O “Fumeiro de Vinhais” é uma «realidade ancestral», caracteriza o médico veterinário municipal, Duarte Lopes, explicando que «os produtores tradicionais que efectuam vendas na Feira do Fumeiro, que se realiza todos os anos no segundo fim-de-semana de Fevereiro, têm uma autorização temporária de laboração que decorre de Dezembro a Fevereiro, estando a tarefa do controlo higio-sanitário das instalações e dos produtos a cargo do médico veterinário municipal».
Duarte Lopes admite que os produtos alimentares de fabrico artesanal são uma área «muito vasta de actuação», onde a intervenção do médico veterinário municipal «pode ser ainda potenciada», já que «podemos actuar junto das associações de produtores na área formativa dos operadores e na preservação e recuperação de receitas tradicionais».
Uma opinião partilhada pela secretária-geral da Qualifica, que reitera que «os médicos veterinários municipais poderiam ter um papel importante junto dos pequenos produtores, designadamente em sede de apoio técnico e esclarecimento sobre questões legais na área da salubridade, higiene e segurança alimentar e qualidade em geral».
A Qualifica é a Associação Nacional de Municípios e de Produtores para a Valorização e Qualificação dos Produtos Tradicionais Portugueses e visa «exactamente a valorizar, qualificar, promover e defender os produtores, os produtos e as empresas que produzem, preparam e comercializam produtos tradicionais», salienta Ana Soeiro.
Necessidade de preservação
A engenheira defende que Portugal «possui um enorme capital em produtos agrícolas e agro-alimentares cujas características qualitativas decorrem do “saber fazer” dos produtores, baseado em hábitos locais, leais e constantes, aos quais por vezes se aliam os modos de produção tradicionais e as especificidades decorrentes da sua origem geográfica».
E apesar deste capital patrimonial e cultural «ter sido e continua a ser muito focado no discurso dos agentes decisores, na prática assiste-se a uma diminuição, quando não mesmo ao abandono da actividade produtiva», defende Ana Soeiro, acrescentando que «também não são alheias a esta situação quer a leitura rígida e incompleta dos normativos comunitários em matéria de higiene e segurança alimentar quer, o normativo nacional sobre o licenciamento das diversas actividades, sobretudo quando aplicados às pequenas e médias empresas de produção, transformação, preparação e venda dos produtos e da gastronomia tradicionais».
Ora, estas situações trazem repercussões, sendo que a responsável fala mesmo de «perdas irreparáveis ao nível da biodiversidade, da paisagem, da ocupação viva do território, do património e da cultura e tradição».
Não obstante, não se pode ainda descurar a parte económica e social, visto que «há prejuízos enormes, decorrentes do encerramento de pequenos negócios e explorações, da perda de postos de trabalho, da ocorrência de catástrofes naturais evitáveis, da desertificação do território, do abandono de zonas rurais ou da introdução de largas manchas de culturas exógenas e monótonas».
Para inverter esta tendência de decréscimo abissal de actividades e produções tradicionais e genuínas, «as autarquias têm um papel decisivo, sobretudo se aliarem esforços entre si e com os produtores/transformadores/comerciantes interessados, fazendo, como sempre, o papel de motor de desenvolvimento e de agente cultural de mudança».
Um outro exemplo prático é a Feira Gastronómica do Porco, o «mais importante» evento gastronómico do município de Boticas. Neste certame, «o trabalho inicia-se pela marcação dos porcos no inicio de cada ano», revela o médico veterinário municipal de Boticas.
A formação dos produtores «é considerada essencial, pelo que têm sido desenvolvidas diversas acções em matérias como a sanidade animal ou métodos produtivos, etc. E após o controlo da produção do fumeiro, o ciclo termina no rigoroso controlo de qualidade na entrada da feira», ou seja, cada etapa é «coordenada tecnicamente pelo médico veterinário municipal», sublinha João Paulo Costa.
O médico veterinário municipal sendo «profundo conhecedor do sector alimentar do seu concelho, em especial dos produtos tradicionais, conhece toda a fileira produtiva, do prado até ao prato», continua o médico veterinário, explanando que «desde a tipificação e caracterização dos produtos tradicionais do seu concelho até à elaboração dos cadernos de especificações dos produtos candidatos a protecção nacional e comunitária (DOP – Denominação de Origem Protegida e IGP – Indicação Geográfica Protegida) o médico veterinário municipal pode ter um importante papel a desempenhar».
Legislação desajustada
A actividade de fabrico artesanal de produtos alimentares tem sofrido nos últimos anos algumas alterações no que respeita ao seu enquadramento legal. João Paulo Costa salienta «o Decreto-Lei n.º 57/99, de 1 de Março, que regulamenta a actividade produtiva em unidades de vendas directas e que proporcionou o fabrico artesanal de produtos tradicionais em condições higio-sanitárias adequadas e ajustadas aos actuais conceitos de segurança alimentar». Resumidamente, «nestas unidades é permitida a laboração de 3 mil quilos de matéria-prima por ano, por um máximo de três trabalhadores, sendo a venda destes produtos autorizada apenas directamente ao consumidor final no próprio estabelecimento, ou num raio de 40 km».
Os critérios de higiene e segurança alimentar preconizados para a produção industrial de géneros alimentícios «são simplificados ao abrigo do Regulamento (CE) n.º 2074, de 5 de Dezembro de 2005, que refere no seu artigo 7.º que os Estados-Membros podem conceder aos estabelecimentos que fabricam alimentos com características tradicionais derrogações individuais ou gerais aos requisitos estabelecidos no Regulamento (CE) n.º 852, de 29 de Abril de 2004».
Mais recentemente, as circulares do Gabinete de Planeamento e Políticas (GPP) n.º 5 e n.º 6 vieram tentar dar corpo, nos termos do artigo 6.º e do Capítulo III do Anexo II do Regulamento (CE) n.º 852, de 29 de Abril de 2004, «ao registo hígio-sanitário de instalações amovíveis, temporárias ou usadas essencialmente como habitação privada, onde são preparadas pequenas quantidades de géneros alimentícios para a venda ao consumidor final».
Não obstante, para o médico veterinário, «estas circulares, embora proporcionem o registo das unidades acima referidas, exigem a implementação de um sistema de HACCP, que em nosso entender é perfeitamente desajustado à sua dimensão, subvertendo e condicionando a sua implementação».
No entanto, esta situação é meramente transitória devido à entrada em vigor «do novo Regime de Exercício da Actividade Industrial, que classifica estas unidades no Tipo 3, no regime de Actividade Produtiva Local, as quais devem obedecer, para o devido registo, aos requisitos enunciados na sua Secção 3 do Anexo IV, ou seja, mais uma vez a uma infindável lista de documentos, muitos dos quais desajustados da actividade em apreço e verdadeiramente impeditivos da sua exequibilidade».
O excesso burocrático
Ana Soeiro frisa que «é fácil perceber o desânimo e a confusão dos pequenos produtores, cada vez mais atónitos com a complicação, mais esmagados por exigências desapropriadas e mais vítimas da concorrência por parte de empresas de outros Estados-membros não sujeitas a estas complicações e a estes excessos de zelo e de regulamentação».
A engenheira ilustra a situação. A legislação que permite «o uso do qualificativo artesanal (Decreto-Lei nº 110/2002) é complexa e desadaptada e, portanto, pouco eficaz e desinteressante. Já os diplomas referentes ao licenciamento de unidades produtivas (Decreto-Lei nº 209/2008) é de tal forma exigente, burocrática e desajustada que vai contribuir para o desaparecimento célere da maioria das pequenas unidades, com a inerente perda de postos de trabalho, desertificação do território e perda dos valores culturais subjacentes a estas pequenas produções», diz, acrescentando que «a legislação relativa à concessão de derrogações para os pequenos produtores e para as empresas localizadas em regiões especiais (Despacho Normativo n.º 38/2008) é muito complexa, tecnicamente pouco correcta e exige informação por parte dos produtores que não é exigida pela regulamentação comunitária». Concluindo, «é, portanto, um instrumento ineficaz, caro e não utilizável pelos pequenos produtores de produtos tradicionais».
O dia-a-dia do produtor
As pessoas que se dedicam à produção de produtos tradicionais «não compreendem as exigências legais que dia após dia aumentam, não são capazes de implementar o sistema HACCP que, aliás, não lhes é exigido pela legislação comunitária e não são capazes de lidar com as exigências terríveis que lhes são impostas pelas grandes cadeias comerciais, quer em matéria económica quer no “apagamento”/alteração das suas marcas e qualificativos, fazendo-os perder o reconhecimento dos consumidores». E, por outro lado, «temem ainda a actuação – por vezes imoderada e tecnicamente pouco correcta – das entidades fiscalizadoras».
Mais uma vez, o médico veterinário municipal pode desempenhar um papel importante junto dos produtores, uma vez que «eles olham sempre para nós como aliados na defesa da nossa ruralidade e da nossa autenticidade gastronómica», menciona Duarte Lopes. Este crédito «de que ainda dispomos juntos dos produtores, resulta muito do facto de continuarmos a ser praticamente os únicos agentes técnicos do estado que fazemos extensão rural».