Entre as diretrizes vacinais da Associação Mundial de Veterinários de Pequenos Animais (WSAVA) e as indicações do Resumo das Características do Medicamento Veterinário (RCMV) de cada vacina, fica o médico veterinário carregado de dúvidas e de receios, essencialmente legais, vivendo numa espécie de Metaverso.
No final do dia, virá sempre ao de cima a célebre frase: “A decisão é feita pelo médico veterinário baseada na avaliação risco-benefício para o seu paciente e tutor”. Pronto, quem gostar de ler na diagonal estes artigos, pode já ficar com a conclusão do mesmo. E nem precisa de usar a sugestão musical deste mês: os “Brass Against” (brassagainst.com) para embalar o resto da leitura.
Em 1879, a primeira vacina animal para a cólera aviária foi criada por Louis Pasteur. Em 1884 o mesmo cientista criou a vacina antirrábica. Só no século XX, na década de 50, ficaram disponíveis industrial e comercialmente vacinas para cão e gato. Assim, entre as décadas de 50 a 70 só existiam vacinas monovalentes (um antigénio, uma doença, uma vacina). A partir da década de 70, do século passado, foram criadas as vacinas multivalentes, trazendo maior conveniência à profissão pela redução do número de administrações, pela redução do custo e o menor espaço necessário de armazenamento no frigorífico dos Centros Médicos de Atendimento Veterinário (CAMV). Com o final do séc. XX e a viragem para o atual século, a preocupação com a segurança vacinal torna-se o denominador dominante, com a progressiva melhoria vacinal em termos de tecnologia molecular e industrial na produção de novas vacinas.
Com a redução de excipientes e adjuvantes, a sobrevacinação passa a ser uma preocupação, o que origina a criação do Grupo de Diretrizes de Vacinação (VGG) da WSAVA, com a emanação da 1ª edição de Diretrizes de Vacinação para Pequenos Animais em 2007, posteriormente atualizadas em 2010 e 2015. Desde 2015, que os médicos veterinários se tornaram mais sensibilizados para estas diretrizes, além disso, o VGG cria, em 2010 e 2015, diretrizes para criadores e tutores.
A divulgação da informação pelos diversos interessados na vacinação de animais de companhia, tem obrigado os CAMV a adaptarem os seus esquemas de vacinação. Nessa adaptação, encontram dificuldades sobretudo pela discrepância entre as indicações das diretrizes (denominadas de “recomendações científicas”, construídas através de medicina veterinária baseada na evidência) e as indicações do texto do RCMV (validado legalmente pela agência do medicamento veterinário e/ou autoridades nacionais).
Existem profissionais da medicina veterinária que consideram as diretrizes de vacinação mais adequadas à realidade da Europa Ocidental Central e de Norte, devido à menor pressão epidemiológica das doenças vacinalmente preveníveis, assim como, pela maior imunidade de grupo presente nesses países, e ainda à menor exposição a países com maior risco de presença de vetores e de doenças zoonóticas, como por exemplo a raiva.
De forma atenta, a VGG da WSAVA criou em 2020, as “Recomendações sobre a vacinação para médicos veterinários de pequenos animais da América Latina”, após estudo de diversos países e mais de 3500 médicos veterinários dessa região. Essa abordagem regional, reconhece a maior dificuldade de implementação das recomendações iniciais, devido a diversos factores1, alguns deles possivelmente comuns em Portugal, como:
– restrições socioeconômicas para o engajamento dos clientes com os cuidados de medicina preventiva;
– alta prevalência regional de algumas doenças infeciosas importantes (p. ex., infeção pelo vírus da leucemia felina, leishmaniose visceral canina);
– ausência relativa de vacinas com duração estendida da imunidade, como as disponíveis em outros mercados, disponibilidade limitada de educação continuada em vacinologia veterinária e falta de obrigatoriedade de desenvolvimento e atualização profissional continuada e
– limitados dados publicados em revistas científicas indexadas sobre doenças infeciosas em pequenos animais (com exceção da leishmaniose) e ausência de apoio para tal pesquisa acadêmica.
Atualmente também se questiona a importância da vacinação em termos de negócio no CAMV em detrimento das consultas de rotina, e embora a evolução crescente da qualidade da medicina veterinária no País, a vacinação continua a ser fulcral como principal motivo de ida dos tutores ao CAMV para garantir os cuidados básicos de saúde aos seus animais, sobretudo nas tipologias de Consultório e Clínica Veterinária, que representam perto de 90% dos CAMV em Portugal. Assim, pegando nas Recomendações da WSAVA para a América Latina (que não são muito diferentes das Recomendações Gerais, e não querendo “latinizar” Portugal), listo abaixo as principais diretrizes e a possibilidade de aplicabilidade consoante as vacinas e as suas indicações presentes no RCMV em Portugal, dividindo a informação em vacinação canina e felina.
Podemos constatar que existe a possibilidade de aplicabilidade média a elevada de introdução das diretrizes vacinais para animais de companhia sugeridas pela VGG, no entanto, aquelas que não estão totalmente cobertas pelas indicações dos textos legais das vacinas usadas, deverão ser validadas por consentimento informado, ao nível da consulta vacinal, para salvaguarda do Médico Veterinário. Torna-se claro, que nem sempre é prático usar o consentimento informado, sobretudo em dias atarefados, no entanto, aqueles 2 a 3 minutos adicionais de informação ao tutor e pedido de sua concordância, no final do dia, farão a diferença em caso de ocorrência de eventos adversos com reação conflituosa entre as partes. Um fato curioso em relação às diretrizes do VGG WSAVA, é que relativamente à vacinação considerada não essencial, existe um grande alinhamento, entre diretrizes e as indicações vacinais dos fabricantes.
Na obstante das diretrizes, o Médico Veterinário terá em conta a situação epidemiológica das doenças preveníveis pela vacinação na sua região, a avaliação de risco do animal e seu tutor, a imunidade de grupo dos animais da região, a maior ou menor possibilidade de acesso do tutor ao CAMV, a história vacinal do animal e cumprimento dos intervalos de vacinação pelo tutor, entre outros fatores, aquando do desenho dos protocolos vacinais do CAMV. Devido a esta análise multifatorial e à variedade de opções vacinais, ocorrem protocolos vacinais diversos entre CAMVs, que por vezes, geram desconfiança aos tutores, no entanto, os tais 2 a 3 minutos adicionais usados na consulta vacinal explicando o protocolo e recolhendo a concordância do cliente, ajudarão a diminuir a sensação ao tutor de excesso de vacinação que ocasionalmente ocorre.
A consulta vacinal é um ato médico, exige amplo conhecimento para a realização do ato vacinal. Como, Quando e Com o Quê se vacina um animal é em bom rigor uma decisão do Médico Veterinário baseada no custo-benefício para o paciente e tutor.
Bibliografia:
2 – Consulta de Base de dados de medicamentos de uso veterinário, 26/04/2022; https://medvet.dgav.pt/
* Médico veterinário (drpedro.fabrica@gmail.com)