A acupuntura em animais ainda não tem muita expressão em Portugal, embora o salto na última década tenha sido grande, com a criação da Associação Portuguesa de Acupuntura Médico Veterinária (APAMV) e o reconhecimento da acupuntura como ato médico-veterinário. Karla Pinto é um dos rostos mais conhecidos desta prática no nosso País, trabalhando exclusivamente em regime de ambulatório na gestão da dor e na reabilitação física veterinária. À nossa revista, a médica veterinária acupunturista e canabinologista destacou as múltiplas indicações que a acupuntura veterinária pode ter, classificando-a como uma “técnica muito democrática”, na medida em que pode ser aplicada a qualquer espécie.
Médica veterinária com 23 anos de experiência, formada no Brasil (de onde é oriunda), estudante de doutoramento em Ciências Veterinárias pela UTAD, mestre em Medicina Tradicional Chinesa pelo ICBAS – Universidade do Porto, pós-graduada em Acupuntura Veterinária pela Universidade Lusófona, acupunturista Veterinária Certificada pelo International Acupuncure Society (IVAS) e pela ACSS-Ministério da Saúde, canabinologista e membro VetCann Internacional.
O currículo de Karla Pinto fala por si e reflete a imensa vontade que esta médica veterinária sempre sentiu de conseguir proporcionar respostas em termos de gestão da dor nos animais. Respostas essas que, até há bem pouco tempo, se resumiam a “fármacos anti-inflamatórios e analgésicos, cortisona, morfina, diazepam ou antibióticos, com efeitos secundários não despicientes”, relembra a médica, acrescentando que em Portugal, ao contrário do Brasil [onde, desde o final dos anos 90 que a acupuntura é considerada como ato médico veterinário] “ninguém fazia fisioterapia e muito menos acupuntura”.
“A indicação para acupuntura exige sempre uma avaliação prévia do animal, independentemente de ser a primeira ou a décima sessão”
Foi esse desejo que levou Karla Pinto a procurar formação nestas áreas ao longo dos últimos anos e, atualmente, a sua prática clínica é totalmente dedicada ao manejo da dor e da reabilitação física veterinária, com recurso à acupuntura.
Com isto não quer dizer que a médica tenha abandonado a clínica geral, porque “a indicação para acupuntura exige sempre uma avaliação prévia do animal, independentemente de ser a primeira ou a décima sessão”, explica, sublinhando a importância de se ter “uma boa base clássica de semiologia e de neurologia nomeadamente”. Além disso, há animais que podem continuar a precisar de um tratamento farmacológico convencional, que Karla Pinto obviamente também prescreve e administra. No seu caso concreto, e por ter formação nesse domínio, pode ainda avançar para um tratamento com cannabis, sempre na ótica da gestão da dor.
Todas as espécies são, segundo a acupunturista, candidatas a esta técnica terapêutica, o que a torna uma prática “muito democrática”. Desde cães e gatos, passando por aves, até cavalos e vacas, todos os animais podem beneficiar do efeito terapêutico analgésico das agulhas.
Uma espécie de analgesia “natural”
De acordo com Karla Pinto, “a acupuntura compete com a dor, isto é, a acupuntura atua numa fibra diferente da fibra da dor crónica”. Ao competir com a dor, vai bloquear a região da dor no cérebro de forma mais rápida do que a dor crónica e desencadear um estímulo doloroso menor, enganando o cérebro, daí o seu efeito analgésico.
Um “mecanismo de ação” que a veterinária explica com recurso a uma alegoria: “Quando tenho uma dor sei que dói porque a informação vai até ao cérebro, mas essa informação vai por uma estrada nacional e demora a lá chegar. Com a acupuntura, coloco uma agulha, ou seja, pego no meu Ferrari e vou por uma autoestrada sem trânsito, chegando bem rápido ao meu destino. Enquanto a dor crónica ainda vai a caminho, com a acupuntura já lá cheguei. A acupuntura ocupa lugares do cérebro mais rápido que a dor crónica”.
Assim, prossegue, “a agulha é um mensageiro que faz com que o cérebro perceba que naquele local há um problema. Danifico o tecido e provoco uma dor que faz com que o cérebro envie ajuda através de mediadores e opioides naturais”. Trata-se, basicamente, de “uma analgesia natural que vai tentar causar uma analgesia homeostática”. A intensidade do efeito, diz, depende das técnicas utilizadas, que vão desde a maior ou menor profundidade na colocação da agulha até à eletroacupuntura, por exemplo.
Todas as espécies são, segundo a acupunturista, candidatas a esta técnica terapêutica, o que a torna uma prática “muito democrática”. Desde cães e gatos, passando por aves, até cavalos e vacas, todos os animais podem beneficiar do efeito terapêutico analgésico das agulhas.
A expressão mecanismo de ação aparece entre aspas porque, esclarece a médica, “não existe propriamente uma teoria unificada quanto à forma de atuação da acupuntura”. Porém, a teoria do portão da dor (de Melzack e Wall, 1965) parece ser a hipótese mais consensual em termos clínicos, sustenta.
Os pacientes geriatras são, atualmente, o grosso da clínica de Karla Pinto. “Recebo pacientes oncológicos, com dor crónica, com síndrome de disfunção cognitiva, osteoartroses… Atendo situações neurológicas, ortopédicas, dermatológicas, paliativas, sempre com o foco na abordagem da dor”, adianta a veterinária.
No entanto, a acupuntura veterinária tem outras indicações para além da analgésica, conforme explica a médica: “Em animais com ansiedade, epilepsia, com bexiga neurogénica, retenção/incontinência urinária ou problemas intestinais, o estímulo das agulhas pode ser utilizado para fazer uma neuromodulação e ajudar a controlar o sistema nervoso central ou os nervos periféricos”.
Diretrizes da WSAVA para tratamento da dor contemplam acupuntura
Ainda pouco reconhecida em Portugal, a acupuntura em animais tem vindo a percorrer o seu caminho lentamente, mas com passos firmes, como a criação em 2018 da Associação Portuguesa de Acupuntura Médico Veterinária (APAMV) e a consagração, um ano depois, da acupuntura como ato médico veterinário (ver caixa APAMV | “Acupuntura como ato médico veterinário é uma enorme conquista”).
Em 2022, outro importante passo foi dado neste sentido, a nível internacional, quando nas suas diretrizes para o reconhecimento, avaliação e tratamento de dor, a World Small Animal Veterinary Association (WSAVA) contemplou a acupuntura na categoria de tratamento não cirúrgico e não medicamentoso, a par de exercícios, otimização do peso, modulação alimentar (tipo; quantidade), exercícios terapêuticos e modalidades físicas, modificações ambientais e suplementos nutricionais.
Ao competir com a dor, [a acupuntura] vai bloquear a região da dor no cérebro de forma mais rápida do que a dor crónica e desencadear um estímulo doloroso menor, enganando o cérebro, daí o seu efeito analgésico.
São este tipo de avanços, juntamente com os casos de “sucesso” na prática clínica (ver caixa: Nocas, um caso de “sucesso”), que conferem a Karla Pinto a motivação necessária para continuar com um trabalho “tão desafiante, desgastante e de difícil gestão emocional e de expetativas”.
Tese de mestrado avaliou efeito da acupuntura na produção de leite em vacas
Uma vez que a dor é um parâmetro altamente subjetivo – cuja avaliação, no caso do animal, dependeria da aplicação de uma escala visual analógica e obrigaria à intervenção do tutor – Karla Pinto optou, para a realização do seu trabalho de mestrado, por um parâmetro mais “quantificável”.
Na altura em que que frequentava o mestrado no ICBAS, a médica veterinária trabalhava numa clínica com prática mista, pelo que a escolha recaiu sobre vacas leiteiras e o efeito da acupuntura na quantidade (em litros) de produção de leite. Os resultados do trabalho mostraram que as vacas submetidas a acupuntura tiveram uma média de leite extraído superior às que não foram submetidas à técnica. A leitura de Karla Pinto, face a estes resultados, é a de que “a acupuntura não faz com que as vacas produzam mais leite, mas sim com que fiquem mais relaxadas e, consequentemente, no momento da extração ejetam maior quantidade de leite”.
Nocas, um caso de “sucesso”
“Sucesso” e “cura” são palavras que Karla Pinto não gosta de incluir no léxico da sua prática clínica, mas quando questionada sobre situações que a tenham marcado pela positiva ao longo dos últimos anos, a médica não hesita em apontar o caso da cadela Nocas.
Ainda que considere todos os seus pacientes especiais, a Nocas é particularmente especial por ser a primeira paciente da veterinária “a sul”, quando se mudou há cerca de sete anos do Porto para o Montijo.
“Chegou-me jovem, com um diagnóstico de doença autoimune não identificada, depois de uma bateria de testes e exames inconclusivos. Não andava, tinha uma atopia dérmica exuberante e um quadro de dor intensa”, recorda Karla Pinto. “Não me pergunte como, porque nem eu sei, mas com a acupuntura a Nocas renasceu e tenho a certeza de que sem isso já cá não estaria, porque a indicação que tinha era para euranásia”, conta emocionada. “Aos poucos, a Nocas voltou a andar e a comer e a atopia mantém-se controlada até hoje. Faz a sua vida normal e tem uma energia brutal com quase nove anos”, adianta a médica, explicando que a cadela continua a fazer acupuntura em manutenção mensal e que hoje a sua tutora é uma amiga.
APAMV | “Acupuntura como ato médico veterinário é uma enorme conquista”
Karla Pinto é um das fundadoras e atual presidente da Associação Portuguesa de Acupuntura Médico Veterinária (APAMV), cuja missão passa pela “defesa e divulgação da acupuntura como uma modalidade terapêutica de grande valor, fundamentada na ciência, em prol da saúde e do bem-estar animal”.
Quando a APAMV foi criada, em 2018, a acupuntura ainda não era reconhecida como ato médico veterinário em Portugal, ainda que na medicina humana esse reconhecimento já existisse, com a competência de acupuntura médica pela Ordem dos Médicos.
“Sempre nos procurámos equiparar à medicina humana em tantos aspetos da nossa prática, como o IVA 0%, no entanto esta questão do reconhecimento da acupuntura como ato médico veterinário levantou imensa polémica”, recorda a veterinária. Neste sentido, “a APAMV desenvolveu um trabalho intensivo com a anterior Ordem dos Médicos Veterinários, que enviou para a Assembleia da República um parecer que fundamentava a prática da acupuntura como ato médico veterinário, a ser exercido somente por médicos veterinários. Assim, em 2019, esse reconhecimento foi consagrado e essa foi uma das nossas maiores conquistas até agora”, refere a responsável.
A importância de ser um veterinário a fazer acupuntura prende-se com “o facto de se tratar de uma técnica que não deixa de ser invasiva, ao mesmo tempo que configura um procedimento terapêutico como qualquer outro na prática clínica”, sublinha Karla Pinto. Além disso, destaca, “os seguros de saúde contemplam e comparticipam os tratamentos de acupuntura, desde que feitos por médicos veterinários”.
Atualmente, o grande foco da APAMV é na formação, através da organização de cursos gratuitos para os sócios, creditados pela International Veterinary Acupunture Society. “A acupuntura pode ser uma técnica milenar, mas não está de todo estagnada no tempo. Além de ter várias correntes [há a acupuntura chinesa, a japonesa, a ocidental], é uma prática que tem vindo a evoluir, à semelhança de outras terapias, pelo que a atualização contínua é imprescindível”, explica a veterinária.
CONTACTOS:
https://www.apamv-assoc.pt/apamv.html
apamv@apamv-assoc.pt
*Artigo publicado na edição 181, de abril, da VETERINÁRIA ATUAL.