A profissão atravessa uma fase complicada: a ameaça do subemprego aliada ao crescente número de licenciados todos os anos escoados para o mercado pelo sistema de Ensino, e a estagnação que se verifica em alguns sectores a par da evolução de outros, não acompanhada pela classe… são só alguns dos motivos de preocupação para quem vive neste sector em Portugal.
Os médicos veterinários depositam as suas esperanças naquela que tem como objectivo a «defesa do exercício da profissão veterinária, contribuindo para a sua melhoria e progresso nos domínios científico, técnico e profissional, o apoio aos interesses profissionais dos seus membros e a salvaguarda dos princípios deontológicos que se impõem em toda a actividade veterinária», de acordo com o artigo dois, do primeiro capítulo, do seu estatuto.
Porém, o polvo da crise já terá estendido os seus tentáculos ao seio da própria Ordem dos Médicos Veterinários (OMV) e, desde finais de 2006, que a instituição tem sido palco do desenrolar de um conjunto de situações algo controversas. Aliás, de momento, consensual parece ser apenas a ideia de que a resolução desta crise interna na OMV é um passo de gigante para o bem-estar da profissão.
Desafios vêm de fora
Realçando que sendo «uma instituição relacionada com a promoção das ciências, a Sociedade Portuguesa de Ciências Veterinárias (SPCV) não toma posição sobre as questões internas da Ordem», Carlos Godinho, o seu presidente, assegurou que «gostaria de que a situação se normalizasse tão rapidamente quanto possível, porque não é bom para a classe que exista um clima de pouca tranquilidade. Além disso, os seus desafios são no exterior e não internos, daí que não deva consumir energias nessas questões, que apenas fazem com que os profissionais não se concentrem naquilo que é o prestígio da profissão e o reconhecimento das suas mais-valias pela sociedade».
Também Edmundo Pires, do Sindicato Nacional dos Médicos Veterinários, frisando que «não tomamos posição no relativo aos assuntos da OMV», considera, no entanto, «indispensável que a conjuntura volte à normalidade, porque há assuntos que pedem uma colaboração estreita entre a Ordem e o sindicato». O responsável alega ainda que «apesar de terem fins diferentes, as duas instituições complementam-se».
Situações controversas
António Morais apresentou-se como candidato a bastonário em Dezembro de 2006. Não obstante, verificou-se que a sua candidatura «pecava por determinado tipo de irregularidades» que, segundo o médico veterinário, «não eram insanáveis». Afinal, conta, o problema da lista era «precisamente elementos a mais nos conselhos regionais e, por conseguinte, bastava passar a considerá-los como excedentes ou, então, retirá-los da lista». Por outro lado, também um dos membros não tinha as quotas actualizadas, devido a uma alteração da direcção da empresa onde trabalhava, «facto que desconhecíamos na totalidade». Apesar de recorrerem, dizendo que, «dentro de um dia essa irregularidade poderia ser sanada, a Comissão Eleitoral (CE) não aceitou».
Também a candidatura de Ramalho Ribeiro, ex-director da Estação Zootécnica Nacional (EZN), viu as suas listas para o Conselho Directivo (CD) e para o Conselho Profissional e Deontológico (CPD) serem rejeitadas. «A CE fez uma interpretação dos estatutos com base numa alínea que diz que o CPD e o CD deveriam ser constituídos por elementos de todos os conselhos regionais. Mas enquanto este “deveriam” tinha para eles um carácter impositivo, para nós era facultativo. Ao não termos elementos de todos os conselhos regionais, a nossa lista foi inviabilizada, e como não nos foi dado direito a recurso nem a correcção, acabámos por não nos poder apresentar a sufrágio», explica o também professor.
Dada a situação, ambos os candidatos tentaram impugnar as eleições. Todavia, «a providência cautelar interposta não foi por diante, não por o tribunal não nos dar razão, mas porque o CPD não foi capaz, em tempo, de nos provir com o documento que deveria dar entrada no tribunal para que uma acção judicial externa fosse levada a cabo», revela António Morais.
Com todas estas controvérsias em torno do processo eleitoral, várias associações do sector acabaram por se mobilizar, enviando uma carta aos órgãos directivos da OMV e à CE, onde era salientada «a natural independência e equidistância das associações relativamente a todas as candidaturas à Ordem», explana Vieira Lopes, presidente da Associação Portuguesa de Médicos Veterinários Especialistas em Animais de Companhia (APMVEAC), uma das signatárias do documento, acrescentando que defendiam ainda «a transparência do acto eleitoral, do absoluto cumprimento da legalidade, e da garantia do completo esclarecimento de todos os membros das associações signatárias, todos eles membros de pleno direito da OMV. E, consequentemente, na procura da salvaguarda da integridade e do bom nome da nossa profissão, a carta pedia que todos os colegas fossem informados das razões e argumentos de todos os intervenientes no processo eleitoral».
Não obstante, «infelizmente, o pedido feito pelas associações profissionais não foi ouvido pelos responsáveis da Ordem, assim como não obtivemos qualquer resposta a esta carta», termina Vieira Lopes.
As eleições acabaram por decorrer no dia 12 de Dezembro de 2006: a lista do ex-director da EZN acabou por ganhar nos órgãos a que pôde concorrer, entre os quais o Conselho Fiscal e a Assembleia-geral, e o CD e o CPD foram ganhos pela única lista que não foi excluída do processo, a do bastonário José Resende.
Vencidos, mas não convencidos, «os profissionais organizaram-se no sentido de convocar uma assembleia-geral extraordinária para destituir o CD», conta Ramalho Ribeiro, indicando que «há duas condições para se poder fazer uma sessão com esta finalidade: uma delas é por iniciativa dos órgãos actuais, a outra é por acção dos associados». No caso em questão, a assembleia-geral foi o resultado de uma «petição de mais de 500 colegas, ou seja, mais de 10% daquilo que constitui o número de inscritos na Ordem», diz António Morais.
Esta reunião geral aconteceu no dia 2 de Junho de 2007 e, «por esmagadora maioria, decidiu-se destituir o CD e o CPD», continua o ex-director da EZN, «só que estes órgãos, ao acharem que não tinham decorrido os procedimentos adequados, interpuseram uma providência cautelar, que foi aceite. E enquanto não houver decisão judicial, estamos num impasse».
Entretanto, os elementos da Delegação e da Assembleia Regional do Sul apresentaram a sua demissão, assim como os da Assembleia e Conselho Regional do Centro e Manuel Figueiredo, vogal do Conselho Fiscal, que questionado pela VETERINÁRIA ACTUAL acerca das razões para tal, optou por não responder, alegando que as questões colocadas eram «de ordem particular e relativas a uma Ordem em cuja sede e com cujos membros discuto os assuntos dessa organização».
Por outro lado, «o grande descontentamento que se manifesta em relação à actividade dos actuais corpos sociais, nomeadamente do conselho directivo, traduz-se numa sistemática recusa do plano de actividade e orçamento de 2007», assevera Ramalho Ribeiro, sublinhando que «foi chumbado em três assembleias-gerais consecutivas, pelo que o CD só está a funcionar por duodécimos e em termos de gestão corrente».
Porém, também «o orçamento e o plano de actividades de 2008 já foi reprovado uma vez e não sei até que ponto os órgãos sociais em funções pretendem renovar ou repetir uma nova assembleia-geral relativa a esta situação», informa António Morais.
Apesar da OMV estar obrigada a limitar os seus gastos de 2007 ao montante equivalente aos duodécimos das despesas efectuadas em 2006, de acordo com uma nota informativa cedida por Ramalho Ribeiro, o CD aprovou aumentos salariais de 6% aos colaboradores dos órgãos nacionais da OMV, bem como o aumento de 14,5% dos subsídios de refeição. Decisão que obteve o parecer negativo do Conselho Fiscal.
Outra das decisões do CD ao longo do ano de 2007 foi a suspensão de Ramalho Ribeiro da OMV, «invocando a condição de que na altura era director da EZN, um cargo equiparado a subdirector-geral e, como tal, deveria ser exercido em exclusividade, não podendo exercer outras funções, daí não poder ser médico veterinário e, logo, não poder estar inscrito na OMV». Uma atitude que «para qualquer lei é extremamente abusiva e nunca aconteceu no passado», comenta o professor, que fez uma reclamação hierárquica para o CPD em Julho, que «até hoje ainda não se pronunciou». Por outro lado, continua, «as razões invocadas para me suspenderem desapareceram, visto que a EZN, como organismo pertencente ao Ministério da Agricultura, foi sujeito a um processo de reorganização, deixando de existir como EZN, ou seja, as condições que evocaram para me destituir desapareceram».
A VETERINÁRIA ACTUAL contactou a OMV no sentido de obter um esclarecimento em relação a todas estas questões. O bastonário José Resende, que alega estar legalmente impedido de se pronunciar sobre um processo que se encontra em contencioso, remeteu as suas declarações para mais tarde, numa altura de cabal resolução deste caso.
O lado negativo
É inegável que todas estas situações traduzem um desgaste no sector. «Neste momento a classe tem problemas que vão para além daquilo que constitui a gestão da Ordem», afirma António Morais, explanando que «debatemo-nos com grandes dificuldades de emprego, de credibilidade e de peso para poder influenciar determinado tipo de directivas do Governo, onde a OMV tem contado pouco para que essas decisões sejam benéficas à profissão». Como consequência, «temos vindo a verificar sucessivamente um atropelo daquilo que era o espaço do médico veterinário, que actualmente é “pasto” de várias profissões que têm alguma similaridade com a Medicina Veterinária, mas não em termos de habilitações técnico-científicas».
Apesar de ser de opinião, como presidente da Associação Portuguesa de Buiatria (APB), que «assuntos da Ordem só lhe dizem respeito a ela e aos seus associados e que, por isso, não somos muito a favor de uma discussão na “praça pública” sobre os seus assuntos», João Cannas da Silva admite que «a crise que a OMV está neste momento a atravessar é um facto com o qual a classe se debate». O médico veterinário sublinha ainda que «os problemas que atravessamos necessitam de uma Ordem com força e consensual, onde haja uma participação democrática de todos os colegas».
E é por isso que vê, «com grande amargura e tristeza, uma profissão com uma importância fundamental na área da saúde pública e da protecção do consumidor ter uma Ordem que não a serve, preocupada, sobretudo, com coisas perfeitamente mesquinhas».
Daí que num momento em que «a classe está dividida», no fim de contas, sejam as associações profissionais o «suporte de tudo isto, uma vez que agregam pessoas de várias ideologias e instituições e são locais onde é discutida a matéria em causa, quer sejam os pequenos animais, grandes animais ou saúde publica… o que significa que se ultrapassa a realidade política. No fundo, a função destes organismos é produzir e assegurar a formação contínua».
Mas não só. Também faz parte das funções das instituições defender os interesses dos seus membros, assim como dar o seu parecer na elaboração de documentos relativos à profissão. É o caso da AMPVEAC, entre outras, «que está sempre disponível para dar o seu contributo para a elaboração dos diplomas e regulamentos que se pretende virem a regulamentar a nossa profissão», de acordo com o seu presidente.
O lado positivo
Apesar desta crise, que já dura há algum tempo, tanto ao nível da classe, como da Ordem dos Médicos Veterinários, atrevemo-nos a dizer que talvez haja um lado positivo que, ao fim ao cabo, possa contribuir para que se comece a ver uma luz ao fundo do túnel.
«De certa forma tem havido alguma mobilização dos profissionais, que se traduz na participação das pessoas nas assembleias-gerais que têm decorrido, assim como noutras reuniões», revela Carlos Godinho, confessando que «é inequívoco que presentemente há uma mobilização da classe em relação aos seus problemas profissionais… talvez mais do que no passado».
Por outras palavras, «as pessoas não estavam tão preocupadas com a sua Ordem nem com os seus problemas de classe, e agora verifica-se uma consciência mais elevada e mais participativa nas questões profissionais, nomeadamente nas que são do foro da OMV», conclui.
Acções de formação e créditos
Outro dos temas que neste momento preocupa a classe é o Regulamento para Creditação de Acções de Formação e Revalidação da Cédula Profissional que, segundo a nota informativa já referida, invoca no preâmbulo e nos anexos a nova versão dos Estatutos e o Acto Médico-Veterinário, os quais ainda não têm força de lei, pois necessitam de ser aprovados em Assembleia da República.
Defendendo a função que «as associações profissionais têm tido na formação e actualização dos médicos veterinários e, consequentemente, que as mesmas devem ter um papel preponderante e prioritário em qualquer processo de acreditação e creditação da formação profissional», a AMPVEAC enviou uma carta em Outubro de 2007 ao bastonário, onde mencionava, segundo o seu presidente, que «este assunto deveria ser amplamente discutido, que a OMV deveria chamar formalmente a esta discussão as associações, que as regras do processo de acreditação e creditação teriam de ser publicitadas e divulgadas junto de todos os potenciais interessados, para que todos, em pé de igualdade no mesmo espaço temporal, se pudessem candidatar a tal processo».
Este documento não obteve resposta, assim como uma nova carta enviada em Dezembro, onde eram descritas as deliberações resultantes de uma assembleia-geral da AMPVEAC, ou seja, onde a associação requeria «à OMV que o assunto em causa fosse objecto de uma profunda reflexão, que fosse amplamente divulgado, e que a classe não fosse confrontada com um facto consumado ou pouco discutido».
Por outro lato, salienta Vieira Lopes, «importa ainda deixar claro que creditações já atribuídas pela Ordem a alguns eventos e cursos o foram de forma provisória, parecendo portanto não ser certo que seja garantido o provisório anunciado – a obtenção de créditos – em busca do qual, eventualmente, os colegas tenham frequentado essas acções de formação, e pelo qual efectuaram o respectivo pagamento, e em alguns casos de valor bastante elevado».
É neste sentido que «a AMPVEAC entende ser sensato e do superior interesse da classe que a OMV suspenda todo este processo de acreditação e de creditação das acções de formação e de revalidação da cédula profissional, que afinal tem carácter provisório, até que o mesmo seja amplamente discutido no seio da classe e aprovado em assembleia-geral».
Quem também defende a aprovação de um regulamento específico, ao qual todas as entidades formadoras se devem sujeitar, é a APB. João Cannas da Silva, o seu presidente, destaca que «nós não concordamos com a forma, nem com o conteúdo do documento, que está em discussão. Além disso, esta deveria se alargada».
O médico veterinário menciona ainda que «somos defensores das acções de formação contínua e temos noção da sua importância, mas não concordamos com a forma como a Ordem a pretende colocar».
A APB realizou um congresso no ano passado onde foi pedida a acreditação e a atribuição de créditos, algo que «foi concedido, pelo menos provisoriamente», informa João Cannas da Silva, referindo que «estranhamos que haja empresas, nomeadamente estrangeiras, a fazerem formação, creditadas pela Ordem, em virtude uma acreditação provisória, que neste momento não tem valor legal, pois primeiro é preciso aprovar o programa, o que não vai ser fácil, dado que tem de ser revisto e existem demasiadas lacunas».