Montes verdejantes, salpicados de sobreiros, até onde a vista alcança… Pode parecer uma alusão ao paraíso de Adão e Eva, ou então uma frase publicitária utilizada por agências imobiliárias. Contudo, é um “postal ilustrado” bem real e bastante frequente no Alentejo, neste caso específico, de Arronches, distrito de Portalegre. É perto desta localidade que se situa a herdade Roque Vaz, onde tudo é tipicamente alentejano, até o rafeiro que, calmamente, dás as boas-vindas a quem chega.
Apesar do “porteiro” ser o cão, as donas e senhoras do lugar são as vacas. Faça Sol ou faça chuva, é ao ar livre que vivem e privá-las disso, segundo dizem, era contribuir para que se tornassem loucas. Despojar as limousines da liberdade de percorrerem os seus montes seria o equivalente a privar o peixe da água.
O destino que as aguarda não é o mais feliz, visto que a sua produção tem como objectivo o mercado do consumo da carne. Porém, será que se poderá considerar que têm uma vida de cão? Ou uma porca de vida? Não, de facto, é mesmo uma vida de vaca que possuem. Vivendo pachorrentamente e com uma dinâmica própria, é com curiosidade e mesmo desprezo que olham para as vidas humanas que teimam em aparecer à sua volta. Na verdade, a estas nobres habitantes da Roque Vaz não lhes falta nada, nem mesmo os cuidados de um médico veterinário. E apesar do assunto em causa serem as vacas, foi com as galinhas que eles – habitantes – se levantaram naquela manhã cinzenta e chuvosa de Março. O dia amanheceu, assim, cedo na herdade do senhor José Crispim dos Santos para aqueles que tinham como tarefa vacinar e rastrear os bovinos da propriedade. Entre eles encontrava-se José Luís Cachapa, médico veterinário de campo.
O saneamento da brucelose é feito duas vezes por ano à população bovina, isto «apesar deste efectivo não ser positivo», afirma o profissional de saúde animal, enquanto vai vacinando e colhendo sangue dos exemplares. «Todavia, esta exploração é contígua a uma positiva», acrescenta. Neste momento, «existem dois focos de brucelose no distrito de Portalegre», continua a conversar, ao mesmo tempo que guarda os tubos com o sangue para análise.
O procedimento é rotineiro. Basicamente, os homens do monte Roque Vaz, alguns dos quais representantes de duas gerações da família do proprietário – filhos e netos -, dividem os animais em três grupos. O primeiro, e mais distante da área de acção, é aquele que contém mais espécimes. Depois há o segundo, já mais próximo, e que possui menos elementos do que o anterior, funcionando como o elo de ligação entre os extremos desta cadeia. E, por último, o terceiro que é aquele que está em constante mudança, visto que os animais, vindos do grupo anterior, vão entrando na estrutura, de metal, apropriada para serem vacinados e rastreados. Aqui, ora às três ora às quatro de cada vez, as vacas vão passando pela mão do médico veterinário, e quando o trabalho é concluído, a porta abre-se e elas encaminham-se novamente para o campo aberto que tão bem conhecem.
Respeitinho é bonito, e os trabalhos iniciaram-se às seis e meia da manhã com o grupo de mais idade. «Começámos com as mais velhas, que já foram mães e que por isso são mais calmas», explica um dos filhos do senhor Crispim dos Santos. Quando eram nove e meia, já estava tudo pronto para se começar a tratar das restantes limousines: as mais novas e rebeldes. «Não é uma raça fácil», diz José Luís Cachapa, ao observar os animais a tentarem escapar da sua prisão preventiva, ou seja, daquelas barras de metal que tanto os afligem. Contudo, o profissional justifica o motivo desta raça não ser, aparentemente, dócil, exactamente por não estar habituada a espaços apertados e fechados.
Enquanto os homens se entregavam a esta missão de corpo e alma e sem medo de sujar as mãos, uma vez que vacinar cerca de 220 vacas não é propriamente uma brincadeira, o senhor Crispim dos Santos, encostado a um dos tractores da propriedade, colocado em posição estratégica para auxiliar os trabalhos, zelava pelos seus animais. Nem mesmo a chuva, que teimava em cair, o desmobilizou, nem a ele nem a qualquer outro dos presentes. Enquanto o trabalho não ficou pronto, por volta das onze e meia, ninguém abandonou o campo de batalha.
Começar a trabalhar com o Sol
Continuando a conversar, ao mesmo tempo que prossegue com o seu trabalho, ora o rastreio, ora agora a vacinação contra a clostridiose, José Luís Cachapa explica um pouco no que consiste o seu dia de trabalho.
Na sua vida profissional, é o Sol quem dita as regras. A jornada inicia-se assim que este nasce, sendo que o médico veterinário reparte-a entre os deveres enquanto clínico que exerce a profissão a nível particular, a coordenação do Agrupamento de Defesa Sanitário (ADS) de Monforte, e ainda a sua própria exploração agrícola e pecuária e a sua fábrica de enchidos de porco preto. Com uma vida intensa desta maneira, o ideal mesmo seria o dia ter mais de 24 horas.
Natural de Campo Maior, actualmente reside em Elvas, mas foi em Lisboa, na Faculdade de Medicina Veterinária, que se licenciou em 1982. Já lá vão 26 anos, mas energia não falta. «É uma actividade fisicamente dura, porém acredito que o gosto por esta profissão supera qualquer obstáculo», refere, sublinhando que, «provavelmente, o desgaste físico neste caso específico é maior do que em qualquer outro ramo da Medicina Veterinária».
Conciliando, de facto, o seu horário laboral com o do trabalho rural, para José Luís Cachapa esta proximidade que se estabelece, no fundo, com os agricultores, resulta numa simbiose perfeita em nome do bem-estar animal, assim como também da qualidade daquilo que é produzido nas explorações e, consequentemente, chega ao prato ou ao copo do consumidor. «Nós passamos muitas horas com os produtores e, por isso, para além do papel de clínico e de executor, o médico veterinário de campo tem, igualmente, uma função como extensionista rural, como em tempos se chamou, ou seja, tem a responsabilidade de transmitir e explicar as novidades deste sector, sobretudo as obrigações legais que vão surgindo e que são cada vez mais».
Executar para se saber coordenar
Este médico veterinário de campo exerce apenas clínica de grandes animais, sendo especialista em «ruminantes, nomeadamente vacas e ovelhas, e alguma coisa de equinos». Quanto ao porco, «não faço intervenções clínicas a este nível, porque não gosto do trabalho relacionado com este animal», revela.
Se começa a actividade de manhã pela parte sanitária, a tarde fica reservada para as consultas e as cirurgias que aparecem, sendo que «nesta época do ano há bastantes partos». Para além de tudo isto, existe ainda a porção do dia reservada à gestão do ADS.
O organismo «contrata médicos veterinários particulares, sendo que cada um executa o programa de saneamento previsto nos seus clientes», conta José Luís Cachapa. Estes profissionais são os chamados médicos veterinários executores e «é nesta condição que cá estou hoje, na herdade», revela.
A profilaxia sanitária obedece ao Plano Nacional de Saúde Animal. Neste sentido, «cada intervenção pode acontecer uma, duas ou três vezes por ano, dependendo da situação de cada efectivo, e estas têm de ser agendadas», explica, acrescentando que «todas as semanas, no âmbito dessa programação sanitária, visito à volta de meia dúzia de explorações».
Actualmente, são cerca de 70 os profissionais que estão sob a alçada desta instituição em Monforte, um número que o coordenador diz ser suficiente para as necessidades locais. Estima-se que existam cerca de 110 mil bovinos e 230 mil ovelhas nesta zona. Isto dado que o ADS «apenas intervenciona ruminantes», ressalva o médico veterinário, para quem «é determinante que um responsável de um organismo destes conheça os problemas do dia-a-dia da sua área, visto que só assim consegue organizar, com conhecimento de causa, o trabalho das brigadas e interceder, com base nos programas anuais, ao nível das carências da região». Daí defender que a coordenação deva estar sob responsabilidade de alguém que também seja médico veterinário executor.
As dificuldades de se estabelecer no campo
Tendo como áreas de intervenção, segundo o responsável do ADS de Monforte, «a profilaxia médica e sanitária (rastreios, por exemplo, de brucelose e de tuberculose), a clínica propriamente dita e a cirurgia de grandes animais», a profissão de médico veterinário de campo acaba por ser parte integrante do colégio de especialidade de Animais de Produção e Rendimento da Ordem dos Médicos Veterinários (OMV). «É equiparável», informa o coordenador. «Porém, quando me licenciei, em 1982, não havia essa figura da especialidade, que só apareceu mais tarde, com a reestruturação do curso». De modo que, na altura, quem quisesse seguir este ramo da Medicina Veterinária, «teria de o fazer per si, procurando seguir a sua vocação e especializar-se numa determinada direcção», explica José Luís Cachapa, referindo que «creio que actualmente há uma orientação no sentido da especialização na parte final do curso».
De acordo com o responsável pela gestão do ADS, «durante muitos anos houve uma escassez de médicos veterinários de campo». No entanto, «presentemente já há bastantes, pois existem muitos recém-licenciados que resolvem vir trabalhar nesta área. Mas, por outro lado, também é verdade que muitos deles vêm para cá, estão aqui durante uns tempos, e depois vão-se embora». O principal obstáculo que aponta para o estabelecimento no campo daqueles que obtiveram o diploma recentemente é a «dificuldade em arranjar clientes, uma vez que a grande maioria das explorações já possuem os seus técnicos há muitos anos e são criadas relações pessoais, para além da profissional». Algo bem visível nas conversas que se geram entre o médico veterinário, os trabalhadores e o proprietário da herdade. Todavia, continua a acreditar que «de entre os vários jovens que se formam todos anos, há alguns que têm vocação para este tipo de actividade clínica».
A influência das políticas agrícolas
«As grandes explorações do extensivo concentram-se mais aqui, no Alentejo», declara José Luís Cachapa. Segundo este especialista em saúde animal, «a produção pecuária, particularmente aqui, tem rentabilidade e futuro». Isto, alerta, «apesar de neste momento estar a atravessar um período de menos valias, devido ao preço dos cereais e das rações». Não obstante, sabe-se que «são crises passageiras». O fundamental é ter a consciência «da importância do papel que o médico veterinário desempenha neste contexto», sublinha.
Neste sentido, também as políticas agrícolas têm tido muita influência. «Por exemplo, a zona de Monforte, assim como a de Campo Maior, era eminentemente cerealífera, contudo, com a Política Agrícola Comum (PAC) de redução da rentabilidade dos cereais, assistimos a um incremento brutal dos efectivos bovinos», afirma. Mas não só. «Por outro lado, ao terem sido acarinhadas as agro-industrias, nomeadamente as queijarias, procedeu-se a um aumento bastante significativo dos rebanhos de ovelhas de leite». A PAC «é determinante em toda a estrutura agrícola», destaca. Feitas as contas, «esta reconversão tem acontecido desde os últimos dez a 15 anos».
Quanto aos problemas que afectam a sua região de intervenção, José Luís Cachapa fala que «a Norte temos alguns focos de tuberculose, pensamos que devido à coexistência de caça grossa, portanto, de animais não sujeitos a rastreios – no fundo, os agentes portadores e transmissores da patologia – que acabam por conviver com os efectivos bovinos». E ainda os dois focos de brucelose já referidos. Em termos clínicos, «temos doenças emergentes no campo da virologia, como é o caso do IBR ou do BVD. Mais recentemente surgiu o problema da língua azul, no âmbito do qual estamos a efectuar as campanhas de vacinação». No relativo à BSE, «é algo que não representa problema para nós».
Rastreada e vacinada a última vaca, o trabalho na herdade Roque Vaz está terminado por hoje para José Luís Cachapa. Agora, sem tempo a perder, resta apenas trocar de roupa, entrar no carro e seguir caminho, porque a coordenação do ADS já está à espera.