São uma clínica familiar e não querem deixar de o ser. Recebem os tutores e os animais como se fossem amigos íntimos, sabem-lhes o nome e a história de vida, acompanham-nos ao longo do tempo e sofrem como se delas fossem quando partem. A equipa da Língua de Gato quer continuar a ser a segunda família de quem as procura e também para quem lá trabalha. Estão convencidas de que, com esta forma de trabalhar, conseguem assegurar um melhor acompanhamento dos clientes e uma melhor saúde mental para todas as colaboradoras.
É uma equipa relativamente pequena, composta exclusivamente por mulheres. Três veterinárias – Rita Fonseca, Beatriz Costa e Diana Simões – uma enfermeira veterinária, Mariana Nogueira, e duas auxiliares veterinárias, Mariana Terremoto e Helena Barros.
Provavelmente, ao ler-se a primeira descrição, algumas sobrancelhas ainda se irão erguer e pensar no mito, no estigma, no preconceito que ainda está colado aos grupos de trabalho unicamente compostos por elementos do sexo feminino: dão-se mal, é só intrigas e maledicência.
Inevitável abordar esta curiosidade durante a conversa, ou não estivesse esta crença ainda muito presente em alguns círculos da sociedade, mas Beatriz Costa, até com uma pitada de humor, assegura que tem sentido “precisamente o contrário. Temos mais sensibilidade, percebemos o que cada uma está a sentir, conhecemo-nos muito bem, conversamos muito e tomamos muito as dores umas das outras. Acho que, ao contrário do que muita gente pensa, [uma equipa de mulheres] tem tudo para dar certo”.
E o facto é que tem mesmo dado certo. Há quase nove anos que o centro de atendimento médico veterinário (CAMV) Língua de Gato está de portas abertas bem no centro da cidade do Porto e sempre com a mesma filosofia: ser uma clínica de proximidade para animais de companhia e tutores.
Foi em julho de 2015 que Rita Fonseca e outra colega médica veterinária avançaram com o projeto. “Queria criar um espaço médico veterinário à minha imagem, que desse a sensação a quem chega de que está em casa. Um espaço onde as pessoas se sentissem bem e onde os animais, que são a nossa prioridade, estivessem confortáveis. Queria uma clínica onde houvesse familiaridade”, conta à VETERINÁRIA ATUAL a diretora clínica do CAMV.
  “Queria criar um espaço médico veterinário à minha imagem, que desse a sensação a quem chega de que está em casa” – Rita Fonseca, diretora clínica da Língua de Gato
A palavra é mesmo essa: família. É repetida pelas duas médicas veterinárias várias vezes ao longo da conversa. Rita Fonseca frisa que queria, e tem conseguido ao longo destes quase nove anos, que o espírito da Língua de Gato vá para além do enquadramento físico da clínica. “É uma clínica onde há familiaridade, onde criamos um vínculo com as pessoas e com os animais, tentamos ser uma segunda família para os nossos clientes e para a equipa”, declara.
Beatriz Costa, que se juntou ao CAMV há cerca de cinco anos, acrescenta: “Temos muita proximidade com os nossos clientes, com os animais, sabemos o nome de todos e eles também sabem o nosso. Além disso, têm a segurança de, numa aflição, também conhecerem o resto da equipa e, assim, as coisas acabam por correr melhor”.
E é nos momentos difíceis que essa proximidade ganha contornos de maior importância e maior conforto para todos os envolvidos. “Sentimo-nos muito próximos [do cliente] e isso faz com que haja uma maior abertura para explicar as coisas de uma maneira não tão técnica, como se fosse a um elemento da família, porque não somos apenas quatro paredes brancas e uma mesa de inox, somos uma segunda casa para as pessoas”, assegura Beatriz Costa.
Pessoas essas que costumam procurar a equipa nem que seja apenas para dizer um “olá”, conversar um pouco, afinal, a localização central numa cidade cosmopolita como o Porto facilita o contacto com quem vai a caminho para o trabalho ou simplesmente passa pelo espaço na rotina quotidiana.
Familiaridade também implica mais dor
Se o cliente é família, se o animal de companhia é família, o lado positivo é a já mencionada proximidade entre clientes e equipa que facilita o contacto e a comunicação. Mas, como em tudo na vida, há o reverso. “Pensamos muito com o coração e, quando assim é, as perdas custam mais”, reconhece Rita Fonseca.
É certo que a conversa com os clientes é franca e honesta, há abertura para deixar as tecnicalidades de lado, para falar de coração aberto e alma despida sobre o que é melhor para aquele animal – e, às vezes, o melhor é mesmo deixá-lo partir, sem sofrimento – mas isso não diminui a dor da perda de um elemento desta família alargada que deixa saudade.
Quando, depois, o cliente sai e vai para casa, restam os elementos da equipa que têm de se valer a si mesmos em todo este processo. Contam umas com as outras, desabafam, debatem e cuidam-se entre si. Beatriz Costa refere que todas, em conjunto, valorizam muito a saúde mental individual e da equipa. “É uma componente da nossa profissão que costuma ser muito descurada”, admite, e por saberem disso apostam no apoio interpessoal e na organização do trabalho da equipa, essencial para a estabilidade e o equilíbrio entre a vida profissional e a vida pessoal e, consequentemente, para o bem-estar emocional.
Em primeiro lugar está a aposta é na organização. As consultas, salvo exceções e situações urgentes, acontecem sempre por marcação o que permite planear com antecedência a agenda de cada uma das médicas veterinárias e respeitar o horário individual. São 35 horas semanais – que tentam cumprir à risca e a recorrer o mínimo possível ao expediente das horas extraordinárias – nas quais conseguem encaixar as várias tarefas da profissão, desde as consultas, o acompanhamento telefónico dos casos, até ao processo administrativo e burocrático de preencher fichas com os dados clínicos.
“Temos muita proximidade com os nossos clientes, com os animais, sabemos o nome de todos e eles também sabem o nosso. Além disso, têm a segurança de, numa aflição, também conhecerem o resto da equipa e, assim, as coisas acabam por correr melhor” – Beatriz Costa, médica veterinária
A ideia, explica a diretora clínica, “é garantir que saímos a horas” e que, fora das instalações, “há um verdadeiro desligar [da atividade clínica], eu, pelo menos, tento incentivar muito isso”. Em paralelo há “muito team building”, o que pode passar até por belas jantaradas cozinhadas por Diana Simões, a verdadeira masterchef da equipa.
Tudo para garantir que, para além de serem uma segunda casa para os clientes e animais de companhia, são também uma segunda casa e uma segunda família para todas as profissionais da Língua de Gato.
Referenciação: para o bem da equipa e dos clientes
É possível que, devido ao nome, fique a ideia de que os clientes do CAMV são unicamente felídeos. Na verdade, lembra Rita Fonseca, o nome foi sugerido por uma colega de profissão, caiu nas graças da diretora clínica e da colega que com ela abriu a clínica – e que, entretanto, saiu do projeto – e acabou por ser o escolhido.
Mas a carteira de clientes divide-se meio a meio entre cães e gatos, cada um com consultório próprio e adaptado às necessidades da espécie. Para além destes dois consultórios, a clínica conta também com uma pequena sala de tratamento onde podem ser realizados procedimentos simples, como o corte de unhas, a desparasitação, suturas ou a limpeza de uma ferida.
Existe ainda uma área de preparação cirúrgica, que dá apoio à sala de cirurgia propriamente dita, e uma área de recobro, também ela devidamente dividida para cães e gatos.
A maior parte da atividade da equipa é a medicina de prevenção – vacinas, desparasitação – com os tutores nacionais a revelarem ter cada vez mais atenção ao acompanhamento desse aspeto da saúde dos animais de companhia, e cerca de 35% das consultas têm por trás um motivo súbito de preocupação, seja uma diarreia, vómitos ou alterações no apetite, por exemplo.
Como equipa relativamente pequena que são, há um pouco o espírito de «faz tudo» e de entre ajuda, muito embora as três médicas veterinárias tenham áreas de interesse às quais se dedicam em especial. Rita Fonseca tem-se focado mais na cardiologia, na dermatologia e tem feito várias formações em gestão. “Essa é uma área muito pouco explorada [durante o curso de medicina veterinária] e ninguém nos ensina nada sobre como gerir um negócio, como gerir uma equipa e como a manter motivada, porque uma equipa motivada é uma equipa que trabalha melhor”, explica à VETERINÁRIA ATUAL.
“A gestão é uma área muito pouco explorada [durante o curso de medicina veterinária] e ninguém nos ensina nada sobre como gerir um negócio, como gerir uma equipa e como a manter motivada, porque uma equipa motivada é uma equipa que trabalha melhor” – Rita Fonseca, diretora clínica da Língua de Gato
A medicina interna e a medicina felina são as áreas a que Beatriz Costa mais se tem dedicado e, ultimamente, tem estado responsável pela área do marketing e da gestão das redes sociais da clínica.
Diana Simões é quem tem na Língua de Gato os dossiers da cirurgia e da odontologia. Aliás, esta última tem sido uma área com crescente procura por parte dos tutores, o que levou recentemente ao investimento na aquisição de uma estação dentária e de um RX intraoral para dar resposta às extrações orais e a problemas graves da cavidade oral. Além disso, acrescenta a diretora clínica, é também Diana quem tem a pasta da geriatria. “É engraçado porque enquanto eu sou apaixonada pelos miúdos [pediatria], ela adora seguir os velhinhos”, conta.
Independentemente dos interesses de cada uma, a partilha de conhecimentos é fundamental para a prestação dos melhores cuidados e é neste ponto que muitas vezes entra em ação o grupo de WhatsApp das três médicas, no qual “partilhamos os nossos casos para saber a opinião [das outras colegas] e para discutir a melhor abordagem”, refere Beatriz Costa.
Quando é necessário, têm ainda colegas prestadores de serviços na área da ecografia, da oftalmologia e da acupuntura, que visitam a clínica mediante marcação, e têm uma parceria muito próxima com o Hospital Veterinário Montenegro, que está localizado nas imediações do CAMV. É para a unidade dirigida por Luís Montenegro que referenciam os clientes a necessitar de exames de imagem (RX, TAC, ressonância magnética), de acompanhamento oncológico ou de situações que requeiram um internamento prolongado e acompanhado 24 horas por dia.
Ambas as médicas assumem que a referenciação assertiva e a boa relação com a equipa do Hospital Veterinário Montenegro também tem sido fundamental nesta aposta na saúde mental da equipa. Em primeiro lugar, refere Beatriz, “não tem de haver medo nenhum assumir que não sabemos tudo e que é melhor referenciar para quem sabe mais e é mais especializado”, ao que Rita acrescenta: “Temos de ser humildes e não ter receio de perder o cliente. Aliás, o cliente até agradece a honestidade e depois continua a vir cá. Isto [o medo de referenciar] já nem devia ser um assunto”.
Depois, a boa relação com os colegas que recebem o cliente referenciado dá-lhes tranquilidade e deixa-as completamente à vontade para fazerem o acompanhamento. “Assim que recebem o animal referenciado ligam-nos logo [a contar o desenvolvimento], trabalhamos muito bem em parceria e aprendemos imenso com os colegas. Somos as médicas de família e é ótimo para a nossa evolução profissional poder aprender com os colegas das várias especialidades”, explica Beatriz Costa.
No fim, tanto as médicas veterinárias ficam satisfeitas por conseguirem dar a melhor resposta, por meios próprios ou em comunhão com os clínicos a quem referenciam, como os clientes se sentem seguros com a atenção dada ao seu caso em particular.
Futuro: alargar horizontes, mantendo a proximidade
Quando questionadas sobre projetos futuros, a ideia de ambas passou por sublinhar o princípio que norteou a conversa desde o início: são uma clínica de proximidade e querem continuar a sê-lo, sem se desviarem um milímetro que seja desse desígnio.
Gostam de ser as médicas de família dos animais de companhia dos clientes e, por mais que pensem em ganhar competências, essa será sempre a base do trabalho da Língua de Gato.
Ainda assim, a grande procura registada nos últimos meses e o interesse de Diana Simões estão a dar à equipa uma diferenciação na área da odontologia que pretendem explorar, com mais formação aos tutores sobre a higiene oral dos animais desde a tenra idade e o acompanhamento de situações patológicas que lhes têm chegado em grande número.
Outra matéria que ponderam apostar será no trabalho com a rede Vet-Onconet, da qual são parceiras desde o início do projeto do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) e do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), mas cuja colaboração tem estado adormecida. Para Rita Fonseca faz todo o sentido retomar este trabalho conjunto até pela casuística que têm recebido na clínica, com “talvez, um caso [de doença oncológica] por semana, sobretudo de tumores mamários em gatas”.
“Sentimo-nos muito próximos [do cliente] e isso faz com que haja uma maior abertura para explicar as coisas de uma maneira não tão técnica, como se fosse a um elemento da família, porque não somos apenas quatro paredes brancas e uma mesa de inox, somos uma segunda casa para as pessoas” – Beatriz Costa, médica veterinária
Mais a médio, longo prazo, estão a pensar dar vida a um espaço que tem estado inutilizado. A loja tem dois andares e na cave, que tem estado subaproveitada, estão a ponderar criar um hotel boutique para gatos, também com “um cunho muito familiar”, mas sem esquecer o charme característico da cidade do Porto.
A cosmopolita cidade que pôs um CAMV a falar inglês
O Porto tem uma longa tradição na ligação ao Reino Unido e no acolhimento a vários povos que, por virem visitar as caves do vinho do Porto ou para iniciarem na cidade as viagens turísticas à paisagem do Alto Douro Vinhateiro, há muito deambulam pelas ruas da Invicta.
Nos últimos anos, trabalhadores digitais temporários e também imigrantes que escolheram a cidade para viver têm preenchido o quotidiano portuense e todo este envolvimento multicultural também se tem refletido na atividade do CAMV.
Ao ponto de Beatriz Costa reconhecer que as médicas veterinárias da Língua de Gato já passam “quase metade do dia a falar inglês”. Talvez por estarem bem no centro da cidade, a procura da parte de clientes de outras paragens tem vindo a crescer substancialmente entre ingleses, americanos, brasileiros e, conta por sua vez a diretora clínica, um dos casos mais recentes foi o de uma pessoa de Taiwan, de passagem pela cidade, que procurou atendimento na clínica para o animal da companhia.
“São clientes que nos procuram por sermos uma clínica mais familiar, partilham da nossa visão de que o animal faz parte da família”, relata Rita Fonseca, ao que Beatriz Costa acrescenta: “São muito preocupados, não olham a custos, tratam os animais como se fossem um filho”.
Aliás, as médicas veterinárias adiantam que lhes contaram que existe um grupo na rede social Facebook de expatriados na cidade do Porto, onde estes tentam encontrar soluções para as várias necessidades do dia-a-dia no país de acolhimento, e muitos dos clientes estrangeiros que chegam à Língua de Gato vêm referenciados “pelo boca-a-boca entre os expatriados que participam nesse grupo”.