A desparasitação anual em animais de companhia (e de produção) tem uma importância inegável, na medida em que as doenças parasitárias podem impactar de forma pronunciada o bem-estar animal e a saúde pública. E, por “anual”, neste caso, deve entender-se um ato repetido e contínuo ao longo do ano. Isto porque as alterações climáticas têm provocado a expansão e permanência de parasitas por períodos e áreas em que anteriormente não estavam tão ativos, alterando os ritmos de desparasitação recomendados e preconizando a proteção contínua e o tratamento sem interrupções.
Em Portugal, a disseminação e a prevalência de parasitas (externos) em animais de companhia e de produção têm vindo a estender-se além dos períodos habituais de maior atividade e a aumentar, impulsionadas pelas condições climatéricas no país.
Os dados do relatório de 2023 da Rede Nacional de Vigilância de Vetores (REVIVE) comprovam esta realidade, que tem vindo a suscitar uma preocupação crescente na comunidade veterinária, ao confirmar a presença de parasitas – como é o caso das carraças – ao longo de todo o ano e em áreas geográficas onde anteriormente estes não se conseguiam estabelecer.
“A desparasitação na periodicidade recomendada, especialmente nas formulações mais recentes, parece ser suficiente. No entanto, nas formulações mais antigas e que foram usadas de forma exclusiva durante anos e anos, começam a apresentar algumas resistências e ineficácia, pelo menos na periodicidade preconizada pelos fabricantes.” – Joana Gonçalves, médica veterinária, Trás-os-Vet
Joana Gonçalves é veterinária na Trás-os-Vet e trabalha em Montalegre e Boticas há 11 anos, nas áreas de animais de produção e de companhia. Sobre a zona onde exerce, diz que “no Inverno, com o frio e a neve, costumava ver uma redução nos parasitas externos que nos anos mais recentes não se tem verificado de forma tão evidente”. Segundo a médica, “a babesiose aguda, que costumava diagnosticar numa altura do ano mais concentrada, agora diagnostico durante o ano todo”. Além disso, refere, “várias pessoas se têm queixado da quantidade de carraças que veem e vão encontrando no próprio corpo. Só com uma desparasitação muito eficaz dos animais (e do ambiente) se conseguem controlar”. Ainda que não oiça relatos frequentes de “febre da carraça” nas pessoas, se estas afetam com tanta frequência os animais e “com a quantidade de carraças que vou vendo, temo que venha a aumentar também esse tipo de doenças”, sustenta.
Impacto das parasitoses além dos animais
Questionada sobre o impacto que as doenças parasitárias têm em termos de bem-estar animal, mas também de saúde pública, Joana Gonçalves sublinha que “os parasitas externos, enquanto vetores de doenças para animais e humanos, podem transmitir várias doenças, nomeadamente febre da carraça”. Revela ainda que “também as sarnas – doença de declaração obrigatória, atualmente controladas com facilidade com as isoxazolinas nos animais de companhia – são transmissíveis entre animais e pessoas, causando bastantes transtornos”. De acordo com a veterinária, “uma simples pulga pode causar reações exuberantes em animais e pessoas suscetíveis”.
Em relação a parasitas internos, apesar de acreditar que as infeções nas pessoas ocorrem principalmente através da alimentação, “o contacto cada vez mais próximo com os animais domésticos, que possam estar eventualmente parasitados, podem ser outra fonte de infeção importante”, alerta a médica, lembrando que “os parasitas podem causar prurido, dor, alterações na absorção dos alimentos, obstruções, levando a uma maior debilidade e capacidade prejudicada de resposta a doenças”.
Ao viver e trabalhar numa zona rural, com uma prevalência elevada e visível de parasitas internos e externos, “é comum ter animais parasitados com Dipylidium caninum que vêm para cirurgia ou começar a tricotomia pré-cirúrgica e ver as pulgas a circular e as carraças agarradas”, relata Joana Gonçalves, sublinhando que “obviamente que os animais com parasitas vão estar expostos a um maior número de doenças (hemoparasitoses, alterações de absorção por parasitas intestinais, entre outras) e terão, por exemplo, tempos de recuperação de cirurgias mais demorados”. As hemoparasitoses – nomeadamente, Babesia, Erlichia e Ricketsia – “são bastante prevalentes nesta zona e são um motivo frequente de doença grave nos animais (ocasionalmente, com necessidade de internamento e transfusão sanguínea)”, revela a veterinária da Trás-os-Vet.
00
Desparasitação: Os erros e mitos mais comuns
MITOS
– Considerar que os parasitas só estão ativos na primavera e no verão.
– Acreditar que os animais que não vão à rua não estão em risco, quando na verdade todos nós podemos levar parasitas para casa. Por exemplo, se as pulgas apanharem boleia de um tutor de um animal que não sai de casa, ao chegarem a essa casa as pulgas encontram as condições ideais para se reproduzirem e podem dar origem a infestações.
ERROS
❌
– Apenas proteger os animais na primavera e no verão.
– Aplicação das pipetas: Há muitos tutores que não aplicam estes medicamentos diretamente na pele dos animais, o que vai ter uma influência negativa na eficácia destes medicamentos.
– Aplicação das coleiras: Muitos animais andam com as coleiras penduradas, em vez de estarem ajustadas ao pescoço.
– Administração dos desparasitantes errados para o tipo de parasita que se quer prevenir: Por exemplo, tentar tratar/prevenir ténias com as diferentes combinações de isoxazolina + lactona macrocícilica ou carraças em gatos com pipetas apenas para pulgas, fazendo com que depois as pessoas fiquem a pensar que o desparasitante não funciona.
– Administração dos medicamentos na periodicidade errada, já que muita gente acredita que determinada pipeta ou comprimido funciona para três ou seis meses, quando só funciona para um.
– Não usar a formulação mais adequada para aquele animal/família.
Alterações climáticas e de ritmos de desparasitação
No entender de Joana Gonçalves, “a quantidade crescente de parasitas presentes nos cães e gatos” confirma o impacto que as alterações climáticas têm em termos de expansão e permanência de parasitas ao longo de todo o ano.
Neste sentido, a veterinária advoga que “a desparasitação na periodicidade recomendada, especialmente nas formulações mais recentes, parece ser suficiente. No entanto, nas formulações mais antigas e que foram usadas de forma exclusiva durante anos e anos, começam a apresentar algumas resistências e ineficácia, pelo menos na periodicidade preconizada pelos fabricantes”.
Estes desafios acrescidos no que respeita aos ritmos de desparasitação recomendados posicionam a proteção contínua como uma das formas mais eficazes no controlo dos diferentes parasitas. A veterinária entende que “esta deve ser feita segundo as indicações do fabricante” e adianta: “Eu vou variando o princípio ativo, especialmente nas desparasitações internas, para evitar resistências”. De acordo com a médica, os humanos terão também importância na não transmissão ao aprenderem, desde tenra idade, noções de higiene (tanto na básica lavagem de mãos, como na desinfeção dos alimentos crus, na procura de carraças após um passeio na floresta, etc.).
“Atualmente há várias opções para desparasitar os animais, desde as opções mensais às opções trimestrais ou mesmo anuais. A opção de escolha deve ter em consideração o animal, o seu estilo de vida e também o tutor e a capacidade de implementar as recomendações de prescrição.” – Inês Barbosa, departamento científico de animais de companhia, MSD Animal Health em Portugal
Comunidade veterinária atenta e soluções cada vez mais inovadoras
Igualmente fundamental é a existência de uma comunicação clara entre veterinários e tutores sobre os riscos associados aos parasitas, que leve ao estabelecimento de um plano de prevenção individualizado e adequado.
O trabalho do European Scientific Counsel Companion Animal Parasites (ESCCAP) pode constituir uma ajuda nesse âmbito. A Associação ESCCAP Portugal trabalha com os proprietários de animais e os profissionais veterinários a nível nacional para aumentar a consciencialização sobre a ameaça potencial dos parasitas e para fornecer informações e conselhos específicos para Portugal.
Na opinião de Joana Gonçalves, a comunidade veterinária está atenta e sensível à importância da prevenção no contexto da disseminação de parasitas e “é por isso que continuam a surgir novas fórmulas e novas abordagens aos parasitas”, acredita.
Atualmente, avança a veterinária, “há várias gamas de medicamentos e de diferentes apresentações, que permitem adequar com maior pertinência ao animal e à sua família”. Desde apresentações injetáveis, a orais e passando pelas tópicas, com periodicidades variáveis, “existirá sempre um medicamento mais conveniente para cada animal/família”, conclui.
“O tratamento sem interrupções é fundamental contra as parasitoses”
Em entrevista à VETERINÁRIA ATUAL, a responsável pelo departamento científico de animais de companhia da MSD Animal Health em Portugal, Inês Barbosa, refere que as alterações climáticas têm dado origem a uma presença anual dos parasitas e à sua disseminação para áreas onde anteriormente não se conseguiam estabelecer. Como tal, a veterinária sublinha a necessidade de manter os animais protegidos ao longo de todo o ano.
VETERINÁRIA ATUAL (VA) | Qual o impacto que a desparasitação anual tem no estado de saúde global dos animais de companhia?
INÊS BARBOSA (IB) | Em Portugal tornou-se muito difícil prever quando é que a temperatura vai estar mais favorável para o desenvolvimento dos parasitas externos, sendo que em algumas regiões do nosso País, as condições climáticas permitem que alguns parasitas se mantenham ativos ao longo de todo o ano. De acordo com os dados do REVIVE 20231, a espécie de carraça mais prevalente no nosso País – Rhipicephalus sanguineus – tem o seu pico de atividade nos meses de primavera e verão. Já a segunda espécie mais prevalente – Ixodes ricinus (vetor da borreliose de Lyme) – tem o seu pico de atividade nos meses de outono e inverno.
Manter os animais de companhia desparasitados ao longo de todo o ano é fundamental para garantir que os conseguimos proteger dos parasitas e evitar que possam vir a desenvolver doenças transmitidas por estes vetores.
VA | Em termos da prevalência de parasitas, qual o ponto de situação em Portugal? Quais são as zoonoses parasitárias mais comuns, as que têm vindo a aumentar em termos de incidência e também as mais preocupantes?
IB | As condições climáticas do nosso País têm-se revelado importantes para o aumento da prevalência e disseminação dos parasitas externos. De acordo com o REVIVE 2023, verificou-se, nesse ano, um aumento considerável do número de capturas de carraças a parasitar animais. O aumento destes parasitas pode implicar um crescimento nas doenças transmitidas por carraças que constituem um problema em saúde pública humana e animal.
Os mosquitos culicídeos são outro tipo de parasitas externos de relevância. Neste grupo encontramos o vetor da Dirofilaria immitis, uma doença que, de acordo com os últimos estudos efetuados em Portugal, tem uma prevalência em cães de 5,9%, tendo sido identificada em distritos onde anteriormente não havia nenhum caso descrito2.
Em Portugal, a prevalência da Leishmaniose canina é outro fator preocupante, uma vez que esta doença transmitida pelo flebótomo mais do que duplicou nos últimos anos3. O contacto próximo entre o cão e o Homem faz desta zoonose uma preocupação a nível da saúde pública, particularmente em pessoas imunocomprometidas.
Em relação aos parasitas internos, os que mais afetam os animais de companhia são o Toxocara, o Ancylostoma e a Giardia, todos eles com potencial zoonótico. Os animais afetados podem permanecer assintomáticos, sendo os animais mais jovens os que podem apresentar doença mais severa associada a estas parasitoses.
A rápida identificação dos parasitas e a utilização eficaz de tratamentos preventivos e de rastreio são essenciais para limitar a propagação de parasitas e reduzir o risco zoonótico.
VA | Quais são, de uma forma geral, as consequências que as doenças parasitárias têm em termos de bem-estar animal, mas também de saúde pública?
IB | Todos estes parasitas têm potencial de afetar o bem-estar e a saúde, tanto dos animais, como do ser humano. Portugal apresenta uma das taxas de incidência de febre escaro-nodular – doença transmitida ao homem pela carraça Rhipicephalus sanguineus – mais elevada da bacia mediterrânea. Ainda que a maioria das pessoas afetadas por esta doença tenha uma evolução benigna, em Portugal o número de óbitos por febre escaro-nodular também é elevado, comparativamente a outros países onde a doença é endémica. Por sua vez, a borreliose de Lyme – doença que pode afetar o cão e cujo vetor é a carraça Ixodes ricinus – representa, em Portugal, a segunda doença associada à picada de carraça com maior prevalência no homem.
Dos parasitas internos mais prevalentes nos animais de companhia, o Toxocara é responsável pela larva migrans visceral e larva migrans ocular que pode provocar cegueira unilateral em humanos. O Ancylostoma caninum pode dar origem à larva migrans cutânea que provoca lesões cutâneas no homem. Estudos apontam para uma elevada presença de ovos destes dois últimos parasitas nos solos, sendo esta uma das fontes de contaminação em humanos4.
VA | Considera que a comunidade veterinária está atenta e sensível à importância da prevenção no contexto da disseminação de parasitas?
IB | Sim, sem dúvida. As equipas médico-veterinárias estão hoje muito sensíveis para a importância da desparasitação e para o papel do médico veterinário como agente de saúde pública na prevenção das doenças transmitidas por parasitas.
VA | A influência das alterações climáticas na expansão e permanência de parasitas ao longo do ano vem trazer desafios acrescidos, nomeadamente no que respeita aos ritmos de desparasitação recomendados. O que se preconiza atualmente em termos de timings e que outros desafios decorrem desta realidade?
IB | As alterações climáticas têm dado origem a uma presença anual dos parasitas e à sua disseminação para áreas onde anteriormente não se conseguiam estabelecer. É por este motivo que, atualmente, os especialistas em parasitologia falam na importância de manter os animais protegidos ao longo de todo o ano. O principal desafio desta recomendação é o seu cumprimento por parte dos tutores que, muitas vezes, descuram os tratamentos nas alturas mais “frias” do ano, deixando os seus animais expostos aos perigos dos parasitas.
VA | A proteção contínua é, então, a forma mais eficaz de prevenir parasitoses e de evitar a transmissão aos humanos/famílias? Como deve ser feita?
IB | Ao protegermos de forma contínua, sem interrupções nos tratamentos, estamos a proteger os animais e a contribuir para reduzir a carga parasitária nos locais onde os animais convivem com os seus tutores, tendo um impacto importante ao nível da saúde de toda a família. Se deixarmos os animais desprotegidos, ou se recomendarmos medicamentos que não eliminam os parasitas, vamos permitir que estes parasitas prosperem e possam afetar outros membros da família.
VA | Quais as soluções antiparasitárias atualmente disponíveis no mercado e que inovação/evolução tem havido a este respeito? Podemos esperar novidades num futuro próximo?
IB | Atualmente há várias opções para desparasitar os animais, desde as opções mensais às opções trimestrais ou mesmo anuais. A opção de escolha deve ter em consideração o animal, o seu estilo de vida e também o tutor e a capacidade de implementar as recomendações de prescrição. Se um tutor não consegue dar comprimidos há outras opções, é importante comunicar com os tutores apresentar todas as soluções possíveis e, em conjunto, decidir qual a solução que melhor se adapta ao animal e ao tutor.
O mercado da desparasitação externa tem sido um dos motores da inovação na medicina veterinária. Em 2024, surgiu no mercado o Bravecto injetável, o primeiro medicamento veterinário sistémico que protege os cães das pulgas e carraças durante 1 ano, um injetável revolucionário que só pode ser administrado sob controlo do médico veterinário e que contém uma substância ativa de confiança, o fluralaner que já está no mercado desde 2014. Nos próximos tempos teremos mais novidades na área da desparasitação dos animais de companhia.
Referências:
- REVIVE 2023 – Culicídeos, ixodídeos e flebótomos: Rede de Vigilância de Vetores / Centro de Estudos de Vetores e Doenças Infeciosas Doutor Francisco Cambournac. Lisboa: Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, IP, 2024.
- Esteves-Guimar.es, J.; Matos, J.I.; Leal-Sousa, B.; Oliveira, P.; Lobo, L.; Silvestre-Ferreira, A.C.; Soares, C.S.; Rodríguez-Escolar, I.; Carretón, E.; Morchón, R.; et al. Current State of Canine Heartworm in Portugal. Animals 2024, 14, 1300. https://doi.org/10.3390/ani14091300
- Almeida, M.; Maia, C.; Cristóvão, J.M.; Morgado, C.; Barbosa, I.; Ibars, R.F.; Campino, L.; Gonçalves, L.; Cortes, S. Seroprevalence and Risk Factors Associated with Leishmania Infection in Dogs from Portugal. Microorganisms 2022, 10, 2262. https://doi.org/10.3390/microorganisms10112262
- David Otero, Ana M. Alho, Rolf Nijsse, Jeroen Roelfsema, Paul Overgaauw, Luís Madeira de Carvalho, Environmental contamination with Toxocara spp. eggs in public parks and playground sandpits of Greater Lisbon, Portugal, Journal of Infection and Public Health, Volume 11, Issue 1, 2018, Pages 94-98, ISSN 1876-0341, https://doi.org/10.1016/j.jiph.2017.05.002.
*Artigo de opinião publicado na edição 191, de março, da VETERINÁRIA ATUAL