Escolas médicas reconhecidas mundialmente aplicam há muito o conceito One Health ou uma só saúde, conceito reconhecido também pela OMS e que se enraíza lentamente entre nós. A saúde pública veterinária (SPV), especialidade há muito sedimentada, trata precisamente da componente veterinária, agora buscando adquirir a justiça de parceria na saúde pública global. Muito caminho há ainda pela frente pois, embora desconheça a generalidade de atividades levadas a cabo por todo o país, por parte das academias e das organizações ligadas à sanidade animal e higiene pública, nota-se na área veterinária uma muito maior adesão a este conceito.
De facto, a presença de médicos veterinários (MV) nas câmaras municipais, nas áreas da segurança alimentar e sanidade animal, como nos centros de atendimento médico veterinário (CAMV), onde diariamente tratam ou previnem numerosas zoonoses, nos matadouros na função de inspetores sanitários (IS), nos laboratórios, nas fronteiras fazendo cumprir as leis, de trânsito de animais ou alimentos, nas centenas de auditorias anuais a empresas produtoras de alimentos, e perdoem-me se esquecer algum outro local ou função, não podiam deixar de marcar os profissionais da MV, pelo que o conceito entrou muito facilmente no léxico dos MV.
Na área da medicina humana e sistema nacional de saúde (SNS), permita-se-me chamar-lhe saúde humana para designar o conjunto, o progresso e aplicação do conceito é substancialmente mais lento e, quando acontece, é frequentemente pela mão de colegas (Simpósio de Saúde Pública do Barroso, já na sexta edição), mas não lhe conheço qualquer hostilidade. Aliás muito recentemente o Instituto Nacional de Saúde, Dr. Ricardo Jorge (INSA) integrou um consórcio europeu nesta temática, esperando, pessoalmente, que inclua a participação de médicos veterinários nas áreas relevantes. Desconheço ainda, provavelmente, outras ações levadas a cabo por parte de entidades ligadas à saúde humana, nesta área.
Esta introdução, embora redundante para a classe, não pretende esgotar o tema, mas antes serve para introduzir o assunto que aqui me traz, a valorização da SPV como aspeto a promover por parte da classe, por imperativo de saúde pública global. Naturalmente que a proporção da componente saúde humana na saúde pública é enorme e estende-se também à área do ambiente, entre outros, mas frequentemente atribui-se à componente SPV uma importância redutora, que urge reorientar. infelizmente, as dificuldades na implementação e desenvolvimento do conceito vêm mais da tutela, do que da falta de reconhecimento por parte da saúde humana
Costumo dizer que o componente mais importante do SNS, e também o mais eficiente e o mais barato, é o nosso sistema imunitário. E também que são as medidas de higiene, conjuntamente com a vacinação, os componentes importantes pelo extraordinário aumento da esperança média de vida, verificados desde o século XX. Desde logo o saneamento, recolha de lixo, água tratada canalizada e hábitos de higiene pessoal destinam-se a proteger-nos do contacto com os diferentes agentes físicos, químicos e microbiológicos que põem a nossa saúde em risco.
A lógica da SPV centra-se na busca de afastamento dos perigos da mesa do consumidor ou da circunstância da sua presença nas espécies animais, com que convivemos mais de perto. Os alimentos, no caso de origem animal, estão presentes à nossa mesa várias vezes por dia, todos os dias da nossa vida. Será difícil ignorar a sua importância, como será difícil ignorar a importância dos responsáveis pelas diversas “inspeções” veterinárias acima enunciadas, em especial nos matadouros.
E quem mais do que os profissionais da MV para compreender esta problemática da higiene pública, que recrudesceram a sua atividade com laboratórios dedicados desde 1913, há mais de um século (LNIV), embora com atividade muito anterior?
O meu repto é desafiar a classe, como um todo, a repensar e pedir o reconhecimento da sua atividade, com a dignidade inerente e de forma proporcional à sua importância real. Seja qual for a designação preferida, higiene pública ou segurança alimentar, este tema tem de ser considerado como pilar básico no sistema de garantia da segurança dos alimentos que chegam à nossa mesa, assim como demais atividades ligadas à SPV. Um investimento na SPV traduzir-se-á, a curto prazo, na poupança de recursos no SNS por redução de tratamento, internamentos ou baixas.
A título de exemplo diria que a componente da saúde humana no orçamento de Estado se traduz em cerca de 900€/pessoa/ano, enquanto a componente saúde pública veterinária, com a presença que tem diariamente, como vimos, se traduz num orçamento aproximado de 7 €/pessoa/ano, estes distribuídos pelas câmaras municipais (MVM), DGAV, DRAP’s e ASAE. Como ignorar esta desproporção mesmo sendo evidente a importância da SPV para o bem estar das populações?
Abria aqui um parêntesis para, pessoalmente, recusar a identificação da dignidade das funções, e o/ou da profissão, com um simples “banho financeiro”. A dignidade da função significa muito mais, significa reconhecer-lhe a sua bondade e conceder-lhe os meios materiais e organizacionais necessários ao cumprimento dos seus objetivos. Temos assim 3 pilares que, em conjunto, devem ser trabalhados: um primeiro o reconhecimento da problemática, um segundo os meios materiais e um terceiro o aspeto organizacional.
Lamentavelmente todos eles estão descurados, ou a caminho da desarticulação, mais ou menos profunda, por parte dos titulares do ministério da agricultura (chamo ministério da agricultura aos distintos gabinetes que nas últimas décadas têm (di)gerido a pecuária, perdoe-se-me a piadola, e não somente ao atual MADRP.
Quanto a reconhecimento da problemática, a realidade não é lisonjeira, pois é conhecida a posição tendencial do atual detentor da pasta face aos MV em geral, e em particular aos IS, com incompreensão factual e profunda da problemática da missão, procurando sempre empurrar a IS para as câmaras municipais, ou seja quem for que a pague, e ignorar a SPV, demonstrando uma hostilidade evidente à hierarquização dos IS pela DGAV. Algumas questões se me colocam:
- Será que a passagem dos vencimentos, do ministério da Agricultura para o mistério da Administração Interna pouparia dinheiro aos contribuintes?
- Trata-se de uma manobra de cosmética para aparentar um equilíbrio financeiro que o MADRP evidentemente não tem?
- Será falta de força política, no meio do governo, para reivindicar meios financeiros que permitam ao MADRP equilibrar o orçamento?
- Reconhece-se ou não a bondade da missão da SPV e da sua forçada menoridade atual?
Recordaria que, na presidência holandesa da EU, em 2016, foi organizada uma conferência em que se pretendia a presença dos ministros da Agricultura e da Saúde de todos os países membros, sob o tema “Resistências Antimicrobianas”. Naturalmente que os ministros portugueses não se dignaram comparecer, nem sequer ao nível de Secretário de Estado (SE). Seria uma boa ocasião para demonstrar preocupação ou, pelo menos, conhecimento do problema.
O segundo pilar seria a redução, sem paralelo, dos meios humanos e financeiros, por demais evidentes para todos, iniciado no triste desempenho do penúltimo ministro da Agricultura de Sócrates (e o subsequente quase desmantelamento do ministério) com a redução de quase 50% dos seus efetivos, sendo aquele que mais pessoal perdeu, percentualmente, na dita reorganização da função pública (já se imaginou uma redução dos efetivos da Saúde ou da Educação, mesmo que seja só uns 10%?). Talvez para o MADRP, a agropecuária não tenha qualquer relevância no contexto nacional?
Ainda a este propósito, já no momento atual, mais algumas questões se me colocam:
- Qual será a situação da SPV face à redução de horário para as 35 horas semanais, na função pública? Representa uma redução de 12,5% da mão de obra.
- Virá a ser compensada?
- Ou levará mais uma vez os nossos colegas à exaustão?
- Ou serão as Câmaras Municipais a contratar MV sem qualquer vínculo à DGAV, sob a tutela do ministério da Administração Interna?
- E os demais profissionais, necessários às auditorias em todas as direções de serviços?
- Virão a ser tratados como os hospitais do SNS, que já começam a dramatizar?
Embora seja o ministério da Agricultura o responsável maior pelo financiamento da SPV, não tem havido suficiente empenho e conhecimento por parte de muitos dos seus responsáveis, em especial a turma dos repetentes. Este é um conceito aplicável a um pequeno grupo que se eterniza concomitante e cansativamente, governo atrás de governo, procurando não o estudo, proposta e modernização, mas a redução de custos a qualquer preço. Estas figuras têm vindo a repetir funções, quais alunos repetentes, com pouco talento, sensibilidade e muita ignorância dos factos, também hostilidade para com a SPV.
(Sugeria que estes responsáveis se retirassem dos seus gabinetes de marfim, e de visitas programadas, qual exercício circense de inutilidades com que preenchem o tempo fora do ministério, e aparecessem um dia no turno da noite de um matadouro, ou num núcleo do interior do país, sem rádios nem televisões, sem políticos locais, lambe-botas de serviço e basbaques à procura de atenção, sem propaganda política, presidente da câmara e dirigentes da concelhia e da distrital, deputados e almoço de carne assada e outros ruídos de fundo, e assim poderem realmente ouvir até os grilos e os pássaros a cantar, enquanto com todo o interesse e calma se inteiram das reais condições de trabalho dos nossos colegas, nas linhas de abate e nos núcleos do interior do país, que chegam a estar reduzidos a dois elementos (a fazer serviço de campo e de atendimento), enquanto os presidentes de câmara se afadigam em impedir o seu encerramento.
Sobretudo que procurassem inteirar-se do porquê das opiniões convergentes dos profissionais da área, dirigidas no sentido da verticalização. Porque se não deixa aos especialistas a possibilidade de debater e ajudar a definir, com o seu conhecimento, a estrutura organizacional mais adequada à sua especialidade?
Em desespero de causa sugeriria aos IS que abandonassem a OMV e o SNMV e se organizassem em Loja! Façam valer os vossos aventais de proteção! Ou procurem passar para o ministério da Saúde.
O senhor Diretor Geral poderá entender não dizê-lo em público, mas a SPV necessita urgentemente de reconhecimento e compreensão, sobretudo por parte da tutela, investimento humano (em estado dramático) e financeiro (em rutura permanente) e de manter a estrutura organizacional, não de pulverizá-la por municípios, mantendo a atual estrutura dos MVM, hierarquizados pela DGAV. Necessita de um corpo de inspetores sanitários aumentado, sob controlo da DGAV.
Resumiria dizendo que a SPV merece uma mudança de paradigma, devido à sua importância, ser-lhe reconhecida a mais valia no âmbito de One Health, com o consequente financiamento humano e material e estrutura organizacional adequados à sua missão.
E merece, sobretudo, outro Secretário de Estado.