Nuno Paixão é o ‘homem do leme’, mas assegura: “sozinho não faço nada, esta equipa é fundamental para darmos resposta rápida às situações de animais em perigo de vida que nos chegam todos os dias”. Passámos um dia no Serviço de Urgência e Cuidados Intensivos do Hospital Veterinário Central e contamos como e o que fazem estes profissionais.
O diretor do SUCI (Serviço de Urgência e Cuidados Intensivos) é também diretor clínico do HVC e admite que a sua paixão pela área da urgência e cuidados intensivos será responsável pela importância que o serviço tem no Hospital Veterinário Central. Nuno Paixão fez um estágio em Comportamento Animal nos Estados Unidos, “mas todo o tempo livre passava-o no serviço de urgência e comecei a gostar”, acabando por fazer uma residência nesta área, no Canadá.
Hoje, o HCV tem um serviço de urgência com 48 pessoas dedicadas (com vínculo à empresa), como médicos, enfermeiros e auxiliares, fora estagiários e alguns internos. “Tem de ser assim, com pessoas dedicadas ao serviço se queremos manter o nível de prontidão e segurança”, salienta o médico veterinário, adiantando que “há um anestesista específico e também cirurgiões de urgência, que nos permitem fazer uma cirurgia no máximo numa hora, se necessário”.
O responsável explica que “80% dos clientes vêm de Lisboa”, para um hospital que se situa na Charneca da Caparica. Alguns vêm referenciados por outros médicos veterinários, mas muitos donos trazem os animais por iniciativa própria, talvez por indicação de familiares e amigos ou apenas pesquisa na Internet. “Temos clientes da Malveira e mesmo de Santarém”.
Tudo organizado e pensado
Para funcionar bem, refere Nuno Paixão, “um SUCI tem de ser organizado, não planeado, mas tudo tem de ser pensado antes de as urgências acontecerem, para que todos saibam muito rapidamente o que fazer”. E isso implica muito estudo antecipado e muita organização.
A organização testemunhámos bem nesse dia. Por exemplo, assim que um animal foi retirado de uma marquesa e colocado numa incubadora, imediatamente um enfermeiro desinfetou a marquesa e colocou-a arrumada num local que não impedisse a passagem, mas pronta a poder ser usada quando necessário. Reparámos que uma auxiliar repôs logo os materiais do Carrinho de Urgência. Na sala de urgência tudo tem rodas, até os armários onde estão os medicamentos e os fluidos, por exemplo, para que “tudo se possa reorganizar de acordo com as necessidades”.
Gisele Telles, uma das internas brasileiras que está no final do ano de estágio em Portugal, foi a cicerone da nossa reportagem durante uma boa parte da manhã, já que Nuno Paixão esteve em consulta e o chefe de equipa, José Vieira, ocupado a tratar de um ‘Código Vermelho’, o animal mais crítico internado naquele dia.
Donos podem ficar com os animais
Antes de seguir para as consultas, Nuno Paixão já tinha explicado a situação desse gato, que “foi atacado por dois cães e chegou com rutura abdominal, com evisceração, perfuração na coxa, tendo rasgado bastantes músculos. Foi submetido a cirurgia de urgência e está neste momento em choque séptico, com uma infeção sistémica”. Ao lado do animal estiveram sempre o médico veterinário e uma outra médica, bem como a dona.
O diretor afirma que “estimulamos a que os donos participem o mais possível, pelo que podem sempre acompanhá-los na urgência e cuidados intensivos, podendo inclusive dormir no hospital, o que se tem revelado muito importante para a recuperação dos animais”. Ainda sobre o conforto dos animais, e para minimizar o mais possível a situação de stress em que se encontram, “os cães só ficam em jaulas quando é mesmo necessário”, senão existem camas normais no internamento onde eles estão, “como se estivessem em casa”. Naquele dia, eram dois os ocupantes das camas do internamento.
Já os gatos, que normalmente reagem pior ao internamento e o facto de estarem num local que não conhecem com muitas pessoas e barulhos, podem ser colocados numa sala de internamento no 1º andar se se mostrarem mais stressados. Antes da nossa ‘ronda’ pelo serviço um aparte para dizermos o porquê de tantos brasileiros escolherem estagiar no HVC: “o Dr. Nuno é muito conhecido no Brasil, dá palestras e cursos presenciais e online, e é considerado um dos melhores intensivistas, por isso há muitos alunos a escolherem vir para cá”, explicou Gisele.
Rapidez é fundamental
A médica interna começou por explicar os equipamentos e materiais disponíveis no serviço de urgência, salientando que “está tudo separado, arrumado sempre nos mesmos locais – armário e Carrinho de Urgência – e bem identificado, para poder ser usado com a maior rapidez possível”. O SUCI tem ecógrafo e está mesmo ao lado da sala de RX digital (comum ao resto do hospital), tem equipamento de análises rápidas e de hemodiálise “para um animal que tenha sido envenenado, por exemplo”, bem como eletrocardiograma e oxigénio “que está junto ao Carrinho de Urgência”.
Gisele conta que a primeira coisa a ser feita quando chega um animal à urgência em estado crítico é pegar na Ficha de Avaliação de Urgência e fazer os procedimentos para salvá-lo e que permitem responder às questões ABC: Airways (vias aéreas) – verificar se as vias aéreas estão livres; Breathing (respiração) – verificar se está a respirar; Circulation (circulação sanguínea) – verificar se há pulso e se o coração está a bater.
Sobre este ponto, Nuno Paixão refere que “entubar e iniciar ventilação dá tempo para conversar e analisar as opções”. O diretor do HVC diz ainda que “a avaliação primária é para descobrir o que pode causar a morte imediata do animal”, por exemplo, e frisa: “nas verdadeiras paragens cardiorrespiratórias para atingirmos o pico de sucesso temos três minutos, no máximo, e apenas 10% das reanimações têm sucesso”. Depois, adianta o diretor do SUCI, “o internamento do paciente é uma grande responsabilidade porque estamos a tirar aquele animal da família pelo que tem de ser muito bem ponderado. Se vai ficar connosco é para fazer tudo o que é possível”.
Tudo fica escrito na ficha do paciente
O médico veterinário revela que “faz parte da prontidão ter sempre três pessoas disponíveis, um médico que orienta e mais duas a três pessoas. A disponibilidade de ‘mãos’ é muito importante porque permite fazer várias coisas ao mesmo tempo. Tentamos ter sempre um clima constante de transmissão de conhecimento e assim beneficiamos todos, porque temos mais disponibilidade de ajuda e nós estamos sempre a atualizar o conhecimento para transmitir aos outros”. E acrescenta: “Hoje, por exemplo, o Dr. José é o ‘chefe de sala’, eu estou cá sempre para qualquer consulta que seja precisa e há sempre mais médicos. Aqui temos acompanhamento permanente dos animais e o mesmo caso passa por três ou quatro médicos para ser menor a possibilidade de escapar algo ou de se cometer erros”.
Nuno Paixão salienta que “duas ou três cabeças pensam melhor e evitam erros”. O diretor adianta que não faz parte da escala, mas quando está em Portugal – viaja muito – está sempre no Hospital e “faço muitas cirurgias de urgência porque gosto de me manter ativo e a urgência é sempre desafiante, temos de ir à descoberta e tomar decisões rápidas”.
Gisele conta que os internos trabalham em turnos de 12h e ciclos de sete dias: “sete dias de dia, sete de noite, sete de estudo (com projetos diversos), sete de anestesia e sete dias de folga”.
Voltando à ‘ronda’ pelo SUCI, Gisele explica que além da Ficha de Avaliação de Urgência, o dossier dos pacientes internados tem depois várias fichas onde “é tudo registado, mas mesmo tudo, o que fazemos e o que se passa com o animal”. Por exemplo, são registados todos os tratamentos, as doses, quem os administrou e a que horas, mas também a alimentação, se come, o quê e quantas vezes por dia, como é a urina e as fezes e a sua frequência, entre muitas outras informações, para que todos possam em qualquer altura ter acesso ao processo completo do paciente”.
“Não cobramos internamento, não temos ‘diária’”
Sobre o custo da medicina de urgência e internamento, Nuno Paixão explica à VETERINÁRIA ATUAL que “não cobramos internamento, não temos ‘diária’, cobramos tudo o que é gasto e os nossos atos, para que haja algum nível de justiça”. O diretor do HVC salienta que “o grande problema é que as expetativas do médico e do dono são diferentes, há quase sempre grandes conflitos de expetativas” e não está a falar apenas de valores, mas também de recuperação do animal. Quando perguntamos o que é mais difícil na medicina de urgência, Nuno Paixão não hesita: “até podemos estar preparados para a morte dos animais, mas não estamos para lidar com a dor do dono… vivemos num negócio de emoções”.
Também José Vieira, já depois de ter estado várias horas com o gato em estado crítico, admitiu que o mais difícil “é o vínculo emocional que se cria com os animais e com alguns donos. Quando corre mal é muito difícil, mas quando corre bem é maravilhoso”. Por outro lado, diz que “o que me estimula no serviço de urgência e cuidados intensivos é que, de um momento para o outro vira o caos e isso ainda me satisfaz”. Ao longo do dia entraram mais dois gatos (uma fêmea e um macho) para a urgência e reparámos que todos os colaboradores, desde os médicos às rececionistas, quando chegam fazem uma ‘ronda’ pelos internados para se inteirarem da situação e, principalmente, distribuírem mimos: “acredito que o carinho também cura”, diz Nuno Paixão.