A organização dos serviços públicos de controlo oficial é tema de relevo dadas as implicações que daí resultam nas áreas da Segurança Alimentar, da Sanidade Animal e Vegetal e, não menos importante, na área do cumprimento dos acordos internacionais a que nos obrigamos perante a União Europeia (UE) e os Países Terceiros. O controlo oficial e a fiscalização, complementares, têm também relevância na sã concorrência entre empresas, por determinarem o cumprimento das suas obrigações. A rede legislativa europeia é densa, sendo ainda necessário acrescentar aquelas obrigações decorrentes de negociações individuais com países terceiros, com quem não haja negociações mediadas pela UE, conduzidas produto a produto, ou grupos de produtos. São dezenas de países e mais ainda de acordos duais.
As entradas nas fronteiras da UE são ali controladas mediante documentação que acompanha os produtos e recolha aleatória de amostras, mas em base estatística, alicerçada em avaliação de risco para todos os produtos destinados à alimentação humana e animal. Recorde-se que tudo o que entra nas nossas fronteiras entra nas fronteiras europeias, o que justifica a atenção e fiscalização por parte dos parceiros da UE. Esta incide sobre a produção, a transformação e sobre os controlos oficiais, assim como muitos países terceiros auditam estes mesmos elos da cadeia e os seus resultados.
A DGAV e os seus stakeholders estão na primeira linha do controlo da produção animal e vegetal, mas as responsabilidades estendem-se muito mais além, às DRAP, no que diz respeito aos produtos vegetais, assim como à ASAE e ao INIAV, no que diz respeito à fiscalização e ao processamento laboratorial de amostras recolhidas em todas as fases da cadeia. Outras entidades, como laboratórios privados e Médicos Veterinários Municipais, estão envolvidos no controlo oficial, estando estes últimos na dependência da DGAV, nos aspectos técnicos, mas sob a dependência hierárquica das Câmaras Municipais. Esta dupla tutela gera frequentemente dificuldades de gestão.
Faria aqui duas referências especiais à Inspeção Sanitária, dada a sua importância e dimensão, em termos físicos, e ao controlo de contaminantes químicos e de doenças em produtos vegetais e animais. Em suma, o conjunto de todos estes organismos constitui o controlo oficial sob legislação nacional, em boa parte emanada da UE. Cumprem os objectivos da sanidade animal e vegetal, da segurança dos alimentos e da concorrência entre empresas e países.
Esta rápida introdução, necessariamente incompleta, justifica-se pela complexidade de tarefas e objectivos a cumprir. Os serviços públicos devem estar organizados de forma a dominar os desideratos enunciados de forma eficaz e célere. Devem ser dotados de pessoal especializado, meios materiais e financeiros adequados e sobretudo de uma organização que permita potenciar os meios disponibilizados. Se as pessoas são determinantes, sem a organização adequada os resultados não serão os pretendidos.
A verticalização da Direção Geral de Veterinária (DGV), mais tarde investida dos poderes de autoridade sanitária vegetal (DGAV) foi o culminar de um longo processo em que a DGV se organizou (verticalização) integrando as antigas Direções de Serviços Veterinários das Direções Regionais de Agricultura. Foi um enorme passo em frente, reconhecido pela esmagadora maioria dos profissionais das áreas em causa, visto que as políticas e planos de ação passaram a estar sob uma cadeia de comando directa, sem as entropias geradas pela anterior necessidade de as articular e fazer aprovar por entidades, e até tutelas, de interesses não coincidentes, frequentemente divergentes.
De forma rápida e direta diria que as dezenas de planos de controlo da DGV, destinados às suas diferentes atribuições, teria de contar com a boa vontade de cinco Direções Regionais de Agricultura, para que os seus funcionários executassem as tarefas nos dias e horas necessários. Sabemos ainda que Governos diferentes colocam frequentemente a DGAV e as DRAP em Secretarias de Estado diferentes, dificultando ainda mais a articulação entre ambas. Tratava-se de lidar com cinco DRAP’s (chegaram a ser 9) e seis culturas organizacionais não necessariamente coincidentes. No que respeita aos produtos de origem vegetal ainda hoje é isto mesmo que se passa e as dificuldades operacionais são muito grandes por parte de todas as instituições.
A intenção do Governo atual de passar as funções de segurança alimentar e sanidade animal para os Municípios, passando os Inspetores Sanitários para os seus quadros, e sabe-se lá que outros funcionários das DRAP’s e DGAV para as mesmas Instituições, conduzirá inevitavelmente a uma pulverização dos centros operacionais (estamos a falar de 308 municípios ou 50-60 comunidades intermunicipais) com a consequente avalanche de dificuldades na sua gestão e operacionalidade e uma maior dificuldade de harmonização de critérios e procedimentos de controlo. Em boa verdade desconhece-se totalmente a intenção do governo, ou mesmo se há um plano pensado e detalhado, que lide com as vastas consequências derivadas da mudança de tutela. Anunciam-se intenções, deixando-nos o encargo de adivinhar caminhos e recear as consequências.
Os serviços veterinários espanhóis estão confiados às autonomias sendo que estas se encontram organizadas por autonomia, embora hierarquizadas ao poder central. Como exemplo, temos regiões onde a prevalência de tuberculose bovina ronda os 0,5% e outras limítrofes onde atinge os 12%. Serão estas as vantagens de perder a verticalização?
Continuando a tentar descortinar a intenção do legislador, não parece viável que seja o poder autárquico a decidir das políticas de sanidade animal ou segurança alimentar e muito menos da produção legislativa, temas complexos que só podem ser conduzidos ao nível de uma Direcção Geral. Assim sendo, certamente que seria a DGAV a definir as políticas e a ter de contar com a execução operacional das mesmas por parte dos municípios. Dos 308 municípios, mesmo que das suas associações! Estamos em crer que a dinâmica despendida com estas atribuições será forçosamente diferente de autarquia para autarquia, segundo a formação, qualificação e ponto de vista do elemento decisor em cada uma delas, com o evidente prejuízo para a unidade do conjunto.
Não podemos perder a perspetiva que a sanidade animal implica controlo apertado do trânsito animal e a segurança alimentar necessita de informação constante de dados da sanidade animal. Multiplicar por 10 ou 50 os actores deste processo (de 5 direções de serviços da DGAV para 308 municípios ou 50 Comunidades intermunicipais, CIM) é ideia inconcebível que só pode entender-se num quadro de desconhecimento da realidade e ignorância profunda. Segurança alimentar e sanidade animal não são ilhas isoláveis entre CIM’s, como outras atividades, são um todo indissociável. Trata-se mais provavelmente de uma medida de poupança fictícia de recursos no MAFDR para os transladar para outro Ministério, certamente com perdas de eficiência, eficácia e de harmonização gravíssimas.
Ocorrem-nos assim diversas perguntas, a que deveria ser dada resposta antes da decisão de passar essas competências para outro Ministério. As auditorias da UE aos serviços de controlo oficial, muito frequentes como sabemos, passarão a fazer-se município a município/CIM? A indispensável harmonização de procedimentos entre as diversas regiões do país será assegurada? Com a consequente necessidade de permitir a concorrência entre empresas? Os certificados de exportação passarão a ser emitidos por 50 CIM? O acesso às bases de dados centrais será feito a partir de 308 municípios, ou 50 CIM? Auditorias às empresas, fiscalizações e outras ações correntes serão coordenadas entre 308 municípios ou 50 CIM? A estrutura da ASAE será também pulverizada por 50 CIM? E os meios humanos das DRAP também serão transferidos para as autarquias/CIM, assim como as competências em sanidade vegetal e segurança alimentar dos produtos de origem animal? As autarquias irão criar estruturas de gestão para estas competências? Que irá suceder ao número de chefias? Será viável pensar que 50 CIM poderão coordenar-se de forma eficiente salvaguardando a sanidade animal, vegetal e a segurança alimentar? Será que têm tradição de trabalho diário em conjunto, como aqui é indispensável? Quem nos esclarece de tudo isto? O que está pensado? Será que cada município ou cada freguesia terá de partilhar a totalidade das funções do Estado, como uma cidadela-estado?
Deixaremos estas questões que certamente terão de ser respondidas, antes de decidir por esta descentralização disparatada, que representa muito mais que um retrocesso de 10 anos, para antes da verticalização. Esta alteração não encontra qualquer base técnica que a justifique, denota uma total ausência de conhecimento da realidade e arroga-se a impor mudanças de caráter meramente político, que poderão vir a pagar-se muito caro nos domínios da sanidade animal, vegetal e segurança alimentar, todas comprometidas. As consequências previsíveis deverão ser imputadas aos responsáveis directos destas decisões.