A Associação Portuguesa de Médicos Veterinários Especialistas em Animais de Companhia (APMVEAC) reuniu durante dois dias os profissionais que se dedicam à saúde dos pequenos animais no 27º Congresso, que decorreu em Lisboa. A edição deste ano foi dedicada às doenças hepatobiliares e pancreáticas, patologias frequentes na prática clínica, mas que é preciso diagnosticar de forma precoce para garantir a melhor abordagem terapêutica.
A 1 e 2 de junho o Hotel Olissipo Oriente, em Lisboa, recebeu o 27º Congresso APMVEAC 2024, cuja organização esteve entregue ao Grupo de Interesse Especial em Medicina Interna (GIMI) da Associação, em cooperação do Grupo de Interesse Especial de Diagnóstico por Imagem (GIEDI).
Esta edição do encontro anual da organização profissional que representa os médicos veterinários que se dedicam à saúde dos animais de companhia teve como tema as “Doenças Hepatobiliares e Pancreáticas” e na lista de oradores nacionais contaram-se as presidentes dos grupos de interesse organizadores – Doroteia Bota, do GIMI, e Ana Filipe, do GIEDI – e Rodolfo de Oliveira Leal, especialista europeu diplomado pelo European College of Veterinary Internal Medicine – Companion Animals (ECVIM – CA) que também faz parte do GIMI, e também a convidada internacional Coralie Bertolani, especialista europeia igualmente diplomada pelo ECVIM – CA.
O programa incluiu a abordagem diagnóstica e terapêutica à icterícia, à colangite, à pancreatite, à insuficiência pancreática exócrina, à hepatite aguda e à hepatite crónica, às enteropatias, às hepatopatias e às doenças endócrinas e dislipidémicas assim como foi abordado o papel da imagiologia no diagnóstico de todas estas patologias.
  “São doenças frequentes que, provavelmente, estão subdiagnosticadas” – Doroteia Bota, presidente do GIMI da APMVEAC
Em conversa com a VETERINÁRIA ATUAL à margem do encontro, Doroteia Bota explicou a escolha desta temática para o encontro anual da APMVEAC. Mesmo não tendo dados concretos relativamente à prevalência, a presidente do GIMI assegura que estas “são doenças frequentes que, ainda assim, estão subdiagnosticadas” e, por esse motivo, urge alterar esse cenário. Com este programa, a APMVEAC pretendeu dar ferramentas para que na prática clínica os profissionais “olhem melhor para a vesícula biliar, para o fígado e para o pâncreas” de cães e gatos e fiquem mais alerta para o diagnóstico precoce destas condições de modo a possibilitar uma gestão mais assertiva destes quadros clínicos que resulte em melhores desfechos terapêuticos.
Sobre os fatores de risco que podem estar associados ao desenvolvimento destas doenças, Ana Filipe não descartou a associação à maior longevidade dos animais de companhia, assim como a alimentação ou fatores de risco sociais, tal como acontece na medicina humana. Todavia, a presidente do GIEDI acredita que o eventual crescimento de diagnósticos destas patologias em clínica poderá estar, em grande medida, relacionado com o facto de os tutores estarem cada vez mais comprometidos com a saúde do animal de companhia e investirem mais em meios complementares de diagnósticos e também com o facto de os próprios profissionais ficarem “mais sensibilizados” para estas problemáticas através destas formações. “Ao investigarmos e procurarmos mais [estas patologias] acabamos por diagnosticar mais estas doenças”, reforçou.
Ainda a propósito dos fatores de risco para o desenvolvimento deste grupo de patologias, que na medicina humana estão muito associados a fatores de risco comportamentais, Doroteia Bota apontou aquele que diferencia os animais dos humanos: a predisposição das raças. O gato, pela anatomia característica que agrega os órgãos da zona abdominal num espaço reduzido, apresenta riscos acrescidos de desenvolver doenças hepatobiliopancreáticas, e entre os cães existem raças com especial apetência para desenvolver este grupo de patologias. São disso exemplo o Labrador retriever, o Schnauzer ou o Scottish Terrier, que parecem ter alguma predisposição para as doenças hepáticas, assim como o Cocker Spaniel que está particularmente predisposto para a pancreatite e o Yorkshire Terrier para a patologia digestiva. “Devemos conhecer e valorizar o que encontramos nos check-ups anuais [destas raças]. Por exemplo, se aparecer um Labrador que no check-up anual tem umas enzimas hepáticas elevadas devo valorizar esse dado mais do que quando ele surge num cão de raça indefinida, uma vez que esta raça tem uma particular predisposição para a doença hepática. Por isso, há que valorizar [a predisposição racial] e ver se estamos em presença de uma doença silenciosa que, muitas vezes, só nos apercebemos numa fase mais avançada”, explicou.
  “Investigamos e procuramos mais [estas patologias] e, por esse motivo, acabamos por diagnosticar mais estas doenças” – Ana Filipe, presidente do GIEDI da APMVEAC
Contudo, é reconhecido que, em matéria de diagnóstico, este grupo de patologias ainda apresenta alguns desafios para os profissionais médicos na prática clínica. Ana Filipe, enquanto médica veterinária que se dedica à área do diagnóstico por imagem, admitiu que nem sempre é fácil obter uma imagem conclusiva que permita um diagnóstico claro. “O fundamental para o diagnóstico destas patologias é que exista uma sinergia entre os profissionais”, declarou, explicando: “As pessoas têm muita esperança de que uma imagem ecográfica lhes dê o diagnóstico [conclusivo] e muitas das vezes a imagem de um fígado pode aparecer de diversas formas”. Assim sendo, a presidente do GIEDI defendeu que os diagnósticos não podem depender exclusivamente do exame imagiológico, devendo antes assentar numa súmula de informações que passa pela interpretação dos exames analíticos e pela anamnese do animal, muito embora a médica veterinária tenha reconhecido que, em todo o processo de tomada de decisão nestes casos, “a imagem ajuda muito”.
Relativamente ao tratamento disponível para este grupo de doenças, Doroteia Bota acredita que já existem ferramentas terapêuticas que permitem assegurar um tratamento eficaz de uma parte significativa de casos clínicos. O que é necessário é que os profissionais procurem a evidência científica disponível sobre as terapêuticas, muita dela acessível em artigos que até são de acesso gratuito, e apostem na formação contínua, já que “a medicina veterinária está em constante evolução” e exige uma permanente atualização de conhecimentos.
Conhecer as predisposições raciais “ajuda a melhorar o protocolo diagnóstico”
Também a convidada internacional deste 27º Congresso APMVEAC 2024 reforçou o apelo à formação contínua ao longo da vida profissional do médico veterinário. “Esta é uma profissão muito dura, mas o seu lado bonito é que podes aprender algo novo a cada dia”, declarou a especialista europeia à VETERINÁRIA ATUAL, para quem a constante aprendizagem “é uma ferramenta indispensável para conseguir prestar os melhores cuidados aos pacientes”.
Além disso, acrescentou a médica veterinária do Hospital Veterinário Canis Mallorca, em Palma de Maiorca, na conversa à margem do congresso, essa necessidade constante de aprendizagem “permite manter a ilusão”. “Manter-me capaz de aprender e diagnosticar coisas novas ajuda-me a manter a ilusão da profissão e isso é muito gratificante”, explicou.
Nesse sentido, Coralie Bertolani considera fundamental a formação nesta área das patologias hepatobiliares e pancreáticas pois, frisou, “nunca consegues diagnosticar uma doença que não conheces e conhecer bem estas patologias faz com que os médicos veterinários estejam mais atentos à apresentação [de cada uma delas] o que aumenta muito a capacidade diagnóstica”.
Com tutores cada vez mais atentos e dispostos a investir na saúde do animal de companhia e com o acesso dos profissionais a melhores meios de diagnóstico, a especialista europeia acredita que a capacidade de os médicos veterinários encontrarem estes casos numa fase ainda precoce está a aumentar, o que irá melhorar o prognóstico e o desfecho destes quadros clínicos.
“Nunca consegues diagnosticar uma doença que não conheces e conhecer bem estas patologias faz com que os médicos veterinários estejam mais atentos à apresentação [de cada uma delas] o que aumenta muito a capacidade diagnóstica” – Coralie Bertolani, especialista europeia em medicina interna de animais de companhia
Todavia, voltou a frisar, é essencial apostar no conhecimento. Se o profissional não conhece estas patologias nem as raças mais predispostas ao desenvolvimento destes quadros clínicos, muitos destes casos podem passar despercebidos e só serem diagnosticados numa fase avançada da doença, o que torna o desfecho mais incerto. “Tens de conhecer as predisposições raciais porque isso ajuda a melhorar o protocolo diagnóstico”, sublinhou Coralie Bertolani, pegando no exemplo do Bedlington Terrier que tem particular predisposição para a doença hepática e para o qual é necessário ter particular atenção à presença de alguns marcadores, como seja apresentar uma elevação da PCR.
Não obstante, também a médica veterinária espanhola reconheceu as dificuldades que ainda existem no campo do diagnóstico. “Às vezes esquecemo-nos que o clínico é que avalia e queremos que seja uma imagem [ecográfica] a dar-nos 100% de certeza, que seja absolutamente sensível e específica e isso não existe. Temos de respeitar a opinião clínica, é ela que impera”, acrescentou.
Sobre este ponto, a especialista europeia também reconheceu que continua a sentir falta na prática clínica de “ferramentas diagnósticas alternativas à biopsia” no caso do diagnóstico da pancreatite crónica, assim como de alguma padronização de procedimentos na realização das biópsias e dos exames imagiológicos.
Para os casos de doença crónica seria igualmente importante encontrar alguns marcadores de diagnóstico, muito embora Coralie Bertolani admita que tal possa ser difícil de alcançar. Afinal, se no caso da medicina humana, com estudos mais robustos e com mais doentes incluídos, encontrar marcadores de diagnóstico tem sido um objetivo difícil de alcançar, na medicina veterinária, em que os estudos têm menos pacientes incluídos, essa tarefa ainda está mais dificultada.
O campo terapêutico tem evoluído muito nos últimos anos, mas também nesta matéria, ainda há um caminho a percorrer no sentido de melhorar as respostas disponíveis para as várias patologias e dirigidas às especificidades de cada raça. Por ora, a especialista pelo ECVIM – CA admite que em alguns casos, como nas pancreatites agudas, que são situações muito severas, “o melhor que podemos dar ainda é o tratamento de suporte e esperar”.
As limitações terapêuticas existentes resultam também do desconhecimento sobre a etiopatogenia de algumas doenças. “Por exemplo, não sabemos muito bem a causa das hepatopatias crónicas e isso faz com que o tratamento disponível não seja assim tão bom”, afirmou a médica veterinária.
E também a utilização de antibióticos levanta problemas na prática clínica. São, efetivamente, “ferramentas indispensáveis na saúde animal, tal como acontece na saúde humana”, com um papel importante no plano terapêutico de algumas das doenças do trato hepatobiliopancreático, mas existe a necessidade imperiosa, e até mandatada pelas diretrizes da União Europeia, de apostar numa utilização racional deste grupo de fármacos – apenas durante o período necessário e na dose indispensável – de forma a diminuir a resistência à antibioterapia. A questão, levantada por Coralie Bertolani, é que existem “poucos dados sobre o tempo necessário [de antibioterapia] para tratar determinadas patologias” o que impede o estabelecimento de protocolos terapêuticos padronizados.
Não obstante as dificuldades que ainda se apresentam no tratamento destas patologias na prática clínica, a oradora internacional enalteceu o facto de, cada vez mais, nos consultórios veterinários os tutores mostrarem uma maior abertura para investir no tratamento das doenças crónicas, como a hepatite ou a pancreatite. “Se veem que o animal está bem, que não sofre e não tem crises frequentes isso ajuda a uma boa adesão ao tratamento”, rematou.
Saúde mental na medicina veterinária: “É uma problemática real”
Se o maior envolvimento e compromisso dos tutores com a saúde dos animais de companhia tem melhorado os cuidados médicos destes membros das famílias multiespécie também é um facto que tem representado um desafio para as relações entre tutores e médicos veterinários. E o impacto faz-se sentir no aumento dos níveis de stress em resultado dos conflitos entre profissionais e clientes, no aumento dos casos de burnout e de depressão.
Coralie Bertolani reconheceu na conversa com a VETERINÁRIA ATUAL que a saúde mental “é uma problemática real” na comunidade veterinária espanhola e também já fez os órgãos representativos da classe em Espanha desenharem programas de apoio à saúde mental aos profissionais. E no país vizinho também “há muitos veterinários que atualmente pensam mesmo abandonar a profissão”, relatou a especialista europeia, admitindo que na génese de muitas dessas decisões estão os problemas com os tutores, cada vez mais exigentes e, sobretudo em alguns casos, mais confrontacionais com as equipas das clínicas e hospitais veterinários.
Ainda assim, a médica veterinária espanhola assegura que este não será um problema exclusivo da medicina veterinária pois, relatou, “depois da pandemia por Covid-19 todas as profissões de saúde, não apenas os médicos veterinários, notaram este aumento de pressão [por parte dos utentes]” que não raras vezes dá origem a conflitos que contribuem para o aumento do stress laboral crónico das profissões de saúde.
Como forma de diminuir o impacto deste maior escrutínio por parte dos tutores, além do recurso aos programas de saúde mental disponibilizados pelos organismos representantes das profissões médicas, Coralie Bertolani reforça a necessidade de apostar na formação profissional. Com mais conhecimento e com maior capacidade resolutiva das questões que aparecem em clínica, o médico veterinário “terá maior segurança [na prática clínica] e, consequentemente, menos risco de ter problemas com as famílias, uma vez que estas também sentem que sabemos o que estamos a fazer”, concluiu.