Depois de uma bem-sucedida carreira académica, Edward M. Fowler destacou-se na medicina veterinária zoológica tendo optado por reformar-se em 1991, mas continuando ativo na American Association of Zoo Veterinarians.
Autor de vários livros sobre medicina de animais selvagens, em 2011 Edward Murray Fowler concedeu à VETERINÁRIA ATUAL uma entrevista no seguimento da Conferência Internacional sobre Doenças de Animais Selvagens e de Zoo, que decorreu no Jardim Zoológico de Lisboa.
“Temos de saber como conter o animal”
Cresceu numa quinta no estado do Utah, nos Estados Unidos. Isso influenciou a sua decisão de trabalhar com animais?
Completamente. Primeiro queria ser agricultor, mas depois entrei para a Marinha americana onde trabalhava como enfermeiro num hospital. Gostava de ser médico, mas não queria tratar de pessoas, não gostava. Foi então que tomei a decisão que queria ser médico veterinário.
Quais eram os seus animais preferidos?
Gostava de animais de grande porte, principalmente cavalos. Comecei a minha carreira a tratar de cavalos.
Como ocorreu essa passagem de enfermeiro para médico veterinário, onde estudou?
Primeiro tirei o diploma universitário em Zootécnica e depois entrei na Iowa State University College of Veterinary Medicine, onde me formei e comecei a trabalhar com cavalos.
O que o fez trocar os cavalos pelos animais selvagens?
É uma pergunta interessante. Era muito feliz a trabalhar com cavalos, era cirurgião de cavalos quando fui para a universidade, até que o diretor da University of California Veterinary School decidiu que queria ter uma pessoa encarregue de animais selvagens. Chegou mesmo a colocar um anúncio no jormal e esteve à espera de respostas durante dois anos. Ninguém concorreu. Hoje deveria haver uns 2000 candidatos a concorrer ao cargo. Ao fim de dois anos continuava a queixar-se por não ter ninguém a responder ao anúncio, até que perguntei porque não me deixava experimentar.
Porquê animais selvagens?
Quando comecei a trabalhar em medicina veterinária, mesmo como veterinário de cavalos, já trabalhava com animais selvagens. O primeiro paciente que tive, depois de me ter candidatado para o lugar, foi um camelo durante as filmagens da obra ‘Os Dez Mandamentos’, com Charlton Heston. O meu primeiro relatório foi sobre um elefante, portanto estava disposto a trabalhar com qualquer tipo de animal.
É por isso que é especialista em camelos, lamas e alpacas?
Isso veio depois, uma vez que o nosso hospital não tinha capacidade para receber camelos e elefantes, ate que começamos o nosso programa com animais de zoo e eles vinham ter comigo. Foi ai que comecei a ser veterinário de um pequeno zoo em sacramento, na Califórnia, e que mudei dos cavalos para um pequeno zoo.
Lembra-se do primeiro animal que tratou nesse zoo?
Provavelmente um gibão. Era um animal que tinha fugido da sua jaula e tive de alvejá-lo, imobilizá-lo e voltar a colocá-lo na jaula. Estávamos em 1967.
Nessa altura como era a medicina veterinária em animais selvagens?
Era muito primitiva, mas visitava outros zoos e falava com outros médicos veterinários, partilhávamos informação. Desde então que a minha carreira tem sido partilhar informação. Adoro ensinar.
É professor. Reformou-se do trabalho no terreno?
Não, ensinava ao mesmo tempo que era veterinário de zoo. Levava os estudantes ao zoológico e a outras instalações com animais selvagens na região, estava disposto a tratar todos os tipos de animais. Também escrevi uma autobiografia à qual dei o nome: De Colibris a Elefantes.
Então gosta de todos os animais? Não tem um preferido ou algum que receie?
Não digo que não tenho receio dos animais, mas sei como os conter, mesmo com cobras venenosas sei como fazer isso. Só fui ferido apenas uma vez, por um papa-formigas sul-americano, mas a culpa foi minha. Atirou-me ao chão e não me largava até que todos que o estavam a segurar o largaram. A culpa foi minha, logo acho que não tenho medo de animais. Temos é de ter muito cuidado porque se estamos relutantes a trabalhar com eles, não agimos de forma apropriada quando é necessário. Aprendi a fazer isso, ensinei técnicas de contenção em cavalos, vacas, ovelhas, cães, gatos, sabia como o fazer.
Qual a diferença entre tratar um animal selvagem e uma vaca, um cavalo, um gato ou um cão?
Não diria que é diferente, porque medicina é medicina. Temos de ter conhecimento das diferenças a nível de comportamento, de fisiologia, temos de saber como conter o animal e isso é provavelmente o mais importante no que diz respeito às diferenças entre os animais.
Na sua carreira tem algum episódio que se recorde?
Uma das aventuras mais excitantes que vivi foi fora de um zoo. Estávamos a tentar imobilizar um antílope a partir de um helicóptero e tenho medo de alturas (risos). Estava à beira do helicóptero, a balançar de dez metros para dez mil metros apenas com uma tira de cabedal a segurar-me ao helicóptero. Esperámos até que o animal estivesse a dormir e saí com o meu colega do helicóptero para colocar o animal num sling para ser transportado para um camião.
O meu colega tinha tirado a seringa do antílope e como não nos podiam levar no helicóptero ao mesmo tempo que o animal ficámos à espera que nos viessem buscar. Até que o meu colega abriu a seringa e verificou que nem todo o medicamento tinha sido aplicado, por isso espalhou-se pelos seus dedos. Como é uma droga extremamente potente e absorvida pela pele, disse-me: Murray, tens o antídoto? Eu não! Tu não tens? Não! (risos). Foi um episódio emocionante, pensei: como é que faço respiração artificial?? Não havia rádio e estávamos a muitos quilómetros de distância de ajuda. Sobrevivemos, mas foi um episódio emocionante.
E recorda-se de algum episódio com um animal em que temesse pela própria vida?
Não, mas houve preocupações com algumas pessoas que trabalhavam comigo. Lembro-me de imobilizar um elefante e ele começar a balançar antes do fármaco fazer o seu efeito. O tratador não queria afastar-se do animal e finalmente o elefante caiu. Felizmente que era um homem atlético e conseguiu escapar, porque senão teria ficado transformado numa panqueca! (risos)
Até em cativeiro, um animal selvagem continua selvagem para sempre?
Um animal selvagem é um animal selvagem e apesar de podermos treiná-los, contê-los, tratá-los, vão ser sempre animais selvagens. Por muito que tenhamos um animal a viver connosco, é sempre um animal selvagem e mesmo com mamíferos marinhos, como as orcas, podemos treiná-las para fazerem coisas extraordinárias, mas já houve acidentes em que pessoas ficaram feridas pelo animal que às vezes até está só a brincar.
Há algum animal no zoo que seja mais difícil de tratar que outros?
O animal mais perigoso do zoo é o urso polar pois é completamente imprevisível. Temos sempre de o conter através de processos químicos e algumas vezes é muito difícil. Aprendi algumas lições importantes, como mencionei ontem na minha apresentação. Uma vez tentei conter um urso polar que imediatamente se colocou de lado na jaula, deitado, como se estivesse a dormir. Nem respondia quando lhe tocávamos com uma vara comprida. Pensei logo que algo não estava bem porque eles não se deitam assim, a não ser na televisão (risos).
Estava a fingir?
Sim, estava. O que fiz foi voltar a carregar a arma e disparar novamente. Quando finalmente entrámos descobri que a primeira seringa não estava a funcionar bem e não tinha injetado qualquer produto naquele animal.
E como sabia que ele estava a fingir?
Porque sabia que aquele não era um comportamento normal para um urso polar!
Quais as doenças mais comuns nos animais selvagens nos zoos?
Provavelmente as mais comuns são os traumas, ou seja, quando eles se magoam a si próprios ou a outros animais. Mas as doenças infecciosas não são muito comuns, ocorrem por exemplos nos felinos que têm as mesmas doenças que os gatos domésticos, por isso temos aí um ponto de partida. Mas temos métodos de prever essas doenças através de vacinas, tal como faríamos com os gatos domésticos. Da mesma maneira que com os lobos, ou raposas usamos os cães como modelo, ou algum do gado como modelo para algumas espécies de antílopes. Não temos bons modelos para os animais marinhos.
E elefantes?
Temos de saber como lidar com eles. Outra coisa importante com os animais do zoo, em especial os elefantes, é ter a pessoa que trabalha com eles diariamente e que fique com eles durante todo o procedimento. É muito importante, principalmente com os elefantes. Um veterinário que trate um elefante sozinho é muito pouco sensato porque um animal daquele tamanho pode matar e matam. É importante utilizarmos as pessoas que sabem o que estão a fazer.
Um dos segredos dos veterinários nesta área é a observação, observar o comportamento dos animais?
Sim, mas também temos de confiar no conhecimento que os tratadores têm do comportamento dos animais porque existem cerca de 50 mil espécies de animais vertebrados e não podemos ter experiência com todos, mas podemos ter alguma experiência com os animais do nosso zoo e podemos aprender com outras pessoas que são especialistas em comportamento. Muitos zoos têm especialistas em comportamento no seu staff.
Tem algum animal preferido?
Gosto de todos os tipos de animais, mas talvez porque tenha trabalhado mais com chitas e elefantes, gosto muito de elefantes.
Publicou 27 livros. O que o leva a escrever um livro?
Havia uma necessidade, era preciso. O primeiro livro que escrevi foi sobre contenção porque não havia nada publicado sobre contenção de animais selvagens. Portanto decidi que tinha de o fazer.
Qual o truque para conter um animal?
Não há truque, há conhecimento do comportamento do animal, o que utiliza para se defender, como ataca e com alguns animais temos de utilizar químicos. Usamos também a compressão e hoje em dia já utilizamos o treino, ou seja, conseguimos treinar um crocodilo para responder para que deixe tirar uma amostra de sangue. Também podemos fazer isso com os tigres e fazemos muito com elefantes.
Na sua casa, que tipo de animais tem?
Agora não tenho nenhum, mas já tive cães, gatos, chinchilas e cheguei a levar para casa animais para cuidar. Os meus filhos estavam sempre a pedir-me um macaco e eu sabia que não eram bons animais de estimação. Uma vez tive um macaco jovem que precisava de ser hospitalizado e então levei-o para casa. Bastou uma hora para decidirem que já não queriam como animal de estimação. Mordeu-os, urinou em cima deles, puxou a toalha da mesa e nunca mais tive pedidos de macacos (risos).