aves necrófagas, como abutres ou milhafres, que se alimentam de restos de outros animais mortos e que se deparam muitas vezes com cadáveres de animais que morreram envenenados, sendo afectadas. Isto pode levar à extinção local de uma dada população animal de determinada espécie, mesmo quando o veneno não é directamente direccionado para elas.
Um dos casos emblemáticos que acelerou a criação do Programa Antídoto foi em 2003, em Idanha-a-Nova, em que só num caso de envenenamento morreram mais de 40 grifos e milhafres reais, devido ao uso de veneno para controlo de cães assilvestrados.
VA – A área de actuação cinge-se aos animais selvagens?
RB – Não, até porque nos interessa e sempre interessou também a questão do envenenamento dos animais domésticos. Foi então neste campo que se criou uma maior ligação aos médicos veterinários, não só os municipais, mas também clínicas privadas e a Direcção-Geral de Veterinária, um parceiro fundamental nesta temática.
Ainda que nos preocupe mais a preservação da fauna selvagem ameaçada pelo veneno, ao nível da recolha de dados e da optimização de procedimentos e de mecanismos das autoridades competentes, os animais domésticos são determinantes para conhecer a realidade e mapear o território.
No fundo, actualmente temos uma maior noção das áreas críticas do uso de veneno devido aos dados recolhidos em animais domésticos.
«Parcerias são fundamentais»
VA – Desde 2004, o número de empresas ou entidades associadas ao programa tem vindo a crescer. Actualmente, quantas são e que tipo de apoio prestam?
RB – Existe uma rede criada desde 2004, que conta já com 24 entidades, divididas em dois grupos de trabalho: as entidades promotoras e coordenadoras do programa, em que se incluem organizações não governamentais (ONG) e do ambiente e as parcerias com outras entidades que fazem com que o programa seja mais equitativamente distribuído ao nível do território, como ONG de menor dimensão ou de carácter regional.
VA – Este é então um programa que abrange já todo o território nacional?
RB – Só ainda não conseguimos abordar as regiões autónomas, embora recebamos algumas informações de casos de envenenamento. Contudo, a actuação no terreno nessas zonas é mais difícil para já, apesar de ter havido formação de autoridades dessas zonas.
VA – Contam também com apoios da comunidade académica?
RB – Sim, ao nível universitário estamos envolvidos com diversas entidades. A Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) cobre a recolha de animais para necrópsia e análise de uma grande área do território nacional, nomeadamente a zona norte.
Outro parceiro essencial é a Universidade de Lisboa que suporta a vertente analítica, dado que as análises toxicológicas são bastante onerosas. Esta faculdade realiza gratuitamente no seu Laboratório de Toxicologia e Farmacologia as análises a espécies silvestres, o principal grupo que definimos ao início.
Está também a ser iniciado um protocolo com a Universidade de Évora para que consigamos criar uma rede de apoio a nível nacional, complementada para já com o Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental.
«Os caçadores são um aliado»
VA – Mas há também um parceiro mais polémico: os caçadores. Como surge esta associação?
RB – À partida, sabemos que a actividade cinegética pode constituir um problema, porque ainda existe o uso ilegal de iscos com veneno, um acto ilegal e irresponsável. Isto podia levar-nos a pensar que os caçadores seriam um inimigo, mas resolvemos inverter a questão, até porque estes também são alvo do problema, dado que há uma grande quantidade de cães de caça que morrem envenenados anualmente, o que constitui para nós um elemento importante ao nível da recolha de informação.
Sabemos que o número de caçadores que usa veneno é residual, pelo que o melhor é envolver a faixa maioritária na luta contra o problema e que isso seja uma forma de reprimir esta prática ilegal que continua a ocorrer no nosso país. Envolvemos então a Associação Nacional de Proprietários e Produtores de Caça, a Confederação Nacional de Caçadores Portugueses e a Fencaça.
Por outro lado, no sector agrícola também tentámos envolver as diferentes entidades de uma forma mais eficaz, mas, para já, só conseguimos a Confragi. Isto explica-se também pelo facto do sector agrícola ter sido uma preocupação posterior do Programa Antídoto, embora saibamos que há impactos fruto deste sector de actividade, nomeadamente do uso de pesticidas, mas não constitui uma prática ilegal. Assim, o estudo do impacto destes venenos é algo colateral e que se veio a revelar interessante, mas numa fase posterior.
Há ainda outros grupos que se juntaram a nós por iniciativa própria, como é o caso dos zoológicos, que têm maior facilidade e capacidade de fazer chegar a informação às pessoas, devido ao seu contacto directo com o público. Neste momento, temos a participação do Zoo da Quinta de Santo Inácio, em Gaia, e o Zoo de Lourosa, que é um parque ornitológico e que está mesmo a desenvolver uma zona temática de conservação de aves autóctones afectadas pelo veneno.
A principal razão, e aquela que tem consequências mais graves para algumas espécies silvestres, é o controlo ilegal de predadores que é levado a cabo por um grande número de zonas de caça. A forma irresponsável como é feito, para além de demonstrar um profundo desrespeito pela natureza e pela biodiversidade, espelha bem a ignorância e falta de formação no que respeita à biologia das espécies silvestres. A necessidade de rentabilizar a caça quando se recorrem a práticas cinegéticas insustentáveis e que apenas visam o lucro fácil e imediato, a falta de fiscalização séria e o fácil acesso a produtos que podem ser usados como veneno também têm contribuído para que o controlo ilegal de predadores seja uma prática corrente e bem conhecida e admitida por todas as pessoas que estão envolvidas com o sector da caça. A total impunidade, a falta de preocupação e/ou formação das autoridades para lidar com os casos que são detectados e notificados, e pior ainda, a actual permissividade e irresponsabilidade da legislação vigente têm impedido uma mudança de atitude, mentalidade e de práticas de gestão cinegética no seio dos caçadores.
VA – E em termos do mapa nacional, quais são as zonas mais afectadas e quais as espécies alvo?
RB – No mapa podemos identificar zonas críticas que são basicamente o Alto Minho, nos distritos de Viana do Castelo e Braga, em que o problema tem origem em conflitos entre populares e caçadores. No Parque Nacional da Peneda Gerês a espécie alvo é o lobo ibérico, devido à perseguição que alguns criadores de gado ainda fazem a estes animais e também porque, tanto do lado português, como do espanhol, o uso do veneno é ainda cultural. E embora o lobo ibérico seja muito afectado, a espécie que mais baixas tem sofrido é a águia-real, que viu os seus quatro casais nidificantes reduzidos a zero. Há ainda a questão da actividade cinegética que afecta toda esta zona, morrendo muitos cães de caçadores por envenenamento por estricnina, devido a conflitos entre caçadores e também porque a população muitas vezes não gosta que andem ali a caçar.
Há ainda a área de Trás-os-Montes, nos distritos de Vila Real e de Bragança, e a Beira Alta, nos distritos da Guarda e de Viseu, que apresenta problemas semelhantes aos do Alto Minho.
Onde começa a haver diferença em termos do objectivo do uso de veneno é na faixa do Interior do distrito da Guarda e Norte de Castelo Branco. Aqui há já uma produção de gado ovino e caprino e um grande número de cães assilvestrados. O uso de veneno direccionado a estes cães também afecta as espécies necrófogas, nomeadamente abutre preto e grifos.
Devido à importância destas espécies, estas zonas são neste momento os nossos principais focos de intervenção.
VA – Olhando para o mapa, o Alentejo e o Algarve são zonas pouco preocupantes em termos de uso de venenos…
RB – No caso do Alentejo achamos que o mapa não corresponde totalmente à realidade, porque o número de casos está infravalorizado. Isto está relacionado com o facto de nessa região, apesar de sabermos que ainda persiste o problema do uso de veneno na gestão cinegética, haver zonas de caça privadas, onde o acesso nos é limitado e a acção de investigação é muito reduzida.
Temos casos de animais envenenados que nunca seriam detectados se os animais não estivessem marcados com telemetria GPS. Exemplo disso é o de um milhafre real, marcado na Alemanha, que veio morrer a esta zona e que nunca teria sido encontrado sem este sistema.
«Devia haver maior responsabilização»
VA – Já referiu alguns venenos, mas quais os que são detectados com maior frequência?
RB – Graças aos dados da Faculdade de Medicina Veterinária e do Laboratório Nacional de Investigação em Medicina Veterinária – que não faz parte da plataforma – verificamos que ainda persiste o uso de um veneno, totalmente proibido há vários anos, que é a estricnina. Há pessoas que mantém pequenas “reservas” antigas deste veneno ou que, como é legal em alguns países, o conseguem através de familiares emigrados.
Outros grupos problemáticos são os carbamatos e os organofosforados, que são normalmente usados como insecticidas na agricultura e que, muitos deles, se podem comprar de forma livre em qualquer drogaria. Felizmente, os mais perigosos já estão a ser retirados do mercado fruto de directivas europeias, que também já são mais restritivas quanto à aquisição de alguns destes produtos, estabelecendo um maior controlo.
Contudo, há algo que nunca conseguiremos combater que é a aquisição de um produto de forma legal, que é depois usado ilegalmente como veneno para animais. Por isso, temos de reunir sinergias para estudar o impacto dos mesmos e tentar sensibilizar as pessoas.
VA – A implementação dessas restrições é mais fácil quando se prova o impacto nos lençóis de água do que no caso da morte de animais, dado que esta não afecta directamente a população?
RB – Esta temática do envenenamento dos animais selvagens é algo recente em termos de preocupação das autoridades, mas podemos é aproveitar muita da informação relativa à questão do impacto nos solos, até porque dos tóxicos são comuns. E se num caso de intoxicações crónicas cumulativas a relação muitas vezes não é directamente provada, no caso do uso de iscos é mais fácil. Contudo, é muito difícil levar, em termos jurídicos e obtendo uma condenação, até ao final um caso de envenenamento intencional, porque há passos que têm de ser criteriosamente cumpridos. E muito do trabalho do Programa Antídoto tem sido no sentido de sensibilizar para esta necessidade, dando maior destaque à medicina forense e implementando um maior envolvimento dos médicos veterinários na necrópsia e na avaliação pos mortem e, por fim, no tribunal, com advogados e juízes sensibilizados para esta problemática.
VA – Nos casos em que se consegue a condenação, qual é a plena aplicável?
RB – Embora não seja frequente, pode acontecer o encerramento de zonas de caça. Gostávamos que fossem aplicadas medidas mais severas. Exemplo disso é o caso espanhol em que, se for detectado o uso de isco envenenado em zonas de caça, esta é imediatamente fechada preventivamente. Ou seja, assume-se que a gestão da zona é de uma entidade e se há um acto ilícito esta é responsável por não fiscalizar. Cá ainda não chegámos a esse ponto…
VA – Mas pretendem uma legislação semelhante?
RB – É difícil mudar a legislação num país onde o lobby da caça é muito forte e onde as alterações à lei da caça não têm ido neste sentido de maior responsabilização. Também devido ao valor cultural desta actividade, mesmo a nível europeu, as directivas comunitárias deixam ao critério de cada país a legislação a aplicar.
«Análise e recolha rigorosa inicial é fundamental»
VA – E levar um processo até ao final é algo oneroso?
RB – Depende. Há casos em que, com uma análise que custa 20 ou 30 euros, conseguimos reunir as provas que necessitamos, e outros em que com 500 não conseguimos nenhum resultado. No fundo, o que importa aqui salientar é a importância da recolha e análise rigorosa numa fase inicial, sabendo tudo o que se pode recolher de informação no local, seguido de uma boa análise pos mortem realizada por um médico veterinário com bons conhecimentos e que faça um bom relatório para o laboratório.
VA – No fundo, quais os procedimentos a adoptar?
RB – Para simplificar o processo, centralizámos a recolha de informação, de cadáveres e de animais vivos no Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente (SEPNA). Ou seja, é este serviço que tem de ser contactado e envia uma equipa ao local. Se um cadáver de um animal não for recolhido por um agente da autoridade, a nível legal estamos já a comprometer tudo.
O Sepna deve sempre fazer-se acompanhar por um médico veterinário municipal (MVM). Mas aqui enfrentamos outro problema. O MVM não está disponível 24 horas por dia e há mesmo municípios sem esta entidade.
O Programa Antídoto proporcionou, em 2006, formação a todos os elementos do Sepna e kits com equipamento para recolha de no local. Já no caso dos MVM, a formação só foi ministrada em 2008, embora sem carácter obrigatório. Contudo, há ainda algum equipamento que consideramos necessário e que não faz parte dos kits, como arcas de congelação. Os kits são iguais aos utilizados pelo Programa Antídoto e a recolha de informação deve obedecer aos mesmos critérios, mantendo-se assim uma cadeia de custódia essencial para que tudo vá até ao final em tribunal. Se assim não for, o esforço é inglório, porque basta falhar uma fase do processo para as coisas não terem sucesso.
«MVM é essencial no processo»
VA – E qual é o papel do médico veterinário nestes casos?
RB – O MVM é a autoridade sanitária e presta um apoio essencial à entidade policial, no caso o Sepna, que apesar de poder fazer a recolha do animal não tem conhecimentos técnicos.
Assim, cabe ao MVM perceber qual a sintomatologia anterior à morte ou apresentada no animal, reunir informação sobre a suspeita de tóxico, recolha e observação de indícios no terreno. No fundo, o MVM é a pessoa com mais formação para detectar se se trata ou não de caso de envenenamento e qual a causa de morte do animal. Contudo, ainda persistem algumas dificuldades como o facto de nem todas as autarquias terem uma sala de necrópsia e material básico para a realizar, bem como uma arca congeladora para guardarem os animais.
Há ainda médicos veterinários que alegam não ter os conhecimentos necessários para realizar uma necrópsia, ao que nos limitamos a responder que, em muitos casos, este procedimento se limita a abrir um animal, recolher órgãos e encaminhar para o laboratório.
VA – Mas então aqui o problema passa pela falta de recursos?
RB – No caso da formação, cabe ao MVM pressionar a DGV para lhes fornecer essa formação, até fruto das novas competências que foram atribuídas a estes profissionais.
O Programa Antídoto é que não tem capacidade para mais… Ao Sepna foi fornecido o kit, mas ao MVM não conseguimos dar uma sala de necrópsias. Tem de ser a Câmara Municipal a fazê-lo.
E aqui temos outro problema: a atribuição de responsabilidades às câmaras por parte da DGV e à DGV por parte das câmaras. Estamos assim desde o início e creio que vamos permanecer assim muito mais tempo. Só que esta desarticulação é um ponto crítico que nos afecta directamente.
VA – Acha que com a nova legislatura a solução pode estar à vista?
RB – Nós estamos sempre optimistas, até porque cada vez há mais câmaras municipais alertas para estas questões. O melhorar, acreditamos que vai melhorar. A dúvida é a que ritmo…
VA – A compilação da informação numa base de dados por parte do Programa Antídoto pode servir de impulsionador a esta mudança que pretendem?
RB – Sim, porque agora temos dados, números e mapas. Isto ajuda a entender que o problema existe e quais são os pontos críticos. Sem isto, não conseguíamos fazer nada e esperemos que sirva de alerta para as autoridades. Além disso, serviu também para uma melhor gestão de esforço, até porque quase tudo é feito de forma voluntária, uma vez que não há uma equipa contratada para este fim.
Com tudo isto, esperamos que o ritmo de melhoria seja maior, principalmente nas zonas mais afectadas.
VA – E também em termos de financiamento?
RB – Sim, até porque como já referi a estrutura funciona em regime de voluntariado e é financiada através das empresas que fazem parte da plataforma. Exemplo da falta de fundos é o dos kits fornecidos ao Sepna, que foram financiados por uma fundação espanhola. No fundo, o que pretendíamos é que o Programa tivesse uma equipa profissional a coordenar todo o trabalho, pois só assim conseguiremos resultados mais rapidamente. De resto, todo o financiamento para uma maior capacidade logística e de formação será bem-vindo.