A medicina veterinária vive dias de crescimento exponencial, mas também de mudanças nem sempre fáceis de gerir. Novas leis, novos estatutos, o risco de sofrer doença mental e a antiga questão do reconhecimento das especialidades são desafios para quem dirige um CAMV atualmente.
Existem vários desafios a enfrentar no setor e cada diretor clínico terá a sua experiência dependendo do local onde exerce. Na edição impressa de julho/agosto da VETERINÁRIA ATUAL fazemos um balanço do setor, debatendo a entrada e integração dos grandes grupos, emigração de jovens profissionais, currículos dos cursos universitários e as oportunidades de recrutamento e retenção de talentos. Mas existem outras preocupações que os responsáveis por CAMV enfrentam atualmente. João Araújo, diretor clínico do Hospital Veterinário Bom Jesus (HVBJ), em Braga, membro da direção clínica Ibérica da IVC Evidensia e presidente da Sociedade Europeia de Emergências e Cuidados Intensivos considera que o setor está em rápido crescimento e tem assistido a melhorias desde que começou a trabalhar até aos dias de hoje. “Acho que a gestão de expetativas a nível de carreira nas novas gerações é para mim o maior desafio e é algo em que temos de pensar todos em conjunto para perceber como queremos que a profissão evolua”, defende. Por outro lado, a integração da inteligência artificial e da telemedicina são dois pontos muito importantes nos próximos anos e gostava de assistir “ao surgimento de programas de Residência abertos em Portugal para não ser necessário obrigar os jovens colegas a emigrar quando querem optar por este caminho”.
O tema das especialidades já tem décadas ainda sem solução à vista. “A necessidade de falarmos sobre as ‘especialidades’ nacionais ou como lhe quisermos chamar também me parece um assunto de extrema importância e acho que neste caso temos de ver o que fizeram países como o Reino Unido e tentar chegar a um consenso.” Não será possível agradar a todos, mas para o diretor clínico, algo deverá ser feito pois “existem muitos colegas com elevado conhecimento que deveriam ter as suas competências reconhecidas de forma oficial”. Por último, gostaria de assistir à aposta das universidades em colegas diplomados para as suas equipas clínicas e de ver as mesmas a desenvolverem “departamentos médicos de excelência”.
“Temos de saber quais são os nossos limites, reconhecer qual é o nosso trabalho e qual é o momento de reencaminhar. No final, o cliente volta, pois, sabe que foi bem acompanhado” – Beatriz Sinogas, Clínica Veterinária das Avencas
  No HVBJ, a presença diária de especialistas europeus veio elevar o nível do trabalho e tornar a equipa mais competente nos casos mais complexos. “Não acho que a simples presença de diplomados resolva todos os problemas e claro que há bons e maus diplomados, tal como há bons e maus generalistas, mas o nosso caminho passa pela presença crescente de diplomados aqui no HVBJ”, explica João Araújo. O hospital abriu uma residência em medicina interna com o médico veterinário Rodolfo Oliveira para Beatriz Mendonza que, mais tarde, se irá juntar à equipa. “Espero que, no futuro, possamos ter departamentos independentes de diversas especialidades. Tenho pena que em Portugal quase não haja residências abertas e que os colegas que queiram este tipo de formação tenham de sair do País para isso acontecer.” O HVBJ quer contribuir para que, em breve, não tenha de ser assim.
A médica veterinária e diretora executiva da Torres Pet, em Torres Novas, Clara Ferreira, confessa que neste CAMV não existe propriamente a necessidade de ter especialistas europeus na equipa. “Acho que é muito importante termos pessoas cada vez mais ‘especializadas’ no sentido lato da palavra, ou seja, com grandes conhecimentos sobre algumas áreas. Não creio que em veterinária venha a acontecer como em medicina humana em que há especialistas para tudo e julgo que é importante ver o animal como um todo.” Na sua opinião, as especialidades têm o seu lugar como apoio ao clínico geral. “Temos alguns problemas em referenciar pois estamos um pouco longe de Lisboa, os especialistas têm maior dificuldade em vir cá e os clientes em se deslocar, mas é cada vez mais uma realidade.” Mas tendo em conta o caminho percorrido pela medicina veterinária e com a existência de grandes grupos, os especialistas pelo Colégio Europeu justificam-se mais “nos grandes hospitais e nos grandes centros urbanos”.
João Paulo Costa, diretor clínico da Trás-os-Vet, localizada no interior do País considera que a matéria da especialização está há em fase de estruturação “há tempo demais” e defende que “é fundamental organizar e estruturar a diferenciação e acreditação de especialistas, seja apenas nesta distinção qualitativa, seja em dois níveis de credenciação de acordo com o nível de qualificação, nomeadamente especialista e certificado”. Seria apenas suficiente a figura de especialista? O médico veterinário considera que sim pois, caso contrário, “será demasiado confuso e poderá até causar algum grau de desconfiança e de banalização junto dos destinatários dos serviços médicos veterinários”. É urgente reconhecer, credenciar, controlar este nível de qualificação para benefício “da classe, dos técnicos credenciados e, acima de tudo, pela valorização dos cuidados médicos veterinários e dos serviços prestados”.
As especialidades estão muito bem implementadas em França e em Inglaterra porque existe um serviço de medicina veterinária muito semelhante ao Sistema Nacional de Saúde português, defende Beatriz Sinogas, diretora clínica da Clínica Veterinária das Avencas, na Parede, Cascais. “Em Portugal, temos uma população que não se pode dar ao luxo de ter em medicina veterinária um cardiologista, um anestesiologista, um cirurgião… porque não há dinheiro para isto. Claro que as especialidades são ótimas e, se eu tivesse tempo, também faria a minha, na área de cirurgia, por exemplo, que é aquela de que gosto particularmente, da mesma forma que realizei as minhas pós-graduações para saber mais e aprofundar conhecimentos”, explica. O facto de ter uma família, dois filhos e uma clínica para gerir não lhe permite ter tempo para ir para fora do país fazer uma especialidade. Mas se, no futuro, o nosso País passar a ter um Colégio de Especialidade, a médica veterinária gostaria de ter essa oportunidade e avançar.
Por outro lado, e considerando que lá fora, “os portugueses são conhecidos pelos que ‘fazem tudo e fazem bem’, Beatriz Sinogas considera que, por vezes, as especialidades retiram alguma capacidade em outras áreas. Quando precisa de referenciar algum caso para uma especialidade em particular, opta por reencaminhar para os que conhece e que considera serem os melhores. “Tenho a sorte de ser de uma geração que tem especialistas muito bons em várias áreas”, afirma. E, acrescenta: “Temos de saber quais são os nossos limites, reconhecer qual é o nosso trabalho e qual é o momento de reencaminhar. No final, o cliente volta, pois, sabe que foi bem acompanhado.”
“Acho que a gestão de expetativas a nível de carreira nas novas gerações é para mim o maior desafio e é algo em que temos de pensar todos em conjunto para perceber como queremos que a profissão evolua” – João Araújo, Hospital Veterinário Bom Jesus
O que há a melhorar?
A preocupação de Clara Ferreira, na área da gestão, à qual se dedica, uma vez que não faz prática clínica “é fazer coincidir a parte de objetivos a médio, longo prazo da clínica em termos de crescimento e de margens com as necessidades e o bem-estar da equipa”. Defensora de que as empresas ganham tanto mais quanto os colaboradores ganharem, aposta continuamente na melhoria de condições dos funcionários. “Ao nível do setor, uma das questões que me preocupa mais é a alteração das ordens profissionais porque é importante manter a qualidade. Julgo que será muito complicado ter outras pessoas, nomeadamente políticos, a dizerem-nos como temos de trabalhar sobretudo a nível de Saúde Pública”, defende.
O colega João Paulo Costa corrobora esta opinião e demonstra alguma perplexidade com o recém-aprovado estatuto da Ordem dos Médicos Veterinários “cuja versão final ainda não é conhecida” à semelhança de outras ordens. O mesmo poderá “retirar ainda mais competências à classe, nomeadamente na abertura que deixa para o seu exercício, praticado por qualquer indivíduo, sem a obrigatoriedade de ter formação específica e qualificada em medicina veterinária. Puramente inimaginável”, partilha. E, questiona: “Desde quando é ao governo que cabe decidir e determinar as regras de funcionamento e de proteção de cada classe, banalizando e vulgarizando o seu exercício?”. Agrada-lhe o facto de algumas ordens já terem espelhado publicamente o seu total descontentamento, indo até mais longe, ao “avançarem com prováveis formas de luta capazes de boicotar o normal funcionamento de entidades, garantias e serviços”.
Também a lei do medicamento veterinário preocupa Clara Ferreira pois a sua implementação é muito mais difícil em meios mais pequenos. “Com a entrada nos grandes grupos, muita coisa vai mudar e julgo que a tendência será haver mais progressão para hospitais e consultórios privados mais pequenos e cada vez menos clínicas porque, ou se tem uma estrutura bem organizada, o que custa muito dinheiro ou não se consegue avançar porque não é economicamente rentável e porque o que é exigido a um médico que trabalha numa clínica média é cada vez menos tolerado”, defende. Por último, considera que é crucial melhorar a capacidade de comunicação com o cliente. “As pessoas não nos dão a importância que merecemos nem ao acompanhamento que damos ao animal.”
A preocupação de Clara Ferreira, diretora executiva da Torres Pet, na área da gestão, à qual se dedica “é fazer coincidir a parte de objetivos a médio, longo prazo da clínica em termos de crescimento e de margens com as necessidades e o bem-estar da equipa”.
Como evitar o burnout
Cada novo membro na Trás-os-Vet é como um elemento da família, garante João Paulo Costa. “O ambiente e a hospitalidade transmontanos também ajudam muito neste particular, tal como a esmagadora maioria dos clientes. Apesar disso, a imprevisibilidade e a discrepância de carga laboral nos diferentes dias da semana, muitas vezes não são fáceis de gerir.” O facto de este CAMV ser uma empresa que se dedica a serviços veterinários mistos (animais de companhia e espécies de produção) traz algumas exigências a nível dos horários e da sobrecarga de trabalho nalguns dias. “O bom senso, a facilidade, a total compreensão e prontidão na resolução dos problemas têm dado bom resultado”.
Também Beatriz Sinogas e Clara Ferreira defendem o bom ambiente de trabalho nos CAMV que gerem como cruciais para evitar o burnout. “É importante que as pessoas, dentro da equipa, saibam que podem contar umas com as outras. É dar um abraço e um sorriso no meio de um dia complicado porque uma equipa que não se dá bem tem dificuldade em trabalhar em conjunto e tudo o que acontece de stressante no dia a dia acaba por ser muito mais pesado”, explica a diretora executiva da Torres Pet. Por isso, existe imenso cuidado ao nível da seleção das pessoas, como da gestão e da manutenção da equipa. “Tentamos assegurar que não haja excesso de horário de trabalho e facilitar os turnos consoante algumas necessidades pessoais e familiares, o que nem sempre conseguimos, mas fazemos o esforço de ter turnos mais pequenos pois é comum as pessoas saírem um pouco mais tarde e se colocarmos turnos de oito horas ou 40 horas por semana, torna-se mais difícil de gerir”, exemplifica.
Na opinião de Beatriz Sinogas, têm sido os colegas mais jovens a entrar em burnout com mais facilidade. “Na minha clínica, tenho a sensibilidade de chegar à equipa e perceber se se passa alguma coisa com algum dos meus funcionários e se algo não estiver bem vamos corrigir e melhorar, se necessário.”
O HVBJ tem em especial atenção a saúde mental. “A IVC Evidensia tem um foco muito grande no bem-estar dos colaboradores. Fomos inclusive patrocinadores da VEtMental Summit [o primeiro evento exclusivamente dedicado à saúde mental da comunidade veterinária em Portugal, realizado em Lisboa no passado dia 14 de junho] por considerarmos este tema de enorme importância”, conta João Araújo. O hospital tem um embaixador do bem-estar na sua equipa que se reúne com a direção clínica e com os recursos humanos para juntos avaliarem o bem-estar dos colaboradores e delinearem estratégias de melhoria.
O recém-aprovado estatuto da Ordem dos Médicos Veterinários poderá “retirar ainda mais competências à classe, nomeadamente na abertura que deixa para o seu exercício, praticado por qualquer indivíduo, sem a obrigatoriedade de ter formação específica e qualificada em medicina veterinária. Puramente inimaginável”, defende João Paulo Costa, diretor clínico da Trás-os-Vet
A IVC Evidensia proporciona ainda a todos colaboradores “uma plataforma online com imensos recursos, desde aulas de ginástica, pilates, yoga entre muitas outras, sejam ao vivo ou gravadas”. E, também, “muitos cursos, com possibilidade de escolha variada, desde o mindfullness à literacia financeira, destacando-se ainda consultas gratuitas com nutricionistas e um conjunto de ferramentas que podem ser úteis para ajudar a equipa, tanto na sua vida pessoal, como profissional”. O HVBJ conta também com um amigo sombra. E em que isto consiste? Cada colaborador tem duas horas mensais, que pode tirar para desfrutar de um momento de lazer e partilha com outro colega de trabalho. “Temos também um programa (Care Fund) em que cada médico veterinário dispõe de 1000 euros anuais para poder usar em casos em que os donos não disponham de meios para ajudar o animal e que os colegas sintam que podem reduzir sofrimentos desnecessários ou evitar eutanásias”, remata o diretor clínico.