Se por um lado, a notícia de uma eventual cura da leishmaniose trouxe expectativas acrescidas aos profissionais de medicina veterinária, por outro, há que ter cautela e esperar novos desenvolvimentos. Estaremos mais perto de uma revolucionária inovação?
A notícia chegou no começo deste mês e apanhou de surpresa a classe médico-veterinária: a cura da leishmaniose pode ter sido descoberta por uma equipa de investigadores portugueses liderada por Anabela Cordeiro da Silva, do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S), no Porto.
Conforme noticiado pela VETERINÁRIA ATIUAL no passado dia 3 de setembro, a entidade portuense integrou um consórcio internacional que descobriu uma molécula capaz de tratar esta zoonose endémica em Portugal em cães.
O tema de capa da passada edição de junho da nossa publicação foi dedicado ao tema da leishmaniose, para o qual entrevistámos alguns médicos veterinários, professores universitários e investigadores ligados a esta área. Perante os bons resultados da investigação liderada por Anabela Cordeiro da Silva, pedimos a opinião de alguns dos participantes no artigo de junho – e não só. Apesar do entusiasmo perante um avanço científico tão significativo, também é unânime a necessidade de prudência. Por um lado, a esperança. Por outro, defende-se que é importante aguardar novos desenvolvimentos e gerir bem as expectativas.
Quando entrevistada pela VETERINÁRIA ATUAL e questionada sobre se este fármaco pode vir a ser aplicado em gatos, a investigadora explicou: “Pelos conhecimentos que temos, não vemos razão para não ser eficaz em gatos, contudo, nestes animais ainda estamos a definir a doença com um estudo que está em curso no grupo para posteriormente podermos testar o novo fármaco nestes animais.”
As conclusões do estudo foram reunidas num artigo que está agora a ser preparado pelos diferentes parceiros que participaram no trabalho, acrescentou. “A nossa intenção é submeter à Nature no formato letter, contudo, desde a submissão até ser publicado, o caminho pode ser curto ou longo.”
Um avanço e uma esperança
Sem dúvida: esta notícia é um avanço e também uma esperança. De qualquer modo, para nos podermos pronunciar mais detalhadamente, teremos de aguardar por informação adicional sobre estes animais que estavam doentes e que foram tratados, que os investigadores irão certamente divulgar em revistas científicas.
Enquanto o fármaco não estiver no mercado, continua a ser importante contar com as opções terapêuticas já disponíveis. O mesmo é válido para a prevenção com inseticidas repelentes e vacinas, que ajudam a suportar o conceito de que, se possível, vale mais prevenir do que tratar.
Luís Cardoso, professor associado de Parasitologia e Doenças Parasitárias do Mestrado Integrado em Medicina Veterinária da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, membro da direção do Colégio Europeu de Parasitologia Veterinária, especialista veterinário europeu em parasitologia e membro da associação LeishVet.
Mais um passo promissor
Tratando-se de um projeto importante e com uma equipa internacional a trabalhar, afincadamente e durante o tempo que foi, a investigadora Anabela Cordeiro da Silva tem razões para estar satisfeita com os resultados obtidos. É evidente que se trata de “mais um passo promissor”, mas até chegar à cura generalizada da leishmaniose canina e felina, a meu ver, mais passos terão de ser dados. Faço votos para que a referida equipa os consiga desenvolver e obtenha o maior sucesso, quer no que diz respeito às leishmanioses, quer em relação às outras doenças causadas por tripanossomatídeos, nomeadamente a doença de chagas e a tripanossomose humana africana, ou doença do sono, que também fazem parte do projeto.
Maria Odete Afonso, professora de Entomologia Médica da UEI Parasitologia Médica, Global Health and Tropical Medicine no Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa.
Prevenir a infeção será sempre a melhor opção
A leishmaniose canina, causada por leishmania infantum, é sem dúvida alguma, uma das doenças parasitárias mais mediáticas e prevalentes em cães em Portugal. As opções farmacológicas atualmente disponíveis para o tratamento desta protozoonose, quer pelo seu custo, efeitos adversos ou baixa eficácia na cura parasitológica, estão longe de ser ideais. Neste contexto, foi com enorme agrado que li a notícia sobre a existência de um composto extremamente promissor, que aparentemente leva à cura da leishmaniose em cães. Apesar de o estudo estar, seguramente, envolto num enorme rigor científico, o facto de ainda não ter sido publicado limita a elaboração de uma opinião mais objetiva, sob pena de esta se basear em especulações.
Assumindo a informação – ipsis verbis – divulgada pelo jornal Público e pela revista VETERINÁRIA ATUAL, acho que deve ter-se alguma precaução no que toca à gestão de expectativas que a notícia traz à classe médico-veterinária. Sem dúvida que se trata de uma “luz ao fundo do túnel” para a cura da leishmaniose em cães, todavia, existe ainda um longo caminho a percorrer e muitas perguntas por responder. Como é do conhecimento de todos, a patogenicidade da leishmaniose é muito complexa, estando a evolução da doença diretamente relacionada com a resposta imunológica desenvolvida pelo hospedeiro (variável não só consoante a espécie, mas também dentro de cada espécie). Será assim extremamente interessante analisar os resultados da performance do tratamento com o composto em epígrafe, em cães infetados de forma natural, de diferentes raças e com comorbilidades.
Por fim, independentemente da cura para a leishmaniose canina poder ser uma realidade num futuro próximo, a minha opinião é que prevenir a infeção será sempre a melhor opção.
André Pereira, médico veterinário, doutorando em Ciências Biomédicas – especialidade em Parasitologia, na Unidade de Parasitologia Médica do Instituto de Higiene e Medicina Tropical.
Expectativa e prudência
Tendo em conta ainda não ter sido publicado o artigo científico, a reação é de expectativa e prudência.
A verificar-se o que foi anunciado é, sem dúvida, um avanço extraordinário e muito promissor para a medicina veterinária. Mas não considero, com base nesta notícia, haver dados suficientes para se poder afirmar que estamos perto da cura e do uso comercial.
Quando o estudo for publicado iremos perceber qual a amostra utilizada e com base em que critérios clínicos. Sabemos que existem vários estádios da doença, e é importante perceber em quais é que este tratamento poderá ser realmente eficaz e qual a reação em animais com outras doenças concomitantes.
Margarida Monteiro, médica veterinária responsável pela medicina interna do Hospital Veterinário do Atlântico.
A melhor estratégia é a prevenção
Esta notícia abre uma nova janela de esperança no tratamento da leishmaniose canina e cria em todos os médicos veterinários uma expectativa muito grande no combate a esta doença.
Aqui, no nordeste transmontano, a leishmaniose canina tem uma expressão endémica. Ao longo de 30 anos de atividade clínica, já diagnostiquei centenas de casos e, infelizmente, os tratamentos seguidos de acordo com os protocolos convencionados são muitas vezes infrutíferos, penosos para os animais e onerosos para os tutores.
Se este novo fármaco provar o nível de eficácia deste ensaio, com menos riscos e um custo mais reduzido, teremos uma nova “era” no tratamento da doença e na sua possível cura.
Continuo, no entanto, a acreditar que a melhor estratégia é sempre a prevenção, utilizando todas as ferramentas de que dispomos atualmente, ajustando os protocolos em função do paciente e dos fatores de risco.
Duarte Diz-Lopes, diretor clínico da Clínica Veterinária VetSantiago.
Estudos promissores
Sempre que leio uma notícia ou artigo que fala de cura para uma doença crónica sinto um misto de sensações que vão do simples “isto é bom demais para ser verdade” (que infelizmente já vi acontecer mais vezes do que gostaria) até à verdadeira esperança e a uma grande curiosidade para saber mais sobre a técnica ou o fármaco. Quando essa notícia refere um dos nossos piores inimigos do dia a dia, o entusiasmo é ainda maior.
Em boa verdade, a leishmaniose acompanha-me desde que ingressei no curso de medicina veterinária em Vila Real. Depois, trabalhei em três zonas endémicas (Girona, Lousã e Coimbra, em que metade dos cães que se apresentava à consulta na Vet Póvoa era seropositivo à doença).
Desde essa altura, muita coisa mudou, as prevenções inespecíficas passaram a ser muito mais utilizadas, apareceram novas profilaxias e até novos fármacos. A redução de novos casos foi manifestamente notória, no entanto, na nossa prática clínica, associada à teoria da evolução das espécies, dizem-nos que começam a aparecer parasitas multirresistentes aos fármacos atuais. Esta situação leva a que os períodos de remissão das patologias, após administração dos produtos leishmanicidas, sejam progressivamente mais curtos.
Pelo descrito, aguardamos com muita expectativa e entusiasmo as novidades destes estudos promissores.
Ricardo Almeida, diretor clínico da Vet Póvoa e consultor de gestão em vários centros de atendimento médico-veterinários do País através da Stratvet
Profissionais nacionais cada vez mais reconhecidos
Efetivamente, é uma notícia que nos enche de orgulho por vários motivos. Recordo que, além da população animal, esta doença coloca em risco mais de um bilião de pessoas em quase cem países, com especial incidência em África e no Brasil, sendo responsável por 20 a 30 mil mortes anuais. Julgo que a população em geral não tem a noção exata da dimensão e impacto desta patologia (esta e da doença do sono e de chagas).
É gratificante e prestigiante estarmos envolvidos em projetos desta dimensão. Sinto que o valor dos nossos profissionais é cada vez mais reconhecido no exterior e, fiéis à nossa história, continuamos a desempenhar um papel relevante sempre que nos são dadas oportunidades ou condições.
Cada vez mais a indústria farmacêutica, e não só, olhará para nós com respeito e admiração, abrindo as portas a novos projetos.
Recordo que atualmente o tratamento da leishmaniose não só é dispendioso, como se reveste de inúmeros problemas secundários que condicionam o sucesso do mesmo e a vida do próprio animal. Este fármaco além de eficaz (12 em 12 horas é excelente), é seguro e fácil de administrar. É referido também que o valor do tratamento será mais económico, possibilitando certamente que um maior número de tutores possa optar pelo tratamento em vez da eutanásia.
Seguro, eficaz, fácil de administrar, acessível, relevante… Julgo que estão reunidas todas as condições para ser um sucesso. Parabéns à equipa de investigadores pelo seu trabalho.
Miguel Matos, diretor clínico do Hospital Veterinário Ani Mar
Gerir as expectativas
Todas as notícias acerca de avanços no estudo de uma doença são animadoras, principalmente quando provêm de uma equipa de renome como esta, que tem acrescentado muito ao conhecimento sobre este parasita que tanto sofrimento causa, tanto a animais como a seres humanos. Relembro que a leishmaniose é uma zoonose que afeta seres humanos em zonas tropicais e pacientes imunodeprimidos mesmo aqui na Europa. Esta investigação também tem repercussões para a nossa própria espécie.
Em relação às expectativas que esta notícia causa, e perante a informação disponibilizada, parece-me que esta investigação se encontra ainda numa fase de estudo preliminar numa espécie-alvo. Faltarão muitas etapas para validar este medicamento como opção no tratamento da leishmaniose. Assim de repente, faltará, pelo menos, um estudo com um número maior de animais e que inclua um grupo de controlo escolhido ao acaso (randomizado) e um estudo clínico com uma população real alargada (estudo de coorte, p ex). As principais agências reguladoras mundiais exigem estes e outros ensaios para conceder autorizações de introdução no mercado a qualquer fármaco. Eu lembro-me que a primeira vacina contra a leishmaniose que surgiu no Brasil chegou a ensaios clínicos avançados antes de ser retirada por não ser eficaz.
Além disso, após o medicamento estar autorizado, vão surgindo, na prática clínica, dados relativos ao desempenho do medicamento em condições reais que, por vezes, poderão condicionar o seu uso (efeitos secundários, contraindicações, etc.)
Não pretendo de todo ensombrar a importância deste trabalho, muito pelo contrário. Gostaria até de parabenizar esta equipa do Porto que tem um enorme mérito pelo seu trabalho na área da parasitologia. Apenas gostaria de deixar claro que poderá passar algum tempo até termos acesso clínico a este fármaco, pelo que deveremos gerir as nossas expectativas.
Teresa Teigão, médica veterinária clínica de pequenos animais