Em vigor desde 1994, o Código Deontológico Médico-Veterinário foi atualizado e aprovado pela Assembleia Geral da OMV no dia 5 de fevereiro deste ano. Com uma linguagem mais simples, a nova proposta incorpora tópicos não previstos no atual, como é o caso da telemedicina e do bem-estar animal. No dia 11 de março foi submetida a consulta pública, aberta a todos os cidadãos, e − até à data de fecho desta edição − aguarda publicação definitiva em Diário da República.
O Código Deontológico (CD) define os princípios éticos e as regras deontológicas que o médico veterinário, a exercer atividade em território português, deve cumprir. Este é o instrumento que permite à Ordem dos Médicos Veterinários (OMV) cumprir o seu principal mandato: defender a saúde pública, a saúde animal e o seu bem-estar. O CD aplica-se a todas as atividades médico-veterinárias e não apenas às atividades clínicas. “É a sua existência que faz da medicina veterinária uma profissão regulada e que nos diferencia de outros profissionais do ramo animal”, refere o médico veterinário e vice-presidente do Conselho Profissional e Deontológico (CPD) da OMV, Manuel Magalhães Sant’Ana. Acrescentando ainda que “o privilégio de usar o título de médico veterinário traz com ele a obrigação de se comprometer ativamente com os princípios e valores plasmados no Estatuto da OMV e no CD”.
A alteração do Estatuto da OMV em 2015, imposta pela Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, que estabeleceu o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais, trouxe associada a obrigatoriedade de adaptar os regulamentos previstos no Estatuto à nova legislação. A médica veterinária e presidente do Conselho Profissional e Deontológico da OMV, Maria da Conceição Peleteiro, explica que “esta impunha mesmo um prazo legal para a revisão dos regulamentos, prazo esse que foi largamente ultrapassado no caso do Código Deontológico, o que se justifica pela complexidade que implica rever e alterar um documento tão relevante para a atividade de uma profissão como aquele que define os seus princípios éticos e deontológicos”.
A candidatura da lista A, que se apresentou a eleições para os órgãos sociais da OMV, em finais de 2015 e que tomou posse em fevereiro de 2016, tinha como objetivo para o CPD − sob a presidência de Maria da Conceição Peleteiro − propor à classe médico-veterinária alterações ao Código que “não só fossem ao encontro do disposto no Estatuto, como adaptassem o novo documento à evolução sofrida pela legislação nacional em geral e pela profissão médico-veterinária nos últimos 26 anos”, refere a presidente do CPD que reforça, no entanto, o caracter “robusto” do atual Código, aprovado em 1994, considerando-o “uma ferramenta importante e dignificadora da profissão que tem prestado muitos e bons serviços à classe”.
O CPD do mandato 2016-2019 pôs “mãos à obra” a partir do final do segundo ano, quando já existia uma ideia definida sobre as questões deontológicas mais relevantes. “A tarefa da revisão foi facilitada pela atribuição, em 2017, de uma bolsa de pós-doutoramento FCT a um dos vogais, Manuel Sant’Ana, que tinha como um dos seus objetivos justamente a elaboração de uma proposta de alteração do CD”. Outra ocorrência favorável, explica Maria da Conceição Peleteiro, “foi o apoio garantido pelo Conselho Diretivo à assessoria jurídica que nos acompanhou em todo o processo e que foi garantida pela Dr.ª Catarina Couto Ferreira, que ainda nos acompanha no dia-a-dia das tarefas do Conselho”.
“A tarefa da revisão foi facilitada pela atribuição, em 2017, de uma bolsa de pós-doutoramento FCT a um dos vogais, Manuel Sant’Ana, que tinha como um dos seus objetivos justamente a elaboração de uma proposta de alteração do CD” – Maria da Conceição Peleteiro, presidente do CPD da OMV
Depois das diligências inerentes a um processo com esta complexidade, a alteração ao CD foi aprovada no dia 5 de fevereiro deste ano, em Assembleia Geral da OMV. Posteriormente “foi enviada para revisão da sua formatação e a 11 de março foi submetida a consulta pública, aberta a todos os cidadãos. Após este período, “e não havendo limitações fundamentadas impostas por cidadãos a título individual ou coletivo, a alteração ao CD será publicada em definitivo no Diário da República e entrará em vigor passados 30 dias úteis”, realça a presidente do CPD. Até à data de fecho desta edição, a alteração ao código deontológico ainda não constava em Diário da República.
26 anos depois… O que mudou?
Na sua génese, o CD de 1994 tinha preocupações corporativistas e procurava, sobretudo, proteger os interesses e os privilégios dos médicos veterinários e evitar conflitos entre si, privilegiando a relação entre colegas. Manuel Magalhães Sant’Ana nota que “as regras da concorrência europeia não permitem os mesmos limites à livre iniciativa privada como anteriormente, tais como preços mínimos de serviços ou restrições geográficas ao exercício da profissão. Aliás, a própria OMV foi multada pela Autoridade da Concorrência em 2005, à semelhança de outras ordens profissionais, por fixar valores mínimos de honorários, o que deu origem à única alteração efetuada ao atual CD para revogação de duas alíneas ilegais”.
Embora as alterações propostas para o código tenham tomado o anterior como ponto de partida, com muitos artigos a migrarem praticamente inalterados, os dois documentos diferem em termos de estrutura, âmbito e formulação. “A nova proposta clarifica desde logo os termos utilizados, recorre a uma estrutura mais lógica e intuitiva centrada no conceito de deveres, simplifica a linguagem, atualiza algumas normas à legislação nacional vigente (como é o caso das regras de publicidade) e incorpora novos tópicos não previstos no atual, como é o caso da telemedicina e do bem-estar animal”, sublinha Manuel Magalhães Sant’Ana. A intenção, desde o início, seria que a nova proposta fosse um guia de conduta, “que auxiliasse o médico veterinário no seu processo de decisão, e não um conjunto avulso de proibições ao livre exercício da profissão”, refere.
“A intenção, desde o início, seria que a nova proposta fosse um guia de conduta, que auxiliasse o médico veterinário no seu processo de decisão, e não um conjunto avulso de proibições ao livre exercício da profissão” − Manuel Magalhães Sant’Ana, vice-presidente do CPD da OMV
A atualização do CD começa com um preâmbulo com o seu enquadramento, seguido da definição dos principais termos utilizados. Seguem-se disposições gerais (o âmbito da sua aplicação, assim como direitos e deveres gerais dos médicos veterinários) que incorporam os princípios fundamentais do Código de Conduta Europeu da Federação de Veterinários da Europa (FVE). “Esta alteração está estruturada em torno dos deveres para com sete entidades: animais, comunidade e clientes, colegas e equipa de trabalho, OMV, autoridades competentes, medicamentos e produtos de uso veterinário e ambiente. Todos os artigos passam a estar designados por uma epígrafe, para mais fácil identificação”.
A parte de deveres para com os animais, que não estava contemplada na versão anterior, determina os deveres para com a saúde e o bem-estar dos animais, “nomeadamente incorporando o conceito das cinco liberdades e o princípio dos 3Rs da experimentação animal”. O vice-presidente do CPD sublinha ainda que, nesta nova proposta, consta “um artigo inteiramente dedicado à eutanásia que clarifica os fatores a ter em conta na decisão de eutanasiar um animal”
Nesta nova proposta, consta “um artigo inteiramente dedicado à eutanásia que clarifica os fatores a ter em conta na decisão de eutanasiar um animal” − Manuel Magalhães Sant’Ana, vice-presidente do CPD da OMV
Já na secção dos deveres para com a comunidade, o artigo da publicidade foi profundamente alterado para se coadunar com a legislação nacional em vigor e com o entendimento que a Autoridade da Concorrência faz das práticas restritivas da concorrência. “Este artigo visa prevenir práticas de publicidade que sejam inexatas, que recorram a informações falsas ou a menções de autoengrandecimento que não sejam passíveis de prova e que induzam em erro o cliente. Conceitos como o segredo profissional e o direito de recusa foram clarificados. Foi também introduzido um artigo novo sobre Telemedicina, independentemente da necessidade sentida como urgente de se vir a elaborar, num futuro próximo, regulamentação própria para o uso dos meios telemáticos na prossecução dos atos médico-veterinários”, refere o médico veterinário.
“Atualmente há cinco vezes mais médicos veterinários”
Quando questionado sobre o que mudou no exercício da medicina veterinária nos últimos 25 anos, Manuel Magalhães Sant’Ana refere: “as mudanças são extraordinárias”. Nesta altura, “existiam pouco mais de 1500 médicos veterinários em Portugal, sendo que a maior parte trabalhava em serviços públicos de inspeção sanitária, sanidade animal e qualidade alimentar. A clínica privada era maioritariamente de animais de produção ou mista e a clínica de animais de companhia raramente era praticada em regime de exclusividade”. Atualmente, revela “há cinco vezes mais médicos veterinários”, sendo que, na sua esmagadora maioria, são “clínicos de animais de companhia em zonas urbanas e já não se dedicam nem a serviços públicos, nem à pecuária”. Para o vice-presidente do Conselho Pedagógico e Deontológico da OMV, esta mudança é um reflexo das alterações demográficas que ocorreram no País, aliada a uma maior sensibilização relativamente à saúde e bem-estar animal. “Os clientes são hoje mais exigentes e aquilo que se esperava em termos de cuidados médico-veterinários há 25 anos, nada tem a ver com aquilo que é exigido hoje. Se há 25 anos era normal realizar-se procedimentos invasivos com pouca ou nenhuma analgesia, isso hoje é absolutamente impensável e considerado má prática”. Por outro lado, “existem quase 1800 CAMVs em todo o País, o que gera grande concorrência, sendo que a maioria é composta por equipas pluridisciplinares em que médicos veterinários estão subordinados a outros. Muitos colegas optam também por serviços veterinários ao domicílio que de alguma forma se desviam dos modelos de negócio tradicionais”, salienta o médico veterinário. As novas tendências no setor veterinário criam desafios e conflitos totalmente diferentes daqueles que existiam anteriormente e que exigem uma nova abordagem à sua regulação.
A cronologia do processo
Ao recapitular o histórico do processo, Manuel Magalhães Sant’Ana recorda como ponto de partida para a necessidade de revisão do CD um artigo publicado no Veterinary Record, em 2015. “Esse artigo comparava cinco códigos de conduta europeus e concluía que o CD português era demasiado centrado nas relações entre colegas e não se tinha adaptado às mudanças sociais relativamente ao estatuto moral dos animais, o que se refletia na ausência de deveres e diretos para com estes”, explica. O trabalho do Conselho Profissional e Deontológico no sentido de atualizar o Código começou em setembro de 2017, com uma investigação sobre os motivos de queixas disciplinares contra médicos veterinários, enquadrada no projeto de pós-doutoramento em ética veterinária, de Manuel Magalhães Sant’Ana, que identificou “nove categorias principais de infrações deontológicas”. Os resultados deste estudo foram publicados em 2018 e serviram para identificar as áreas que apresentavam um maior desafio para a conduta dos médicos veterinários e onde a orientação deontológica seria porventura mais necessária. O trabalho prosseguiu com um “estudo Delphi, em finais de 2018, que contou com a colaboração de uma amostra representativa da classe médico-veterinária em Portugal, e que visou explorar com mais detalhe três matérias principais: o bem-estar animal, a telemedicina e a publicidade. Os resultados deste estudo foram publicados em 2020 em duas revistas da especialidade: a Animals e a Frontiers in Veterinary Science”, refere o vice-presidente do CPD. Deste estudo resultaram muitas indicações sobre a melhor forma de regular estas matérias que tanta controvérsia têm gerado no seio da classe.
A presidente do CPD, Maria da Conceição Peleteiro, faz um resumo cronológico das diversas fases pelas quais o código passou. “O esqueleto inicial do novo CD foi aprovado pelo CPD e as propostas de alteração foram surgindo durante a primeira metade de 2019 − com base no grande investimento posto na sua elaboração por parte do Manuel Sant’Ana − e debatidas entre todos os membros do CPD, com discussões animadas e profícuas e com o constante apoio da assessoria jurídica que nos orientava relativamente à legislação nacional e comunitária que não podiam ser contrariadas”, revela. Em junho de 2019, um esboço do CD foi submetido para apreciação da Prof. Maria do Céu Patrão Neves − professora catedrática de ética da Universidade dos Açores e consultora em bioética − antes de ser levado a consulta pública”, refere. Entre agosto e outubro 2019, a nova proposta de alteração ao CD foi apresentada a consulta a toda a classe veterinária, o que culminou em mais de 200 sugestões recebidas da parte de 38 médicos veterinários e de 12 associações profissionais. “Todas as sugestões foram discutidas pelo CPD e muitas acabaram por ser incorporadas parcialmente ou na sua totalidade. A 15 de janeiro de 2020, nas vésperas da tomada de posse dos novos órgãos dirigentes da OMV, uma versão atualizada do CD foi entregue ao então presidente da Assembleia Geral, Alfredo Jorge Silva. A nova Assembleia Geral (AG), cujo funcionamento sofreu atrasos devido à pandemia covid-19, determinou um novo período de consulta aos Conselhos Regionais da OMV, em junho de 2020. Em dezembro de 2020, a presidente e o vice-presidente do CPD estiveram presentes numa reunião da AG para esclarecer dúvidas dos seus membros e ouvir as suas sugestões. Após terem sido incorporadas as sugestões dos membros da AG, foi o código de novo submetido a apreciação da AG a 25 de janeiro e aprovado em reunião extraordinária de 5 de fevereiro de 2021.
Problemas deontológicos atuais
Os problemas deontológicos têm mudado ao longo do tempo. Durante o atual e o anterior mandatos, refere Manuel Magalhães Sant’Ana, o “Conselho Profissional e Deontológico da OMV tem-se deparado com inúmeros conflitos e dilemas que requereram reflexão aprofundada e que foram úteis na identificação de comportamentos e atitudes que necessitam de maior orientação, para benefício da classe e da sua imagem junto do público”. Adianta ainda que o principal motivo de queixa contra médicos veterinários, e consequente abertura de procedimento disciplinar, “é a suspeita de negligência médica ou cirúrgica, que muitas vezes resulta na morte ou lesão irreversível ao animal”. Muitas queixas de negligência veem também acompanhadas de reclamações relacionadas com custos e pagamentos e por falta de consentimento informado. Seguem-se “as más práticas de certificação, nomeadamente no transporte de animais para abate de emergência (no caso dos grandes animais) e na vacinação sem o devido carimbo, data, vinheta ou identificação (no caso dos animais de companhia)”, explica o médico veterinário.
*Artigo publicado originalmente na edição n.º 149 da revista VETERINÁRIA ATUAL, de maio de 2021.