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Médicos Veterinários

Medicina veterinária de catástrofe: “Seria desumano alguém voltar de situações como estas e dizer ‘eu sou a mesma pessoa’”

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Esteve a salvar animais no desastre ambiental de Brumadinho, nos fogos do Pantanal e nas cheias de Rio Grande do Sul. Foi até ao Chile ajudar as equipas que regatavam animais domésticos e selvagens nos fogos de 2024. Aldair Pinto, médico veterinário de Belo Horizonte, veio ao 1.º Seminário Internacional de Medicina Veterinária de Desastre e Catástrofe, que decorreu em Almada a 10 e 11 de janeiro, partilhar a experiência de quem se dedica à medicina veterinária de catástrofe. Em entrevista à VETERINÁRIA ATUAL reconhece a dureza desse trabalho e aponta o apoio psicológico às equipas como fundamental para salvaguardar a saúde mental de quem decide passar por situações limite em prol do bem-estar animal.

Enquanto médico veterinário, como nasceu este interesse pela área da medicina de resgate? 

Em 2019 fui convidado a montar um hospital [de campanha] durante um desastre de grandes proporções, que foi o rompimento da barragem em Brumadinho, no Brasil.  Foi considerado um desastre a nível nacional e a empresa [responsável pela barragem] juntamente com o Conselho Federal de Medicina Veterinária, que é a nossa Ordem dos Médicos Veterinários, convidou-me para construir este hospital.

Quando comecei a trabalhar neste que foi um dos maiores desastres em que já estive, vi realmente que não tinha só um interesse em trabalhar [em medicina veterinária de catástrofe], mas era uma necessidade, porque em 2019 não se falava sobre a construção de hospitais de campanha, de equipas de resgate de animais.

Ao ver muitos animais morrerem por causa disso, trouxe-me um certo inconformismo e foi quando eu decidi estudar esta área. Fui fazer os meus cursos de bombeiro e montar um grupo de trabalho.

Qual era a sua atividade profissional antes de se dedicar à área do resgate animal? Trabalhava em clínicas, dava aulas na faculdade? 

Eu continuo a trabalhar na faculdade como professor [na UNI-BH e na Universidade Arnaldo] na área de patologia, de necropsia e investigação criminal. Também sempre gostei muito de atividades e desportos radicais e quando comecei na faculdade a trabalhar com essa área de medicina investigativa, envolvi-me muito com as atividades policiais.

Já era professor em três universidades e, além disso, também sou presidente da Associação Nacional de Clínicos de Pequenos Animais. É uma associação sem fins lucrativos e foi uma porta de entrada também para esse tipo de atividade não remunerada, voluntária em desastres.

O desastre ambiental de Brumadinho teve grandes proporções, com uma larga região inundada por lama. Numa das conferências que fez no 1.º Seminário Internacional de Medicina Veterinária de Desastre e Catástrofe, disse que toda a vez que vai para um desastre, nunca volta a mesma pessoa. Como voltou dessa catástrofe ambiental?

Sendo o meu primeiro desastre, e também um dos maiores que já presenciei, voltei de Brumadinho com uma visão completamente diferente da minha profissão. No Brasil, existe uma máxima conhecida por todos que estudam veterinária: é uma profissão que não traz retorno financeiro. A veterinária é conhecida no Brasil como uma profissão onde se consegue sobreviver com o que se ganha com ela. E, muitas vezes, não é só pela questão financeira, mas porque a sociedade brasileira ainda não entende a importância do médico veterinário, como este gostaria de ser reconhecido. O veterinário nunca vai ter o mesmo reconhecimento de um médico.

Só que, quando trabalhei em Brumadinho, e consegui salvar muitas vidas, comecei a entender que a minha profissão pode deixar-me muito rico e não estou a falar de dinheiro. Posso ter outros tipos de riqueza, de satisfação em salvar animais de maneira voluntária e toda a vez que volto de um desastre consigo compreender mais a humanidade, consigo entender mais aquelas pessoas que perdem tudo e ainda assim conseguem ter a benevolência, o altruísmo de achar que podem ajudar os outros. Isso faz-me ser uma pessoa muito melhor.

“Saio de casa todos os dias para trabalhar em águas geladas, enfrentando o risco de contrair doenças porque gostaria muito que outras pessoas me viessem resgatar com a mesma responsabilidade, ética e amor que fizemos para aquele animal” – Aldair Pinto, coordenador do GRABH e do GRA’S

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Quando voltou de Brumadinho decidiu dedicar a sua vida a esta área.  Como criou a sua equipa? Ao todo existem quatro equipas de resgate e socorro animal no Brasil, certo?

Sim, existem quatro equipas no Brasil.  Em Belo Horizonte temos duas equipas que coordeno – o Grupo de Resgate Animal de Belo Horizonte (GRABH, uma organização não governamental) e o Grupo de Resgate de Animais (GRA’S, veiculada à Universidade Arnaldo).

Depois de voltarmos de Brumadinho, encontramos a necessidade de aprimorar o nosso trabalho. Foi o primeiro desastre, não tínhamos equipamentos de resgate, não tínhamos muitos equipamentos de proteção individual, não tínhamos muita visão de como trabalhar.  Então, ao invés de continuar a trabalhar, voltamos um passo atrás e fomos estudar. Fomos estudar com os bombeiros sobre o que é ser bombeiro, fomos estudar o que é ser um especialista em emergência, sobre o que é ser um intensivista veterinário e associamos esse trabalho em conjunto.

Fomos também trabalhar com os médicos e os enfermeiros [de medicina humana] para entender como era feito o atendimento pré-hospitalar, os atendimentos de urgência humana, para reproduzirmos na nossa profissão.

Um facto muito interessante nessa história foi percebemos que muitos colegas que trabalham no dia a dia sentem a necessidade de que esse trabalho de resgate aconteça diariamente.  São pessoas e animais que precisam, são minidesastres e minicatástrofes diários que traduzimos para a palavra vulnerabilidade.  Por mais que Portugal não tenha desastres [como o de Brumadinho] tem vulnerabilidades e são as pessoas que trabalham nas provedorias de animais que lidam todos os dias com a vulnerabilidade das pessoas.  Elas participam em pequenos desastres chamados vulnerabilidades sociais, que são pessoas às vezes de poucos recursos, que não têm uma educação e uma cultura para com os animais.  No nosso grupo percebemos que havia necessidade de formar não só para o trabalho em desastres, mas também para o trabalho de socorrer animais na rotina urbana diária.

Como é a vossa ligação com os órgãos de governo?  Quer a nível estadual, quer a nível federal, numa ocorrência são acionados por quem? 

Na nossa cidade, que será o nível municipal, os bombeiros têm o nosso telefone na mesa de operações deles.  Porquê?  Porque isso foi uma cultura construída com o tempo. Hoje, os bombeiros sabem que, para muitas das ocorrências que recebem, não têm o equipamento necessário e precisam de um médico veterinário.  Assim como em Portugal, e como em qualquer outro país, existe um determinado momento em que a emergência depende de um profissional médico.  No caso das pessoas, os bombeiros no Brasil têm médicos dentro da corporação, mas não têm médicos veterinários.

Então o nosso telefone fica na mesa de operação dos bombeiros e se precisam de um médico veterinário, ligam-nos para podermos fazer o trabalho. Por exemplo, hoje, enquanto estava a dar a palestra, recebi uma ligação do Brasil, de um tenente militar, que recebeu no telefone dos bombeiros o pedido de socorro a um cão atropelado. A nossa equipa deslocou-se em conjunto com os bombeiros, fizemos um atendimento inicial, e deslocamos o cão para uma clínica parceira dos bombeiros.  Ou seja, o nosso trabalho, mesmo sendo voluntário, é um trabalho oficializado pelos batalhões de bombeiros e da polícia militar e pelos órgãos federais também.

A equipa é constituída só por voluntários? Além de médicos veterinários, contou que também têm jornalistas, filósofos, biólogos…

Olha só que interessante: a nossa equipa é formada por qualquer profissional, seja da saúde ou não, só que com as limitações da cada capacidade operacional de cada um.

Por exemplo, o médico tem um treino, o auxiliar veterinário tem outro treino e os jornalistas, os filósofos, engenheiros, geólogos, oceanógrafos, podem participar perfeitamente.  Eles serão socorristas, entenderão o básico que pode ser feito em qualquer resgate, mas têm atribuições profissionais que não poderão fazer.  De qualquer forma, todos esses voluntários passam por um curso de mais ou menos um ano de duração.

Na cidade de Belo Horizonte, também trabalhamos dentro do hospital público da cidade e aí só os médicos veterinários.  Temos a contratação de quatro profissionais que trabalham como médicos veterinários da prefeitura [câmara municipal] da cidade, a socorrer animais em situação de urgência, de emergência, e temos os voluntários, que são mais de 20, que trabalham em desastres, e também voluntariamente, dentro da capacidade de cada um, atendendo essas ocorrências diárias que existem na nossa cidade e no nosso país.

Como financiam o grupo de voluntários, as missões em desastres e também as missões diárias de socorro animal? Os equipamentos de socorro e resgate são caros, alguns têm de ser construídos de raiz…

No Brasil, assim como acho que acontece em Portugal, as pessoas são solidárias no desastre.

Cerca de 98% dos nossos equipamentos – os veículos, os equipamentos construídos para resgate – foram financiados por pessoas que querem ajudar os animais, mas não têm o preparo psicológico, o treino físico e o treino para estar nas equipas.  São pessoas que entendem a importância do nosso trabalho e perguntam “eu não teria o preparo psicológico para estar no socorro, não tenho condições físicas, mas como posso ajudar a fazer o trabalho que vocês fazem?”

A nossa ONG, além de ter o recurso da prefeitura que nos contrata para esse tipo de serviço, recebe doações de empresas e de pessoas solidárias com a causa animal e temos condições financeiras para manter o nosso grupo com mais de 20 pessoas, de viajar para outros países para poder fazer o nosso trabalho.

Uma outra vez, em Brumadinho, houve uma família em que a esposa faleceu. Quando a lama começou a descer [da barragem], a família estava a sair de casa, evacuando o local, e entraram no carro. A esposa disse para o marido ficar com as crianças, aguardar, que ela iria buscar o cão. Ela voltou para ir buscar o cão e a lama desceu na casa deles. O marido saiu com o carro, com as crianças, mas a esposa faleceu junto com o cão. – Aldair Pinto, coordenador do GRABH e do GRA’S

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Também contou que o que mais o impacta quando chega aos locais de desastre é o silêncio.  Não há curso, não há formação que prepare o socorrista para esse momento?

Nenhum desastre é igual ao outro.  Vou contar algumas coisas que vivi, que tenho guardadas na memória de muitos desastres em que participei.

Temos o costume, tanto no Brasil, como em outros países, de nos cumprimentos iniciais perguntar “olá, tudo bem?”.

Num desastre, estava a fornecer as rações para as pessoas que tinham perdido a casa, mas tinham animais e precisavam de levar alimentação. Faziam uma fila, chegou um senhor e eu disse “olá, tudo bem?” e ele respondeu “não, não está tudo bem”.

Simplesmente entendemos isso como um processo de formalidades, dar um bom dia a uma pessoa, e quando ela trouxe o “não, não estou bem” entendi como alguém que queria ser ouvido. Não existia animal a ser resgatado. Não existiam pessoas a serem resgatadas, mas existia um salvamento, isto é, dar àquela pessoa a oportunidade de ela falar sobre aquilo que a estava a frustrar. Sentei-me com essa pessoa e falei “eu posso te ouvir”. Ele começou a contar histórias tristes do que havia vivido no desastre, viu pessoas morrerem, perdeu parentes e só precisava desabafar. Às vezes, num desastre, conseguimos salvar muitas pessoas sem dizer uma palavra.  Só dando àquela pessoa a oportunidade de ser ouvida.

Uma outra vez, em Brumadinho, houve uma família em que a esposa faleceu.   Quando a lama começou a descer [da barragem], a família estava a sair de casa, evacuando o local, e entraram no carro. A esposa falou “marido, fica com as crianças e espera por mim que eu vou buscar o nosso cão”. Ela voltou para buscar o cão e a lama desceu na casa dela. O marido saiu com o carro, com as crianças, mas ela faleceu junto com o cão. Quando chegamos à casa, encontrei o corpo do animal e liguei para o marido – por incrível que pareça, ele era vice-presidente da nossa ordem de veterinária – e disse que tinha encontrado o corpo do cão. Então ele disse “Aldair, vê se ainda existe a árvore do quintal, uma pitangueira”, e estava lá ainda, e pediu: “Podes fazer o favor de enterrar o cachorrinho aí?  Porque neste momento eu estou a enterrar a minha esposa”.

Olha a sensibilidade do momento de ligar para uma pessoa que está a enterrar a esposa e ele pedir-me para enterrar o seu animal debaixo daquela árvore.  Acabei por descobrir que essa árvore era onde a esposa se sentava à tarde para, com os filhos, para ler um livro junto com esse cachorrinho.  Ela faleceu por causa desse cachorro, foi enterrada pelo marido e eu enterrei o cachorrinho dela debaixo dessa árvore.

Quando dizemos que quando voltamos de um desastre voltamos outra pessoa seria desumano alguém voltar de situações como estas e dizer “eu sou a mesma pessoa”. Nunca mais será a mesma.

Mudamos como pessoas, tanto para o bem, quanto, às vezes, para o mal. E o mal não no sentido de sermos pessoas más, mas de sermos pessoas que já não conseguem ser alegres com aquilo que a sociedade hoje acha que é bonito e interessante.

“Comecei a entender que a minha profissão pode deixar-me muito rico e não estou a falar de dinheiro. Posso ter outros tipos de riqueza, de satisfação em salvar animais de maneira voluntária e todas as vezes que volto de um desastre consigo compreender mais a humanidade” – Aldair Pinto, coordenador do GRABH e do GRA’S

Reconheceu que no fim de cada dia passado a resgatar animais durante as catástrofes, a equipa reúne-se para partilhar as experiências. Que importância tem esse momento para a saúde mental de todos os elementos?

É muito importante dizer que temos um acompanhamento psicológico em grupo e uma das principais premissas – não é uma obrigação, mas é uma premissa – é que todos os membros do grupo façam terapia. É importante ter um acompanhamento psicológico porque a terapia não serve apenas para desabafarmos as coisas que acontecem, serve também para entender e compreender porque sentimos essas coisas. E quando você se conhece a si mesmo, fica mais fácil aprender a lidar com as suas próprias emoções.

Temos uma psicóloga que faz testes psicotécnicos nos nossos membros a cada dois meses e é ela que diz quem são os membros aptos e não aptos para participarem num desastre.

O segundo ponto é termos definido que todos os que vão para o desastre têm uma hora por dia para não trabalhar e dedicar esse tempo ao que lhe faz bem.  Por exemplo, existem pessoas que gostam de se deitar e dormir nessa hora livre, outros que gostam de ouvir música, há quem goste de fazer chamadas de vídeo com a família…  Algumas pessoas, inclusive, usam essa hora diária para conversar com os seus terapeutas. É um momento que usamos para cuidar da nossa saúde mental.

Temos também aquilo a que chamamos de terapias de descompressão ou grupos de descompressão. Todas as pessoas que foram para um desastre, obrigatoriamente quando voltam a casa, cerca de 48 horas depois do descanso, encontram-se para falar sobre aquilo que causou stress, que os deixou frustrados [durante a ação de resgate].

Quando eu voltei do Rio Grande do Sul, fiquei lá cerca de 20 dias, como faço terapia percebi que estava mais irritado do que o normal e estava com dificuldade de me relacionar com as pessoas.

Na minha sessão individual de terapia, o psicólogo disse-me: “Você está muito acelerado”. Uma das coisas que é frequente acontecer é voltarmos muito acelerados, porque a adrenalina não desce da noite para o dia. Mas, eu não conseguia entender o motivo de estar com esse aceleramento e com essa irritação.

Quando sentámos na nossa [sessão de] síndrome de descompressão e ouvia as outras pessoas a falar, veio-me uma cena na cabeça que não tinha a ver com resgate de animais, mas foi naquele momento que percebi como essa cena ainda me irritava.  No resgate de um cavalo, ao voltarmos com o animal na embarcação, vi um barco parado em frente a uma loja de pneus e estavam duas pessoas dentro desse barco que estavam a partir o vidro e a roubar os pneus dessa loja. E durante todos os dias que trabalhei no desastre não consegui perceber o quão irritado fiquei ao saber que, durante um evento em que as pessoas perderam tudo, e aquela loja tinha sido praticamente inundada, duas pessoas foram capazes de pegar num barco e ir à loja partir o vidro e roubar os pneus. Talvez pela adrenalina e pelo foco na missão, simplesmente vi e não processei.  Mas aquilo trouxe-me um ódio tão grande ao imaginar como o ser humano pode ser capaz de, ao mesmo tempo, ajudar pessoas e prejudicar as pessoas no pior nível possível.

Depois dessa sessão, entendi que isso estava a causar-me um problema e acalmei, porque percebi que, em qualquer desastre que a gente vá, vai conhecer o melhor e o pior das pessoas.

Um dos casos que contou do Rio Grande do Sul não foi bem-sucedido. Foram três cães – a Mel, o Giz e a Lua – que não conseguiu salvar, como tinha prometido ao tutor, que até era uma criança. Ainda hoje pensa neles? É assombrado pelos casos que não têm um desfecho feliz? Lembra-se deles ao deitar?

Refletindo sobre os muitos anos de trabalho, o maior problema numa situação de desastre chama-se ego.

Quando o ego infla, começo a pensar mais no que eu quero para mim, do que para os outros. Hoje, o Aldair, quando se deita na cama, ele sabe que não conseguiu salvar o Giz, a Lua, a Mel e ele poderia pensar assim: “eu falhei, eu fui inútil”.

Mas, por que iria pensar isso?

As pessoas que são salvas [nos desastres], dizem a todos os socorristas que eles são heróis, são anjos, que são pessoas que vieram à Terra para os salvar.

Eu não sou nenhum anjo e não sou herói. Sou de carne e osso igual a todas as pessoas. Só existe uma diferença entre mim e aquela pessoa que está sentada ali: eu estudei para salvar e quando penso na possibilidade de não conseguir salvar todos consigo dormir sabendo que fiz o que pude.

O grande problema daqueles que acham que precisavam salvar todos é se inflar no ego e achar que só eles o podem fazer, de que só eles conseguiriam fazer e que outros não poderiam.

Sente que hoje as pessoas dão mais valor ao trabalho das equipas de resgate e socorro animal? A sociedade está mais sensibilizada para as questões do bem-estar animal, tanto os de companhia como os de produção…

As pessoas estão a olhar com outros olhos para os animais e isso é histórico. Há muitos anos reinava na sociedade o chamado teocentrismo, ou seja, tudo o que acontecia – uma chuva, uma queimada – era Deus que mandava para castigar o Homem.

Do século XIX para a frente, transferimos a responsabilidade de Deus para o egocentrismo. O Homem está no centro de tudo e a natureza está aqui para o servir, por isso mata animais e destrói as florestas.

As novas gerações estão focadas no ecocentrismo, isto é, nós fazemos parte de uma sociedade que deve incluir os animais, que deve incluir a natureza e acredito que, hoje, o ser humano tem mudado muito para a versão de entender que ele é só uma peça, não é a peça-chave.

Se me perguntar o que me move nesse trabalho acho que é uma reparação histórica porque todas as vezes que resgato um animal, que entro numa aeronave e fico dez dias longe da minha família, passando dificuldades de alimentação, dificuldades de frio ou calor no local, vou dentro da premissa de Deus de não fazer com o outro o que não queremos que façam connosco. Se me colocar no lugar do cavalo que estava atolado [em lama] sem perspetiva de vida, num local de difícil acesso, fico a imaginar-me deitado [nas mesmas circunstâncias] e sem esperança… De repente, chegam dez pessoas que vieram de outro lugar do Brasil, que gastaram muito dinheiro para entrar num avião, que passam fome, frio, trouxeram muitos equipamentos caros, que usaram com toda a benevolência para dizer “calma que vai ficar tudo bem” e sou retirado daquele local com toda a segurança do mundo e colocado num local seguro, dão-me medicamentos para cessar a minha dor e alimentação. Salvamos um cavalo igual salvaríamos um ser humano e isso mostra-nos que o cavalo e o ser humano tem o mesmo valor. Saio de casa todos os dias para trabalhar em águas geladas, enfrentando o risco de contrair doenças porque gostaria muito que outras pessoas me viessem resgatar com a mesma responsabilidade, ética e amor que fizemos para aquele animal.

Estamos a conversar no momento em que Los Angeles, nos Estados Unidos da América, está a debater-se incêndios terríveis. Como olha para o que está a acontecer?

A nossa equipa já está em contacto com algumas equipas de lá. Talvez os Estados Unidos sejam um dos países mais difíceis de pedir ajuda, até porque eles têm grandes equipas que fazem esse tipo de trabalho e têm muitos recursos.

O que se sabe é uma catástrofe de grandes proporções, vai queimar muita coisa ainda porque não se tem controlo [do incêndio] e o próprio Governador já o reconheceu.

Penso que isto é o começo de um caminho sem volta. No ano passado a Turquia queimou, em 2018 a Turquia já tinha queimado, tivemos um incêndio em 2021 na Itália, na Grécia, tivemos incêndios em França… Quando temos incêndios nos países acima da linha do Equador, temos enchentes nos países abaixo [da linha do Equador] e precisamos entender que os desastres vão aumentar e teremos mais e mais desastres. Vi o Pantanal a arder em 2020, vi o Pantanal queimar no ano passado, ou seja, são eventos que acontecem todos os anos, em proporções maiores ou menores.

O que queríamos muito era que a população entendesse que, quando se fala em mudança climática, não estamos a falar de simples retórica de ambientalistas de que o homem vai acabar com o planeta. O homem não vai acabar com o planeta, o planeta fica cá, nós é que vamos embora e precisamos discutir esses assuntos, entender que existem prioridades maiores do que lançar novos iPhone’s, ou desenvolver naves espaciais para dar a volta à lua. Se pensarmos bem, o Homem já pisou a lua, mas não conhece o fundo do mar.

Então quando falamos de interesse em investir em desastres para salvar os animais, para as pessoas isso deveria ser a prioridade, ao invés do lançamento de novos telefones.

Deixo uma frase de uma tribo indígena do meu país, e também de outros países, quando o homem perceber que não se consegue matar a fome comendo dinheiro vai ser tarde demais.

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