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Leishmaniose: Em caso de dúvida, é sempre melhor testar

Na dúvida, testar é a melhor forma de diagnosticar precocemente a leishmaniose, uma doença complexa, que afeta muito mais cães do que gatos.

Qualquer semelhança com a pandemia de covid-19, é mera coincidência. Mas, na dúvida, testar é a melhor forma de diagnosticar precocemente a leishmaniose, uma doença complexa, que afeta muito mais cães do que gatos e que é difícil de erradicar ainda que tenha tratamento.

A prevenção é a melhor arma de combate e apesar de não existirem muitos casos de leishmaniose humana, é uma realidade que não deve ser ignorada. A abordagem one health é cada vez mais relevante e defendida por médicos de várias especialidades.

 

Continuam a surgir novos casos de leishmaniose ainda que durante o longo período de incubação, não seja detetada de imediato nem no curto prazo. “Os sintomas não surgem logo após o contacto com o vetor, mas mais tarde quando o sistema imunitário deixa de conseguir controlar o parasita”, salienta Ivo Lima da Silva, diretor clínico da Vilavet, em Vila Real de Santo António, no Algarve, adiantando que as alterações climáticas não interferem diretamente com o surgimento do quadro clínico.

Ainda que existam casos de leishmaniose humana (à qual daremos destaque ao longo deste artigo), a doença, em Portugal, é essencialmente um problema veterinário. O diagnóstico pode ser feito por várias técnicas laboratoriais, que se complementam entre si. “Uma despistagem com ‘teste rápido’ deve ser sempre confirmada com testes laboratoriais e os resultados têm de ser interpretados em conjunto com os sinais clínicos”, acrescenta o médico veterinário.

 

Nuno Santos é diretor clínico do Centro Veterinário de Alverca (CVA) e trabalha nesta zona endémica para a leishmaniose há cerca de 16 anos. Tem assistido a uma diminuição do número de casos embora ainda haja muita prevalência. Na sua prática clínica, nunca conheceu nenhum caso relatado em humanos. Contudo, considera que existe sensibilização da população em geral para a hipótese de transmissão também ao homem, mas, ressalve-se, sempre através da picada do mosquito e nunca por contacto direto com o cão. Também a diretora clínica da AlcabidecheVet, Cláudia Correia, refere não ter conhecimento de casos de leishmaniose humana. “Normalmente aparecem em nichos de população mais imunodeprimida com reduzidas condições de higiene. Quando diagnostico um caso deixo sempre bem claro aos detentores que um animal não tratado é um foco de infeção para outros animais e, muito remotamente, para os humanos”, explica. Portanto, quando diagnostico um caso, ou se procede ao tratamento, ou se entrega a declaração de zoonose às autoridades. “Tento também reforçar a ideia da importância de continuar a usar um desparasitante externo que possa eliminar todos os vetores que piquem o animal infetado para que se possa evitar a disseminação da doença pela restante população.”

Devido à localização geográfica em que se insere esta clínica, no concelho de Cascais (também zona endémica de leishmaniose) e associado ao facto de muitos clientes terem os seus animais no exterior das suas residências, regista-se uma elevada taxa de casos, de um a dois por semana. “Não tenho registado grandes alterações das épocas em que os casos são diagnosticados ou não consigo afirmar que se devem às alterações climáticas”, salienta Cláudia Correia.

 

Realidade distinta é vivida por João Paulo Costa [leia a reportagem realizada na Clínica Veterinária Trás-os-Vet, na edição de abril de 2021], médico veterinário com prática clínica no interior do país. “Em Montalegre nunca diagnosticámos nenhum caso de leishmaniose”, partilha. E justifica: “Creio que as baixas temperaturas que se fazem sentir, mesmo no verão, condicionam a sobrevivência do flebótomo e a sua eventual atividade.” Já em Boticas, nas localidades mais quentes e de menor altitude, todos os anos são diagnosticados vários casos.

Como diagnosticar?

Relativamente aos meios de diagnóstico mais adequados, na AlcabidecheVet, Cláudia Correia reitera a sua confiança nos testes rápidos (como por exemplo, o Speed Leish ®). “Quando ainda subsistem dúvidas, confirmamos laboratorialmente com IFI. Como estamos numa zona endémica e a leishmaniose faz parte do meu dia a dia desde que me formei [há mais de 20 anos], o diagnóstico serológico e a vacina da leishmaniose fazem parte regular dos nossos protocolos, quer dos cães jovens, quer de qualquer canino que chegue à nossa clínica”. A diretora clínica admite a enorme exigência que incute na sua equipa para que esteja preparada a despistar a leishmaniose sempre que surgem casos com as diferentes formas e sintomatologias que a doença pode assumir.

 

No CVA, são seguidas as linhas orientadoras da organização Leishvet e apenas são vacinados animais seronegativos daí que sejam realizados testes antes da aplicação das vacinas. “Há vários testes que têm sensibilidades diferentes, um pouco como se passa com a pandemia de coronavírus. Os testes rápidos em caso de dúvida clínica (um resultado negativo, num animal com sintomas compatíveis, ou um positivo num animal vacinado, por exemplo) terão de ser cruzados com outro tipo de testes mais sensíveis para eliminar dúvidas que se possam relacionar com reações cruzadas ou respostas fracas que podem ser quantificadas nestes e, não nos outros, por exemplo”, explica Nuno Santos. Normalmente, são os clínicos que recomendam o teste, mas se os cuidadores quiserem pedir para ficarem mais descansados, a equipa realiza-o de igual modo.

João Paulo Costa tem tido uma boa experiência na testagem da leishmaniose e considera que os testes mais fiáveis e, simultaneamente mais caros, são os de PCR. “Ainda usamos testes rápidos nos nossos CAMV, mas cada vez menos e apenas em situações pontuais, urgentes, ou em casos de sintomatologia muito evidente. Recorremos, habitualmente, ao envio de amostras para ELISA, Leiscan, que tem uma sensibilidade de 95,3% e uma especificidade de 99,8%.”

Colheita de sangue venoso para rastreio de leishmaniose num animal disponível para adoção realizada pela colaboradora Clara Lima.

Anabela Cordeiro da Silva é responsável pelo Grupo de Doenças Parasitárias no i3S, da Universidade do Porto e professora de imunologia na Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto (FFUP). Lidera ainda uma investigação publicada em fevereiro último acerca dos desafios da avaliação serológica com suspeita de leishmaniose clínica. “Este estudo reporta inconsistência de abordagens serológicas de diagnóstico no contexto da leishmaniose canina. Esta conclusão foi obtida utilizando soro de um grupo de animais identificados como clinicamente suspeitos para a leishmaniose canina. Os soros obtidos destes animais foram utilizados num grupo de oito testes serológicos que incluíam os testes comerciais disponíveis”, explica. Os resultados demonstram que existem animais (50% da coorte avaliada) que estão numa zona cinzenta de deteção, ou seja, são apenas detetados por algumas das abordagens de diagnóstico. “Consequentemente, podemos ter amostras seropositivas ou seronegativas dependendo unicamente do antigénio e da técnica utilizada”, acrescenta. Assim sendo, as decisões subsequentes poderão não ser as mais adequadas à condição clínica real do animal.

A equipa reporta no trabalho mencionado que cerca de 50% dos animais suspeitos testados apresentavam seroreatividade dependente do teste. “Obviamente, isto representa um risco real pois dependendo do teste utlizado podemos ter falsos negativos ou falsos positivos. Os níveis de risco são variados, temos obviamente a saúde individual do animal, temos o risco de transmissão para outros cães contribuindo para a manutenção do ciclo de vida do parasita. Além disso, a manutenção de um ciclo de transmissão ativo aumenta o risco de infeção em humanos sendo efetivamente um risco de saúde pública”, refere a docente.

“Infelizmente temos tido cada vez mais casos em que a doença assume a forma imunomediada que é uma das piores em termos de controlo e das mais desgastantes para o veterinário e para o tutor do animal” – Cláudia Correia, AlcabidecheVet

A longo prazo, a equipa pretende encontrar uma abordagem integrada que permita detetar mais eficientemente, não apenas, a doença ativa, mas também as infeções assintomáticas.

Na AlcabidecheVet, segue-se o lema “Em caso de dúvida, testar a leishmaniose” porque Cláudia Correia já assistiu a todos os sintomas possíveis desta doença – mesmo alguns que não estão descritos – e defende que “existem diferentes formas da doença que podem mimetizar outras patologias. Infelizmente temos tido cada vez mais casos em que a doença assume a forma imunomediada que é uma das piores em termos de controlo e das mais desgastantes para o veterinário e para o tutor do animal”.

Leishmaniose felina

Nuno Santos nunca teve nenhum contacto com casos de leishmaniose em gatos. “É muito mais raro”, diz. “Na espécie felina os sinais mais comuns são nódulos e feridas cutâneas e/ou mucocutâneas e aumento do tamanho dos linfonodos”, explica.

A realidade é transversal a outras clínicas, mas Cláudia Correia refere que, na AlcabidecheVet, de entre os milhares de casos de leishmaniose canina que já foram diagnosticados, teve apenas dois casos felinos, sendo que o último ocorreu em 2016 num gato que já sofria de insuficiência renal, asma e outros problemas de saúde. “Repentinamente surgiram umas pequenas vesículas nas pálpebras e orelhas (muito semelhante ao outro caso que já tinha diagnosticado). Fiz de imediato o teste (Speed Leish K TM) que deu positivo, seguido de punções das massas e respetiva citologia e esta última revelou formas parasitárias compatíveis com leishmania sp”, explica. Como o gato era insuficiente renal, foi feito “o tratamento apenas com aluprinol e, ao fim de uns meses, as lesões cutâneas desapareceram totalmente e o animal viveu mais dois anos”, conta. De forma a diferenciar os casos de leishmaniose canina, Cláudia Correia considera que, nos gatos, a doença ataca sobretudo os que são imunodeprimidos. “Considero ainda que os gatos são naturalmente mais resistentes do que os cães, sendo também possível que exista um número com algum significado de gatos infetados, mas que não desenvolvem os sintomas da doença”.

O Grupo de Doenças Parasitárias do i3S tem desenvolvido o seu trabalho no contexto emergente da leishmaniose felina e também em outras espécies silvestres de modo a esclarecer o possível impacto como reservatórios silváticos ou peridomésticos no ciclo de transmissão do parasita. “Este estudo está em desenvolvimento por uma aluna de doutoramento, Clara Lima. Neste contexto, grupo também investigou abordagens serológicas variadas que visam melhorar a deteção de animais assintomáticos e também a criação de um painel serológico que permite a distinção entre animais infetados/vacinados”, explica a docente Anabela Cordeiro da Silva que aproveita para deixar um alerta. “As nossas necessidades de material biológico para investigação são permanentes e dependemos de colaborações ativas com os CAMV. Agradecemos e estamos disponíveis para eventuais colaborações através do e-mail: clara.lima@ibmc.up.pt“, conclui.

 

Leishmaniose humana

A nível nacional, o trabalho mais recente citado por Carla Maia, diplomada pelo Colégio Europeu de Parasitologia Veterinária e investigadora auxiliar na Unidade de Parasitologia Médica, Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa (IHMT-UNL) é a investigação realizada por Serrada, em 2010, onde foram identificados 375 doentes internados por leishmaniose visceral nos hospitais do continente num intervalo de dez anos (entre 1999-2009).” A aparente subnotificação dos casos de leishmaniose visceral referida no estudo (no mesmo período de tempo foram notificados 145 casos no sistema das doenças de declaração obrigatória), vai de encontro ao descrito na maioria dos países endémicos da região do Mediterrâneo (Alvar et al. 2012).”

A evolução benigna das lesões e o facto de esta não ser uma doença de declaração obrigatória faz com que a leishmaniose cutânea seja considerada uma doença rara em Portugal, o que explica a falta de conhecimento de casos por parte de alguns profissionais de CAMV’s. “Contudo, nos últimos anos têm sido reportados alguns casos na literatura e o grupo das leishmanioses do IHMT diagnosticou 23 casos entre 2001-2015. Tendo em conta que os casos de leishmaniose cutânea são causados pelo mesmo parasita responsável por causar leishmaniose visceral nos humanos e leishmaniose nos cães, i.e.lLeishmania infantum, seria importante do ponto de vista epidemiológico e de controlo desta zoonose que a notificação dos casos clínicos de leishmaniose cutânea também fosse obrigatória”, sugere a investigadora.

A forma mais frequente de leishmaniose humana em Portugal é a leishmaniose visceral, sendo habitualmente tratada em serviços de doenças infeciosas ou de pediatria, consoante a idade do doente, esclarece Rafael Rocha, doutorando em Medicina Tropical no IHMT-UNL e interno da especialidade de doenças infeciosas no Hospital de São João, no Porto. “Não obstante, alguns hospitais não possuem serviço de doenças infeciosas, ficando a leishmaniose visceral a cargo da medicina Interna.” O acompanhamento de casos de leishmaniose humana implica a colaboração de uma equipa multidisciplinar, incluindo médicos da especialidade de doenças infeciosas e nefrologia. Quanto à leishmaniose cutânea, muito menos frequente em Portugal, necessita do acompanhamento da área de dermatologia.

Na natureza o ciclo de vida do parasita L. infantum é mantido entre o inseto vetor, o flebótomo, e os hospedeiros vertebrados, os canídeos, sendo o ser humano considerado um hospedeiro acidental. Como tal, o número de cães infetados e com leishmaniose é superior aos casos de leishmaniose humana, e as medidas profiláticas e de controlo são maioritariamente dirigidas aos cães, razões pelas quais, a população em geral associa a leishmaniose a um problema de saúde animal e não a um problema de saúde pública”, salienta Carla Maia. A população em geral está assim muito mais sensibilizada para a leishmaniose animal. “Isto poderá ser consequência, por um lado, do facto de esta ser recorrentemente publicitada pelos media (em anúncios de coleiras repelentes, por exemplo), enquanto o mediatismo da leishmaniose humana é residual (por existirem poucos casos anualmente e devido à diminuição de alguns grupos de risco ‘clássicos’, como pessoas imunossuprimidas por infeção VIH)”, salienta Rafael Rocha.

“O número de cães infetados e com leishmaniose é superior aos casos de leishmaniose humana, e as medidas profiláticas e de controlo são maioritariamente dirigidas aos cães, razões pelas quais, a população em geral associa a leishmaniose a um problema de saúde animal e não a um problema de saúde pública” – Carla Maia, IHMT

Nuno Santos desconhece os números da leishmaniose humana em Portugal, mas realça que é preciso perceber que os cães constituem “os grandes reservatórios do problema” e que é preciso entender que o controlo da doença nestes “conduzirá sempre à diminuição do número nos outros.” João Paulo Costa por seu turno, recorda um caso muito grave de infeção humana, em Ribeira de Pena, concelho limítrofe de Boticas. “Entre 2014 e 2019, foram diagnosticados 10 casos na ARS Norte. Ainda não há uma cultura muito esclarecida, vasta e bem divulgada sobre esta enfermidade na nossa região” destaca. Ainda assim, nas consultas de rotina, é feito um alerta e são esclarecidas as dúvidas que os tutores tenham, sobretudo os que residem em zonas endémicas. Denota que as pessoas não consideram esta infeção uma possibilidade provável até porque os casos, apesar de tudo, são raros. “Creio que consideram essa possibilidade quase inexistente e esse é um erro tremendo.”

Prevenir é a melhor arma

Na Trás-os-Vet, a aposta na prevenção é privilegiada e é essa a perspetiva que a equipa pretende passar aos clientes. “As campanhas de divulgação das diversas empresas que vendem antiparasitários e repelentes do mosquito também têm dado uma ajuda. Muitas vezes, os tutores referem que não conhecem com clareza a patogenia da leishmaniose, mas recordam-se dos anúncios na televisão e rádio e sabem que a doença pode afetar os canídeos e as pessoas”, salienta o diretor clínico da Trás-os-Vet.

Para além da organização dos simpósios de saúde pública que também são abertos à população, o também médico veterinário municipal organiza sessões de esclarecimento nas juntas de freguesia das áreas mais afetadas, nas quais ensina as boas práticas da prevenção da leishmaniose animal (desparasitação, vacinação e maneio dos animais positivos e suscetíveis) e humana. Despertar a atenção e dirigir o foco para a prevenção é o objetivo do médico. “Esta grave enfermidade é, em alguns casos, de controlo difícil, dispendioso e agressivo, existindo ainda a possibilidade da sua recorrência. Esperemos que rapidamente estejam disponíveis opções terapêuticas que promovam uma cura efetiva, de reduzida toxicidade e de custo mais acessível, como tem vindo a ser noticiado”, defende João Paulo Costa.

“Esperemos que rapidamente estejam disponíveis opções terapêuticas que promovam uma cura efetiva, de reduzida toxicidade e de custo mais acessível, como tem vindo a ser noticiado”João Paulo Costa, Trás-os-Vet

Também Nuno Santos tem verificado resultados positivos relacionados com a prevenção. “Os nossos clientes são sensibilizados para a doença e para todas as suas vertentes e possibilidades. Fazemos questão de ter um trimestre dedicado à vacinação e de sensibilizar todos para a existência das várias formas de proteção. O trimestre de sensibilização tem uma exposição forte nas nossas redes sociais, com posts, vídeos e diretos no Facebook”, explica.

“Fazemos questão de ter um trimestre dedicado à vacinação e de sensibilizar todos para a existência das várias formas de proteção”Nuno Santos, Centro Veterinário de Alverca

Postura semelhante tem Cláudia Correia e a sua equipa e o aconselhamento relativamente à forma como se pode prevenir de leishmaniose faz parte das primeiras visitas à clínica, acompanhando o processo que é dado ao cliente relativamente à vacinação, à desparasitação e à alimentação. “Tentamos ter sempre posters e folhetos explicativos da doença e da sua prevenção.”. Após diagnosticar um cão com leishmaniose, tem a preocupação de explicar toda a envolvência da doença, desde as várias possibilidades de hospedeiros da importância de tratar os animais infetados e de continuar a usar os inseticidas (coleiras/spot on) e de ter algum controlo da exposição ambiental do animal de modo a reduzir fortemente a transmissão da doença, mas também de novas infeções do animal positivo.

Na Vilavet, promove-se o uso de repelentes durante todo o ano, através de coleiras e pipetas. “Recomendamos também a vacinação, numa estratégica adequada ao estilo de vida do animal”, explica Ivo Lima da Silva.

A abordagem one health

É um tema que tem vindo a ser consequentemente abordado na nossa revista, em congressos, em webinars e eventos do setor. A abordagem one health traz vantagens e, desde há muito que existem esforços no sentido de aproximar a medicina humana da veterinária. “No caso da leishmaniose, a identificação de animais em risco, o diagnóstico e tratamento precoce da doença e a sua notificação sistemática podem ter um papel importante na interrupção do ciclo de vida do parasita e na prevenção de casos em humanos a nível local”, salienta Rafael Rocha.

Por outro lado, a comunicação mais próxima entre profissionais pode permitir que a identificação de surtos em animais alerte para o risco das populações humanas próximas, e vice-versa. Tal exige um investimento acrescido na vigilância ambiental e animal. “Noutro aspeto, a nível clínico, a discussão de casos em conjunto pode trazer contributos em termos de conhecimento ou de pensamento clínico que podem ser valiosos na abordagem dos doentes.”

A integração da perspetiva one health no trabalho desenvolvido pelo Grupo de Doenças Parasitárias no i3S consubstancia-se na investigação nos eixos essenciais para essa realidade: desenvolvimento de novas abordagens terapêuticas, novas vacinas, melhorar os métodos de diagnóstico e também estudos epidemiológicos no contexto da leishmaniose. “Concretamente, o grupo está associado ao desenvolvimento de fármacos altamente promissores que podem ser alternativas terapêuticas às opções atualmente existentes. Uma destas moléculas está neste momento a ser considerada para ensaios clínicos”, revela Anabela Cordeiro da Silva. E, confirma, “estes fármacos podem ter um impacto imediato numa perspetiva one health aumentando o portfólio de moléculas ativas contribuindo para a utilização diferencial de fármacos para tratar da infeção em cão e em humanos. Além disso, o grupo está também associado ao desenvolvimento pré-clínico de abordagens vacinais, usando parasitas atenuados e também formulações vacinais no contexto de um projeto FP7”.

“O grupo está associado ao desenvolvimento de fármacos altamente promissores que podem ser alternativas terapêuticas às opções atualmente existentes. Uma destas moléculas está neste momento a ser considerada para ensaios clínicos” – Anabela Cordeiro da Silva, i3s – Universidade do Porto

João Paulo Costa tem desenvolvido várias iniciativas de sensibilização da população, mas lamenta “não sentir grande vontade política e dos órgãos decisores de cúpula, a este conceito e perspetiva tridimensional (saúde humana, saúde animal e saúde ambiental) de abordagem das enfermidades e da saúde pública, pese embora a estratégia comunitária para a saúde assim o recomende e defenda. Basta vermos o recente exemplo da pandemia de Covid-19, cuja estratégia nacional de combate deixa muito a desejar nesta abordagem, contrariamente a outros países, nomeadamente da nossa vizinha Espanha”.

A realidade espanhola

Existem dados de incidência de leishmaniose visceral em Espanha, que podem ser comparados com os dados portugueses, revela Rafael Rocha, do IHMT, que passamos a descrever. “Em Espanha, foram reportados 180-210 casos humanos por ano, no período de 2003-2007, sendo as regiões mais afetadas a Andaluzia e a Catalunha. Em 2009-2012 houve um surto em Madrid, considerado o maior já registado na Europa, com cerca de 450 casos nesse período.” Contrariamente ao que sucede em Portugal, em Espanha existe um registo mais consistente dos casos de leishmaniose cutânea e, em 2014, foram reportados 100 casos, explica o doutorando. Quanto à prevalência de leishmaniose assintomática, apenas é conhecida a situação em Espanha (através de estudos regionais em Andaluzia, Madrid, etc.).

A situação em Portugal está agora a ser alvo de estudos, não só de índole regional, mas também nacional, como é o caso de uma investigação de doutoramento que está a ser realizada no IHMT, explica o doutorando. Relativamente à leishmaniose animal, os casos de doença não são sistematicamente notificados, pelo que, tanto em Portugal como em Espanha, é difícil estimar a incidência da doença. “A carga da doença tem sido avaliada, maioritariamente, através de estudos que pesquisam evidência de infeção prévia ou assintomática em animais, sobretudo cães e gatos. Um estudo deste género, a nível nacional, foi realizado por investigadores do IHMT, mostrando uma prevalência global em Portugal continental em cães de cerca de 6%, mas com grande variabilidade entre distritos, sendo o mais afetado o de Castelo Branco. Em Espanha, um estudo semelhante mostrou uma prevalência global em cães de cerca de 10%, mas alcançando 25-30% em algumas partes da Andaluzia”, salienta.

A farmacêutica Letipharma realizou o webinar sobre “as apresentações clínicas da leishmaniose animal e humana” no passado dia 15 de abril com a participação de três médicos. Natàlia Fernández, médica do Serviço de Dermatologia do Hospital Parc Taulí, em Barcelona, começou por afirmar que “a leishmaniose em geral e a cutânea afetam mais as crianças a partir dos cinco anos de idade” e que está descrito que os pacientes imunodeprimidos apresentam maior tendência de desenvolver até formas pouco habituais da doença (e mais disseminadas). “O paciente apresenta uma pápula no lugar da inoculação, podendo evoluir para placa e/ou nódulo e, depois, a úlcera, sobretudo na face.”

Natàlia apresentou casos clínicos onde o diagnóstico foi realizado por visualização direta no microscópio (citologia ou biópsia) após visualização clínica. “Posteriormente, recomendam-se técnicas moleculares (PCR). A citologia recomenda-se em pacientes pediátricos para evitar a realização de uma biópsia que é um procedimento mais invasivo”, referiu. Depois do diagnóstico feito, é estabelecido um protocolo terapêutico e existem vários tratamentos à disposição, dependendo das lesões e do paciente. “Existem tratamentos sistémicos e/ou locais / tópicos. Seguimos sempre a melhor evidência científica e vamos adaptando consoante a evolução da infeção”, referiu a dermatologista.

Pau Bosch é médico do Serviço de Medicina Interna e Infeciologia de Vali d’Hebron, também em Barcelona, e abordou a leishmaniose visceral que é um dos tipos que afeta o ser humano. “Somos uma zona endémica e encontramos esta infeção em habitantes da Península Ibérica”, explicou. Os sintomas principais são a febre, a descida do número de plaquetas e a anemia. “Perante a história clínica, fazemos um diagnóstico diferencial, indireto ou diagnóstico direto (PCR ou biópsia ao baço, medula óssea e fígado).”

Existem vários tratamentos aprovados para o tratamento da leishmaniose visceral. “Há fármacos mais apropriados e, outros, que criam mais controvérsia. As formas mais agressivas obrigam a um tratamento sistémico”, salientou o médico que é apologista do trabalho conjunto entre médicos de medicina humana e de medicina veterinária.

Xavier Roura, veterinário do Serviço de Medicina Interna do Hospital Veterinário UAB (Universidade Autónoma de Barcelona) referiu que a leishmaniose é praticamente impossível de erradicar, mas que existem formas de tentar minimizar o impacto destas infeções e que a vacinação contra a leishmaniose é uma prevenção eficaz. Devido ao facto de a infeção ter apresentações muito diversas, considera que a sua deteção deveria ser sempre incluída no diagnóstico diferencial. “Recentemente destacamos sintomas cardíacos e problemas articulares e ósseos ligados à leishmaniose. Há que estar atento à sintomatologia não tão evidente que não está diretamente relacionada com a leishmaniose.” Os sinais clínicos e as alterações que são secundárias à leishmaniose podem ajudar a detetar esta doença que é conhecida pela sua complexidade.

No que respeita aos felinos, Xavier Roura afirmou que geralmente são assintomáticos. “Com os gatos, os sintomas dermatológicos também são os mais frequentes, tal como nos cães. No entanto, outros sintomas clínicos sem alterações dermatológicas também têm surgido e que levam os clínicos a incluírem-na no diagnóstico diferencial de leishmaniose. A ideia é melhorar cada vez mais o diagnóstico”, sublinhou.

Mês da leishmaniose

A Ecuphar tem investido na área da leishmaniose ao longo dos anos. “Além dos produtos que constam no portfólio e que continuam a ajudar a diagnosticar e a tratar a doença, durante o mês de maio, está a decorrer a campanha do programa de prevenção anual – Programa Leispro – de forma a alertar para a utilização do Leisguard em junho e outubro, meses de maior prevalência e atividade do mosquito flebótomo”, explica Raquel Mira, product manager & local regulatory and quality contact da Ecuphar Portugal.

Além da realização de um webinar no passado dia 5 de Maio com a participação do médico veterinário Xavier Roura, a farmacêutica lançou um novo website www.ecuphar.pt que integra uma área reservada “Ecuphar Academy”,  apenas para profissionais de saúde médico-veterinários, onde podem fazer o seu registo e aceder a conteúdos exclusivos e materiais de apoio sobre a leishmaniose que podem utilizar nos seus CAMV para sensibilizar os tutores para a prevenção e tratamento da doença.

*Artigo publicado originalmente na edição n.º 149 da revista VETERINÁRIA ATUAL, de maio de 2021.

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