É uma especialidade em constante evolução que ganha com a inovação e novos fármacos, bem como uma prática clínica mais direcionada. Perante alguns “inimigos”, como patologias prevalentes ou bactérias multirresistentes, há que decidir cuidadosamente a prescrição de antibióticos. À boleia do tema do Congresso Montenegro fomos à descoberta dos grandes segredos da dermatologia veterinária.
Foi o tema do último Congresso do Hospital Veterinário Montenegro (HVM), que decorreu entre os dias 22 e 24 de fevereiro no Europarque, em Santa Maria da Feira. Aproveitando o mote, a VETERINÁRIA ATUAL falou com alguns dos médicos veterinários e professores dedicados a esta área para descobrir os desafios desta especialidade.
Que exigências enfrentam os médicos veterinários, por um lado, e os próprios tutores? No que respeita às doenças dermatológicas que constituem um maior desafio à prática clínica, Ana Oliveira, diplomada pelo Colégio Europeu de Dermatologia Veterinária e docente da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Lusófona de Lisboa (FMV-UL), considera que apesar dos novos tratamentos à disposição, a dermatite atópica continua a ser uma preocupação, principalmente em certas raças. “O componente genético pode contribuir significativamente para a severidade do caso e consequente dificuldade no maneio da doença. Outra doença problemática é a piodermite causada por Staphylococcus pseudintermedius multirresistentes aos antibióticos. O desenvolvimento de resistência aos antibióticos pode limitar o tratamento em certos casos clínicos”, esclarece a docente.
No caso de Ana Mafalda Lourenço, docente responsável pelo ensino e serviço de Dermatologia / Imunoalergologia da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa (FMV-ULisboa), são “as infeções multirresistentes e as pododermatites graves, em que já existem muitas alterações crónicas, bem como os casos de dermatite atópica que não respondem satisfatoriamente a nenhuma terapêutica ou combinações destas” que mais a preocupam. A médica veterinária e fundadora da PeloVet, Carolina Mesquita, também elege os casos de resistência bacteriana a antibióticos como uma exigência cada vez mais preocupante da Medicina Veterinária. “São casos extremamente desafiantes na prática clínica pois estas ‘super bactérias’ não respondem a qualquer tipo de tratamento antibiótico. É cada vez mais comum encontrar casos de otites provocadas por pseudomonas multirresistentes ou piodermites provocadas por MRSP ou MRSA, nos quais ficamos muito limitados em termos de tratamentos”, explica, sublinhando que é assustador pensar que não existem hoje “armas” para tratar os nossos animais. E o mesmo sucede na Medicina Humana.
O desafio das doenças autoimunes e imunomediadas
Para Diana Ferreira, médica veterinária dermatologista, diplomada pelo Colégio Europeu de Dermatologia Veterinária, a trabalhar no OneVet Group e no Animal Health Trust, no Reino Unido, são as doenças autoimunes e imunomediadas que representam um maior desafio. Carolina Mesquita acrescenta que estas podem ser complicadas de tratar “devido à própria etiologia da doença, que nem sempre oferece um prognóstico favorável e há que pesar muito bem os benefícios e efeitos secundários dos medicamentos a utilizar”.
Além das patologias que assustam e que ainda constituem uma inquietação, chegar ao adequado diagnóstico nem sempre é fácil sendo que o tratamento também pode representar um verdadeiro desafio, tanto para o clínico, como para o tutor. “Nem todos os animais respondem de igual forma às diferentes opções terapêuticas disponíveis. Em segundo lugar estas terapêuticas podem, muitas vezes, comprometer o bem-estar do animal e trazer outros problemas com prováveis efeitos adversos e uma necessidade constante de controlo analítico”.
A mesma doença, manifestações diferentes
Dentro desta problemática de sensibilizar os tutores e informar corretamente para a compliance é preciso intervir antes da prática clínica e formar adequadamente os futuros médicos veterinários. Carolina Mesquita defende duas regras básicas: a primeira é que os médicos veterinários não se devem centrar apenas nos sinais clínicos. “Em dermatologia não se pode dizer, só olhando à simples vista, que ‘este caso é igual a outro que já vi’. Temos de ter sempre presente que a mesma doença se pode manifestar de forma diferente em indivíduos distintos e que doenças totalmente diferentes podem provocar lesões muito parecidas. Costumo afirmar que é quase impossível ‘adivinhar’ qual é a causa do problema só olhando para uma fotografia. No entanto, se soubermos interpretar um bom historial clínico ou uma boa anamnese, temos meio caminho andado para chegar ao diagnóstico”, explica. De forma a tratar os sinais clínicos adequadamente é fundamental diagnosticar a causa primária.
A segunda regra relaciona-se com a necessidade de ser metódico. “Existem inúmeros fatores que influenciam a pele, e se começamos a mudar de ração ‘só porque sim’, de champô ‘para ver se resulta’, dar um pouco de antibiótico ‘a ver se passa’ ou a mandar fazer qualquer tipo exame na tentativa de que ‘dê positivo a alguma coisa’ facilmente perdemos o norte e não vamos saber o que estamos a fazer”, acrescenta a responsável da PeloVet. Depois de organizar as informações há que tratar apenas aquilo que se tem a certeza de ter encontrado. Depois, passo a passo, os casos [até os mais complexos] vão-se resolvendo.
A importância de ‘não saltar passos’
Para Ana Oliveira, um dos segredos da dermatologia é “não saltar passos” na consulta. É fulcral que o historial e o exame físico sejam bem elaborados para se poder escolher os exames complementares de diagnóstico e conseguir assim chegar ao diagnóstico correto. Somente com a doença diagnosticada se pode escolher o tratamento mais adequado para cada caso clínico”, avança a docente.
Novo projeto de investigação quer melhorar educação de tutores
A FMV-ULisboa vai iniciar nos próximos meses um projeto de investigação piloto no serviço de Dermatologia, patrocinado pela CEVA, e que poderá permitir a melhoria da sensibilização dos tutores por recurso a meios audiovisuais. “Vamos avaliar a eficácia da educação dos tutores recorrendo a um vídeo animado disponibilizado online para melhoria do conhecimento sobre a dermatite atópica e o consequente impacto no maneio da doença quando comparado com um panfleto escrito”, explica Ana Mafalda Lourenço. No final será feita uma avaliação em que se perceberá qual dos grupos de controlo cumpriu melhor as recomendações e promoveu melhor adesão à terapêutica, se aquele que seguiu as informações do panfleto, se o que recebeu orientação por vídeo. “Alguns estudos realizados em Medicina Humana demonstram que os vídeos são excelentes ferramentas e a sua utilização resulta numa melhor compreensão e maneio das afeções. Estou muito curiosa em conhecer os resultados que vamos obter”, sublinha.
Enquanto professora universitária, Ana Mafalda Lourenço socorre-se do velho provérbio “não dê o peixe, ensine a pescar” para salientar o quanto é importante ajudar a desenvolver o pensamento crítico dos alunos dando-lhes as ferramentas para que saibam estar sempre atualizados. “Devemos transmitir-lhes que, para cada doença, não há uma receita a seguir. A Medicina deve basear-se no indivíduo e nas suas singularidades. É também importante transmitir a noção da rapidez com que o saber evolui nas áreas médicas como a nossa”, adianta.
A boa formação dos clínicos em Portugal é cada vez maior e reflete-se na qualidade dos serviços prestados aos pacientes e tutores. “Nesse sentido, Portugal tem evoluído bastante. O ensino de qualidade da dermatologia tem vindo a ganhar terreno nas diferentes instituições e vemos os alunos cada vez melhor preparados nesta área da Medicina Veterinária. O facto de termos acesso cada vez mais rápido às mais novas moléculas terapêuticas e fármacos coloca-nos na linha da frente e permite-nos fazer opções terapêuticas e diagnósticas atualizadas”, elogia Diana Ferreira. A criação da Sociedade Portuguesa de Dermatologia Veterinária (SPDV) tem vindo a assumir, na sua opinião, “um papel importante na formação dos clínicos permitindo que estejam a par dos mais recentes avanços da dermatologia e das melhores práticas nesta área”.
O que falta em Portugal?
Boa formação, bons profissionais, boas terapêuticas. Portugal caminha no bom sentido no que à Dermatologia Veterinária diz respeito. Há quem defenda que o progresso nacional está ao nível de outros países europeus. Então o que está em falta?
Nesta, como noutras especialidades do setor, denota-se uma menor capacidade financeira dos tutores portugueses. Foi esta a maior diferença que Ana Mafalda Lourenço encontrou no tempo que passou no Reino Unido. “Considero-me uma privilegiada uma vez que o caso que recebo não tem normalmente grandes restrições económicas, mas sei que não é a realidade do país. O papel das seguradoras aqui será fundamental”, defende.
Também Carolina Mesquita denota que “quando não se consegue trabalhar a um nível mais elevado, tal se deve a alguma limitação económica por parte dos tutores e não à falta de vontade dos proprietários ou da inexistência de meios ou profissionais competentes nos centros veterinários”. Com um crescimento ano após ano, a PeloVet dá resposta a clientes particulares, mas também a clínicas que procurem um serviço de especialidade. “O que nos diferencia é o facto de termos consultas em que cada caso é tratado com muita atenção. Este é um negócio com características muito específicas e noto uma enorme aceitação e recetividade por parte do tutor às consultas de especialidade. Hoje em dia, a grande maioria dos tutores são bastante conscienciosos e preocupados com seus animais e exigem cada vez mais do seu veterinário, o que nos obriga a melhorar e a trabalhar com mais rigor, o que é uma evolução positiva para todos”, afirma.
Ana Oliveira não tem dúvidas: “Possuímos meios de diagnóstico e os fármacos estão disponíveis no mercado português. O médico veterinário português possui um conhecimento científico robusto e atualizado, o que permite que Portugal proporcione bons cuidados de saúde animal”, afiança. Também Carolina Mesquita considera que existem bons profissionais e “centros excelentemente equipados onde se trabalha com grande rigor”, mas há algo em que a evolução não se faz notar e que se prende com a falta de orgulho lusitano ou uma espécie de pessimismo nacional, que se reflete também na Medicina Veterinária. “Falta-nos acreditar mais em nós próprios e deixar de pensar que tudo o que vem de fora é melhor, pois quem vai para o estrangeiro e regressa sabe bem que nem sempre é assim”, defende a responsável da PeloVet.
Diana Ferreira espera que o próximo Congresso do HVM seja uma forma de aumentar a curiosidade e a vontade de toda a comunidade médica em saber mais sobre a área. “A dermatologia tem, sem dúvida, uma importância muito grande no dia-a-dia de um clínico geral. Por isso acho que já era tempo de se abrir as portas às grandes questões e dúvidas da dermatologia e ao debate.”
Avanços terapêuticos para o contra-ataque
Têm sido vários os avanços terapêuticos nos últimos anos. Ana Mafalda Lourenço destaca, no campo da alergologia, “o oclacitinib e o lokivetmab” e ao nível da ciência mais fundamental “as descobertas relacionadas com o microbioma cutâneo do cão”. O desenvolvimento de terapêuticas alternativas e/ou adjuvantes aos antibióticos “têm permitido lidar melhor com o maneio das mesmas na presença de biofilmes. Os ainda pequenos avanços no combate dos mesmos são promissores: por exemplo, a utilização da N-acetilcisteína ou dos compostos à base de prata”, garante.
Existem outras descobertas que permitem “preparar o contra-ataque”, sublinha Ana Mafalda Lourenço. “No âmbito das otites cada vez conhecemos mais intimamente um ‘inimigo público’ chamado Pseudomonas aeruginosa. Conseguimos perceber melhor como escapa ao sistema imunitário e como causa dano”.
Carolina Mesquita também é da opinião que estas inovações terão um grande peso no futuro, mas opta por destacar evoluções terapêuticas úteis diariamente, como as opções para o controlo do prurido. “Os desparasitantes são cada vez mais efetivos, ao ponto de certas doenças, como as sarnas, não serem tão frequentemente encontradas como antigamente.” No que respeita à Leishmaniose, a médica veterinária considera importante aproveitar os novos tratamentos e as vacinas ao dispor. “Toda a ajuda para controlar esta situação é bem-vinda”, afirma.
Ao nível de fármacos, o destaque de Ana Oliveira vai para o “oclacitinib (Apoquel®), outro medicamento inovador que permite controlar o prurido de modo seguro no maneio da dermatite atópica”. No que respeita às dietas, a inovação que escolhe é a “Anallergenic® para gatos, uma dieta extensamente hidrolisada permitindo ao médico veterinário diagnosticar reações adversas causados pelo alimento”. Considerando que é importante que a investigação de novas moléculas tipo “target” continue para permitir “a cura eficaz e segura das doenças dermatológicas”, chama à atenção para um tema que também é muito debatido em Medicina Humana. “A prescrição de antibióticos deverá ser bastante cuidadosa e sempre segundo as guidelines de antibioterapia para cada tipo de infeção.” A docente gostaria de assistir ao desenvolvimento de moléculas que possam ser usadas, no futuro, como alternativas aos antibióticos.
Apostas da indústria
Do lado da indústria, a opinião é semelhante à dos clínicos. A Hifarmax lançou há seis meses um novo medicamento no mercado português para otites externas. “O Complexo Marbogen® tem sido muito bem recebido, é constituído por prednisolona, gentamicina, marbofloxacina, cetoconazol, e pela primeira vez presentes numa só formulação”, explica Inês Maia, diretora técnica e assuntos regulamentares da farmacêutica. As otites externas são uma das preocupações da Hifarmax por terem “bastante expressão na clínica de pequenos animais”, o que justifica a aposta neste fármaco. “O medicamento foi muito bem recebido pelo mercado, e tem demonstrado ótimos resultados na grande batalha contra as otites. Estas patologias caracterizam-se cada vez mais por serem causadas por bactérias resistentes, pelo que combinações de antibióticos de reconhecida eficácia são um instrumento de utilidade crescente na clínica de animais de companhia”, salienta a responsável.
Como motivar os tutores para seguirem tratamentos à risca
Um dos problemas em Dermatologia Veterinária prende-se com a falta de colaboração dos tutores nos tratamentos dos seus animais de companhia por não compreenderem bem o problema ou por não saberem como atuar adequadamente. “Como parte do tratamento das patologias dermatológicas é feito em casa há que sensibilizar os tutores para a necessidade de seguir corretamente as recomendações do médico veterinário”, afirma Ana Oliveira. Para tal é importante que o mesmo comunique eficazmente e esclareça as dúvidas do tutor ao longo de todo o processo. Um dos grandes desafios prende-se com a duração do tratamento que, muitas vezes, é prolongado no tempo e exige dedicação diária e constante por parte dos tutores. “É obrigação nossa, como veterinários, instruir o tutor em como deve fazer corretamente o tratamento, alertá-lo da importância deste e das consequências da sua interrupção. Indo mais além, devemos também gerir as suas expectativas para que ele se mantenha motivado já que os resultados raramente se veem nos primeiros dias. É fundamental, no momento da consulta, falar cuidadosamente em como deve ser efetuado o tratamento, pois se mais tarde o proprietário não conseguir cumpri-lo, de nada serve o que estamos a receitar”, afirma Carolina Mesquita. Tão ou mais importante é adaptar o tratamento à família dos animais, seja por motivos económicos, seja de acordo com a disponibilidade de tempo.
As patologias em dermatologia necessitam habitualmente de manutenção, o que reforça o bom entendimento entre os clínicos e os tutores. Ana Mafalda Lourenço defende que “o maneio dos problemas dermatológicos é um trabalho de equipa”.
Diana Ferreira considera essencial que o tutor compreenda a doença do seu animal, mas também o objetivo da tomada de determinadas decisões terapêuticas ou diagnósticas por parte do clínico. “O clínico deve ser um bom comunicador, o mais didático possível, empático com o tutor, ouvir as suas preocupações, mas também informar corretamente acerca patologia do seu animal e ser realista quanto às expectativas que ambos podem ter relativamente ao quadro dermatológico. Só assim se consegue, frente a um quadro crónico, recorrente, ou no maneio de uma patologia que não tem cura, trazer os maiores benefícios para o animal”, defende.