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Opinião

Consulta de pediatria: conquistar o paciente e prevenir problemas de comportamento

cachorro veterinaria atual

Já todos ouvimos comentários dos tutores como: ‘Ele odeia vir aqui!’; ‘Ela sabe exatamente onde está!’; ‘O meu outro gato era exatamente igual!’; ‘Pedi a estes dois amigos para virem comigo para ajudarem a segurá-lo!’; ‘Ela não é nada disto em casa!’; ‘Ele não queria morder!’; ‘Porta-te bem!’; ‘Era tão diferente quando era pequena!’….

O que estará a acontecer? Estarão os tutores a educar os seus animais “instintivamente” da mesma forma ou estarão a aprender o que fazer a partir de consultas anteriores em que determinado comportamento teve um resultado favorável? Será possível que o comportamento dos tutores influencie o comportamento do animal? Obviamente que sim! Como resultado do reforço não intencional de comportamentos indesejados (como afagar o animal enquanto está a rosnar numa tentativa de o acalmar) ou de interpretações erradas da linguagem do animal, que está apenas a recorrer a uma estratégia agressiva defensiva funcional.

Mas quando o tutor menciona ‘Ela era tão diferente quando era pequena!’, qual poderá ser a justificação para estas mudanças? Tanto tutores, como técnicos muitas vezes apenas reconhecem o comportamento quando o animal se porta “mal” (como quando é agressivo ou tenta morder!). Todos os outros sinais prévios que o animal deu antes de escalar até à dentada foram ignorados (e/ou reforçados). Se estes sinais precoces, indicadores de um estado emocional negativo, como o medo ou a ansiedade, não forem identificados atempadamente, é possível que haja uma mudança para uma resposta agressiva que surja da necessidade do animal responder a um manuseamento inadequado, que irá exacerbar esta emoção negativa.

Dog eating from the bowl

Por todas estas razões, a prevenção é melhor que a cura. O primeiro contacto com a equipa veterinária, sobretudo na consulta de pediatria, tem de ser muito positivo. O animal deverá sair do consultório a “adorar” as pessoas e o ambiente, desejoso de ali regressar. Recordem-se que a primeira experiência só acontece uma vez! Não vale a pena tentar fazer “amigos” depois de se dar a injeção. Usem sempre algo muito saboroso, que poderá ir de croquetes de dieta seca, a dieta húmida, biscoitos, gel/pasta, peixe desidratado ou pedacinhos de frango (são apenas alguns exemplos que podem inclusivamente solicitar aos tutores que tragam sempre), e durante a primeira abordagem ofereçam “gratuitamente”, isto é, sem requerem qualquer comportamento do animal. Quando o animal estiver já focado na recompensa, então passamos apenas a reforçar os comportamentos desejados e apropriados.

 

Como vamos dar a primeira vacinação (usem a agulha mais fina e mais afiada possível – alguns colegas recomendam inclusivamente trocar de agulha entre a que aspirou a vacina e a que irá inoculá-la). O animal estará já condicionado pelo reforço positivo dado antes e deverá ser dado durante a administração da injeção. Devemos ainda garantir que não há uma associação negativa com a dor/medo secundária a uma incorreta contenção. Deve ser evitada uma contenção demasiado “forte” antes e/ou depois da injeção, prevenindo que o animal antecipe uma interação negativa no futuro (que poderá acontecer se a contenção estiver associado com algo doloroso, que vai acontecer em seguida). Dever-se-á pedir aos tutores que não acariciem o animal imediatamente após a injeção, se este tiver apresentado um comportamento indesejado ou agressivo. Na primeira consulta, o veterinário deverá ainda ensinar o tutor a promover uma habituação ao maneio veterinário (observar as orelhas, unhas, palpação, etc), para que aprenda a tolerar o exame físico durante a consulta.

O objetivo do veterinário quando manuseia o seu paciente é providenciar um tratamento que pretende fazer o animal sentir-se melhor. No entanto, quando o animal é manuseado com força e “rapidez”, este compromisso está quebrado e há sempre o risco de ter ocorrido uma “lesão comportamental”. A memória de uma “má experiência” levará o animal a antecipar a “ameaça” que significará a próxima visita ao veterinário e resultará em comportamentos defensivos, que levam a que usemos técnicas de contenção ainda mais marcantes do ponto de vista comportamental e de bem-estar animal. O grande perigo é que cada visita resulte num escalar ainda maior de medo, que resulte em comportamentos indesejáveis até ao ponto em que o animal é impossível de ser manuseado. Há também evidências estudadas de que a experiência do que se passou na clínica veterinária poderá ser de tal forma marcante que o animal passe a generalizar, passando a usar agressividade defensiva dirigida a todos os humanos e não apenas na clínica.

 

A consulta de pediatria é por isso um momento crucial na vida de qualquer animal, cachorro ou gatinho. E deveremos sempre ter em conta que esta consulta se divide basicamente em três momentos:

1. Programa vacinal e desparasitação;

 

2. Conselhos nutritivos;

3. Conselhos comportamentais.

 

E neste último ponto deveremos prestar especial atenção com os cachorros. Não que não seja importante nos gatinhos mas, uma vez que o cão adulto irá ter maior contacto com o mundo “exterior”, é ainda mais importante garantir que estamos a transmitir os conselhos adequados. Se comprometermos a aprendizagem adequada durante a infância, poderão originar-se a médio ou longo prazo problemas comportamentais graves, como fobias e agressividade, comportamentos compulsivos, estados de ansiedade, entre outros, que aumentarão as probabilidades de abandono e mesmo de eutanásia.

Assim, durante o período de sociabilização que pode ir das 3 às 16 semanas, com especial enfoque entre as 3 e as 12 semanas em que o cachorro estará mais apto a adaptar-se e a aceitar experiências novas, o cachorro deve ser apresentado a uma grande variedade de estímulos (diferentes pessoas, cães e outros animais, sons, objetos, diferentes pisos), sempre de forma positiva e gradual. No entanto, durante este período ocorre também uma fase profilática importante para cada cachorro: a vacinação! Os programas de vacinação de rotina para cachorros são implementados até às 16 semanas de vida, numa altura em que há alterações importantes no seu sistema imune.

Os recém-nascidos obtêm imunidade passiva através da ingestão de colostro (que contém anticorpos maternos) nas primeiras horas de vida e que lhes confere proteção contra doenças. A altura ideal para a administração de vacinas depende do declínio desses anticorpos maternos, de modo a não comprometerem a eficácia da vacina e a permitirem a estimulação endógena do sistema imunitário do cachorro e a aquisição de imunidade ativa. Este “período crítico ou vulnerável” de um cachorro corresponde ao período em que existem anticorpos maternos suficientes para inutilizar a vacina, mas insuficientes para o proteger contra agentes patogénicos.

Estudos sugerem que o período crítico inicia-se, para zonas de risco, às 5-6 semanas, em 60% dos casos às 7-8 semanas e todos os outros casos às 9-12 semanas, havendo ainda uma variação individual, o que torna impossível determinar o período critico exato de vulnerabilidade de cada cachorro. Os dados imunológicos dizem-nos que os programas de vacinação devem terminar entre as 12/13 semanas para obtermos soroconversão na presença de anticorpos maternos. Os programas de vacinação clássicos iniciam-se às 6 ou 7-8 semanas dependendo do risco e estilo de vida do dono e animal. Em alguns casos, como em raças que apresentem maior suscetibilidade à doença ou animais que se encontram em zonas de risco pode administrar-se doses extra de reforço conforme indicação do veterinário assistente.

No entanto, existem o que se designa por protocolos de vacinação integrados, que têm em conta a sociabilização. Estes protocolos introduzem uma monovalente 15 dias entre duas tetravalentes, garantindo segurança contra doenças como a parvovirose numa fase bastante precoce. Assim, num programa de vacinação que se inicie às 7 semanas com uma tetravalente, administra-se às 9 semanas a monovalente e às 12 semanas o reforço da tetravalente. Num programa dirigido para elevado risco contra parvovirose acrescenta-se ao anterior a monovalente às 16 semanas e num programa dirigido para elevado risco contra a esgana administra-se às 16 semanas a tetravalente. Estes protocolos integrados dão-nos a possibilidade de sociabilizar de forma segura cachorros a partir das 10 semanas.

Apesar dos dados referidos, ainda se praticam programas de vacinação menos atuais, que se consideram completos apenas por volta das 16 semanas, altura em que a janela de socialização está praticamente fechada para a maioria dos cachorros, sendo depois demasiado tarde a apresentação do cachorro ao mundo que o rodeia. Esta é a situação que nos deixa com o dilema se será possível socializar corretamente um cachorro sem o vacinar, pelo menos na sua totalidade. Ainda assim temos alternativas. Não só as vacinas atuais são mais eficazes a estimular o sistema imunitário do cachorro precocemente, como é possível minimizar bastante os riscos inerentes a um programa de vacinação incompleto, se socializarmos o cachorro em ambientes seguros.

Que alternativas existem então para socializar corretamente um cachorro? Podemos socializar desde o primeiro momento em casa, basta identificar os estímulos com que terá que lidar no dia-a-dia e montar cenários com diferentes objetos e pisos, sons, etc. Convidar visitas para irem a casa, receber crianças, receber outros cães cujo estado de saúde e vacinal é conhecido são excelentes formas de socializar o cachorro.

Já na rua, realmente não deve ser colocado no chão onde passam cães cujo historial não conhecemos, mas pode dar-se uma volta de carro, pode ser transportado ao colo, pode ser acarinhado por quem passa, ver, ouvir e cheirar o que o rodeia para que vá havendo uma habituação. Outra opção complementar ótima para socializar o cachorro é participar em aulas de educação/socialização. Nestas aulas, os cachorros têm oportunidade de aprender competências sociais, de socializar com pessoas, cães, crianças e os tutores aprendem sobre temas importantes para prosseguir com a sua educação. Existem também aulas específicas para gatinhos, com ou sem a presença dos mesmos. Dependerá de quem organiza e dos objetivos que se pretendem atingir.

 


Gonçalo Graça Pereira
Gonçalo da Graça Pereira

Médico Veterinário Diplomado pelo Colégio Europeu de Bem-estar e Medicina Comportamental

Centro para o Conhecimento Animal

 

 

Referências bibliográficas

  1. Arroube, S: É possível socializar sem vacinar? In: Proceedings do IV Congresso Nacional da PsiAnimal, Sintra, 2014
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