Dirigentes da classe e médicos veterinários estão de acordo, bem como responsáveis dos produtores nas áreas do leite e da carne. Muito tem de mudar no sector dos bovinos, mas a maior alteração terá de ser na forma como veterinários e produtores encaram o seu papel na exploração.
João Cannas da Silva, presidente do European College of Bovine Health Management (ECBHM, do European Board of Veterinary Specialisation) e da Associação Portuguesa de Buiatria, defende que «as explorações têm de ser geridas profissionalmente e a classe veterinária tem um papel a desempenhar nesta gestão. É necessário que o médico veterinário colabore com o produtor mas também é preciso que este seja colaborante. Quer o veterinário quer o produtor têm de mudar de atitude, têm de ser parceiros».
Uma posição partilhada por George Stilwell, professor da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Técnica de Lisboa e especialista em bovinos. «O médico deve ser um conselheiro do produtor, para a área clínica, de nutrição, de gestão, das instalações, no impacto ambiental da exploração e bem-estar dos animais, etc. Deve ser uma pessoa envolvida nas decisões do dia-a-dia da exploração e fazer uma abordagem mais global a todos os aspectos ligados à exploração».
Do lado dos produtores, Francisco Carolino, presidente da Federação Portuguesa das Associações de Bovinicultores (FEPABO) e também vice-presidente da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), concorda que «esse é o caminho», afirmando estar «globalmente de acordo com o que defendem os dois médicos veterinários».
Neste momento, em muitas explorações, salienta Francisco Carolino, a intervenção do veterinário já se faz em dois níveis: clínico, no controlo da saúde dos efectivos, e noutro de acompanhamento mais técnico e profiláctico, para sensibilizar o produtor para a necessidade de prevenção, através de programas de vacinação e desparasitação e de controlo do bem-estar animal, por exemplo». O papel das associações é mostrar aos agricultores que «os custos ficarão diluídos e que vale a pena investir nesse acompanhamento e criar o maior número possível de sinergias entre o médico veterinário e o produtor», alerta o responsável.
Também José Campos de Oliveira, presidente da LEICAR – Associação dos Produtores de Leite e Carne e vice-presidente da CAP, considera que «é fundamental uma cooperação cada vez maior entre agricultor e médico veterinário, cujo trabalho deve ir muito além da prescrição de medicação para os animais. Deve aconselhar e alertar para a necessidade de prevenção e contribuir para uma maior e melhor produção de leite nas explorações».
Com todos de acordo, vamos então ver que mudanças cada um dos grupos admite ter de fazer e aconselha o outro lado a realizar, para que possam trabalhar em equipa no interesse do sector nacional dos bovinos.
Nova medicina em animais de produção
A mudança do lado dos médicos veterinários tem de começar nas mentalidades. Todas as explorações têm de ter um médico veterinário responsável, é obrigatório por lei, «mas os próprios médicos têm de mudar a sua forma de trabalhar. Seja com uma vaca ou com mil, o que o produtor habitualmente quer é que o veterinário vá lá, trate a vaca doente e depois se vá embora. Mas o médico tem de lhe mostrar que não pode ser assim. Quando, por exemplo, é chamado pela terceira vez para ver uma vaca com mastite tem de analisar cuidadosamente as camas, a ordenha, os desinfectantes que são usados, etc. para prevenir que volte a acontecer», afirma George Stilwell.
Mas, muitas vezes, alerta João Cannas da Silva «o produtor não vê que o veterinário está do seu lado, que o está a aconselhar para melhorar a sua produção. A prevenção é uma filosofia fundamental na gestão de uma exploração de bovinos e o médico veterinário tem de ser ouvido porque é quem sabe o que o animal necessita e a sua função é cada vez mais evitar os problemas clínicos na exploração. Mas também ajudar a planear tudo para minimizar os custos».
Na mesma linha, vai o pensamento do presidente da LEICAR, que defende «uma maior cooperação entre agricultores e médicos veterinários». José Campos de Oliveira afirma que é, de facto, necessária uma maior intervenção dos médicos veterinários, mas não só exploração a exploração, também ao nível da definição de planos de erradicação de algumas doenças, talvez através da Ordem dos Médicos Veterinários. O também vice-presidente da CAP destaca duas das chamadas “doenças de produção” – IBR e BVD – que afectam e «causam prejuízos enormes nas explorações leiteiras, principalmente da região de Entre Douro e Minho».
Há vários países que já implementaram programas de vacinação de seis em seis meses. «Já alertei o Ministério da Agricultura e a Direcção-Geral de Veterinária para a necessidade de implementar um programa de vacinação mas ainda não avançou. Também neste caso, o papel dos médicos veterinários é fundamental, porque sabem o que se está a passar, por isso deveriam estar ao lado da produção e exigir ao Estado um Programa de Erradicação destas doenças», defende José Campos Oliveira.
«Não tenho qualquer dúvida que se o médico veterinário passar a ser o “médico de família” dos nossos animais, isso é benéfico», garante, por seu lado, Francisco Carolino. O presidente da FEPABO assegura ainda que «da nossa parte, estamos disponíveis para uma reflexão conjunta para discutir como essa cooperação entre médico veterinário e produtor se pode aplicar na prática – para depois podermos transmitir e sensibilizar os produtores – porque consideramos que tem toda a razão de ser».
«O College defende que o futuro da medicina veterinária nos animais de produção está na multidisciplinaridade. O veterinário tem de saber um pouco de tudo, interligando saúde e produção, mas o ideal será a criação de equipas multidisciplinares veterinárias para animais de produção que abarquem todos os aspectos da exploração (tendo sempre em mente a rentabilidade), desde a médica, à gestão, passando pela nutrição, as instalações, o maneio, a comunicação, etc.», afirma o presidente do ECBHM.
«No futuro, os médicos veterinários e os produtores têm de se associar, têm de cooperar e a melhor forma de os médicos prestarem um serviço completo é através da criação de empresas com profissionais ligados à área mas com especializações multidisciplinares, empresas que forneçam serviço completo, “do prado ao prato”», especifica George Stilwell, salientando que «o médico que escolhe a área de animais de produção não pode agir da mesma forma que o que segue animais de companhia. Claro que é importante salvar os animais mas é preciso insistir sempre na prevenção».
Mas, para que a mudança seja possível no futuro tem de passar também pelos saberes, ou seja, pelos cursos de medicina veterinária. João Cannas da Silva frisa que «os cursos de medicina veterinária têm de começar a orientar-se no sentido da multidisciplinaridade, oferecendo mais especializações na área de produção animal. Há oportunidades para jovens médicos veterinários no sector dos bovinos mas é preciso que os cursos tenham novas disciplinas e novas especializações».
George Stilwell concorda que há oportunidades de emprego para jovens veterinários neste sector mas salienta que «não haverá lugar para todos», alertando para a previsão de excesso de médicos veterinários, devido aos seis cursos existentes. «Costumo dizer aos meus alunos que gostariam de trabalhar no sector bovino que não desistam à primeira e insistam. Mas claro que não podem querer ficar em Lisboa e no Porto, têm de ir para o campo», diz o professor da FMV.
Uma gestão mais profissional das explorações
Quanto às mudanças necessárias nas explorações de bovinos, médicos veterinários e produtores estão de acordo: passam por formação e uma gestão profissional, que inclua a equipa veterinária. Os dois grupos estão também lado a lado no reconhecimento de que as explorações leiteiras estão em muito maior risco do que as de produção de carne.
«A indústria da carne tem menos problemas do que a do leite porque os industriais de carne se juntaram e definiram uma estratégia de aposta no produto transformado que, devido à mais-valia, pode ser comercializado a preços mais elevados», afirma João Cannas da Silva.
«A mais-valia é incontornável mas no momento da compra, principalmente em alturas de crise como a que temos vivido, o que conta é a carteira», diz Francisco Carolino da FEPABO, acrescentando que «as raças autóctones têm estruturas associativas eficazes que apoiam os produtores e, em geral, no Sul as explorações são maiores, com mais animais, de produção extensiva e uma gestão mais empresarial mas no Norte as explorações são de menor dimensão e em muitas os produtores já têm muita idade».
Um problema que afecta mais ainda as vacarias de leite, que estão fortemente concentradas no Centro e Norte do País, com a região de Entre Douro e Minho a ser responsável por cerca de 45% de todo o leite do Continente, de acordo com o presidente da LEICAR.
George Stilwell salienta que a maioria das explorações leiteiras «ainda dependem muito de mão-de-obra, é um sector pouco profissionalizado e dominado pela pequena quinta familiar, onde há muita falta de organização». João Cannas da Silva diz, por seu lado que «é necessário apostar na formação dos produtores, mas não da forma como foram ministrados vários cursos de “jovens agricultores” que não serviram para nada, e é também fundamental a reciclagem dos produtores mais velhos».
Reconhecendo que a profissionalização do sector é fundamental e afirmando que «temos vindo repetidamente a chamar a atenção em seminários, colóquios e outros encontros de agricultores para a necessidade de uma gestão profissional das explorações», José Campos de Oliveira alerta que, neste momento, os produtores não têm condições para avançar com mudanças. A grande maioria das vacarias de leite, «pequenas e grandes, estão em grandes dificuldades, completamente endividadas, e se o Governo não aprovar medidas excepcionais de apoio ao sector, receio que mais de 50% das explorações leiteiras de Entre Douro e Minho e da Beira Litoral desapareçam», diz.
O presidente da LEICAR considera que só «com uma linha de desendividamento a dez anos, com carência de dois, os produtores poderão ter condições para pagar à banca, à Segurança Social, aos fornecedores e respeitar as exigências para se candidatarem ao PRODER e reconverterem as suas explorações para cumprirem as normas de bem-estar animal e outras» e avançarem com uma gestão mais profissional das explorações, que poderá ter de passar por algumas uniões.
José Campos Oliveira admite que o problema está «no modelo de produção onde impera um encabeçamento muito elevado e leva a custos de produção altos. Temos insistido também com os produtores para se unirem e partilharem máquinas e equipamentos, para assim rentabilizarem e gerirem melhor os seus investimentos e explorações», mas a mudança de mentalidade leva tempo.
Mas não há dúvidas que a rentabilidade de muitas explorações decorre de um problema de gestão. George Stilwell diz: «conheço alguns produtores holandeses que têm explorações no Sul de Portugal (principalmente Norte Alentejano) e que dão lucro, são bem geridas. A gestão de uma exploração agrícola exige profissionalismo, técnicos e actualização constante».
«Há, de facto, problemas de gestão. Quando o leite aumentou para 90 cêntimos na euforia de 2008, muitos produtores fizeram investimentos “desmedidos” e hoje estão em dificuldades. Mas conheço produtores holandeses, por exemplo, de duas vacarias com cerca de 300 vacas cada, que conseguem produzir leite a 18 cêntimos, enquanto muitos outros o produzem a 28 ou mesmo 30 cêntimos, não conseguindo rentabilidade… o problema tem de ser de gestão», conclui João Cannas da Silva, salientando que os holandeses foi só um exemplo, também há muitas explorações portuguesas rentáveis.