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O reverso de trabalhar no outro Algarve

O reverso de trabalhar no outro Algarve

Maria Calaça está de bem com a vida. Proprietária da Centralvet, única clínica veterinária de Silves, está a tentar lutar contra a falta de meios financeiros de grande parte dos donos de animais desta zona “esquecida” e rural do Algarve. Afirmando praticar preços que congelaram nas calendas gregas tem, ainda assim, muito amor pelos animais. Que o digam Boris e Angie, dois cães que foram tratados principescamente.         

Boris entra na clínica visivelmente afectado. A tremer e escondido entre os próprios tufos de pêlo, o pequeno Yorkshire está com o chamado pânico da bata branca. «Anda cá, meu querido, não tenhas medo que hoje não vou dar-te nenhuma pica», acalma Maria do Rosário Calaça, veterinária e proprietária da Clínica Veterinária Centralvet, em Silves, Algarve. Passados largos minutos, e a muito custo, Boris tranquiliza-se com a visita ao médico. Desta já estava safo. Veio apenas para pôr o pêlo a brilhar, isto é, ser entregue às mãos de verdadeiros profissionais para adequada higienização. Inês Tomás, veterinária, afaga-lhe a cabeça e tenta consolá-lo com palavras meigas e muito carinho.

Angie, uma cadela buldogue inglesa que foi abandonada num armazém, “estica” as orelhas, pondo-se em posição de alerta, para averiguar o que se passa. Foi entregue na clínica de Silves para evitar o seu abate. Entrou maltratada, desnutrida, com sarna. «É uma pena… Abandonarem um animal destes é um crime! É tão simpática que cativa toda a gente que aqui vem», lamenta Maria, enquanto tenta mostrar a boa-disposição da nova mascote da Centralvet.
Maria do Rosário Calaça, 42 anos e natural de Faro, desenvolta e sem grandes salamaleques, soube aproveitar as circunstâncias da vida. As instalações onde está agora implementada a sua clínica já foram ocupadas por um consultório médico, pertença de seu pai – «um médico de clínica geral à antiga, que fazia de tudo: era dentista, médico especialista, etc.» – e posteriormente por uma ervanária. Como nos conta, a médica veterinária algarvia nasceu com o gosto pela medicina na massa do sangue. «Sempre gostei muito de animais. Gostava de tratar os meus animais de companhia. O facto de o meu pai ser médico deve ter ajudado…».

 

Certo é que volvida a infância e adolescência, a paixão por “curar coisas” permaneceu e ditou o rumo a seguir. «Estudei em Lisboa e por lá fiquei durante alguns anos. Mas, depois, a minha vida mudou. Divorciei-me e quis regressar às minhas origens algarvias. Aproveitei o facto de o meu ser proprietário deste espaço para fazer dele a minha clínica veterinária, porque não existia nenhuma em Silves».

Interior algarvio

 

A vida é feita de pequenos passos rumo ao incerto. A caminhada profissional de Maria Calaça por terras algarvias tem obedecido a um certo bom senso, uma vez que os tempos actuais não permitem sonhos megalómanos, nem tão-pouco passos maiores do que a perna. «Tenho vindo a investir consoante as minhas possibilidades. Ainda me faltam coisas, nomeadamente alguns meios de diagnóstico, mas temos de ir devagar. Por exemplo, o próximo investimento vai direitinho para o aparelho de raio X, que é bastante dispendioso».

Aparentemente, a bela cidade de Silves – que já foi capital do Algarve – parece-se com uma fidalga arruinada. Conserva a riqueza patrimonial (passado mourisco, castelo, ponte romana, etc.), mas não oferece condições de futuro aos jovens e aqueles que se queiram fixar na zona. Empregos? «Só na costa, e cada vez menos». Em Silves, está-se no “outro” Algarve, no do interior, onde não há mar e, por consequência, a capacidade para atrair investimento diminui a olhos vistos. «Esta cidade parou no tempo. É cidade, mas é só por razões de passado histórico, porque não tem sido feito qualquer esforço de modernização», lamenta.

 

A população de Silves é composta pelos autóctones, mas também por estrangeiros (ingleses, alemães e holandeses que fugiram a sete pés dos Invernos rigorosos das suas terras) que se fixaram no local por razões “climáticas”, mas também porque o nível de vida em Silves é bem mais acessível do que, por exemplo, em Vilamoura ou outros locais premium do Algarve. «De facto, temos cá muitos estrangeiros a residir. Quer a viver permanentemente, quer de passagem (que trazem para aqui as suas auto-caravanas), mas não se pense que a vida é fácil. Com a subida do Euro face à Libra inglesa, os estrangeiros retraem-se mais. Perguntam quanto custa, acham caro, quando antigamente não era assim. Apesar de tudo, da crise, o cliente estrangeiro é diferente: a maior parte deles estão mais informados, gostam e sabe tudo aquilo que fazer ao animal e são muito mais receptivos às nossas recomendações».

Preços não sobem há anos 

 

A crise económica tem feito verdadeiros rombos nas finanças de quase toda a gente. Acresce ainda que tem tido um efeito psicológico de “retraimento”, de não pisar em rama verde na altura de desembolsar-se um tostão que seja. «Tenho a clínica há pouco tempo (cerca de 2 anos), não me posso queixar, mas noto que as pessoas se tornaram mais calculistas. Uma castração de um gato, por exemplo, há 7 ou 8 anos custava cerca de 50 euros. As pessoas pagavam e sem questionar. Agora dizem logo que arranjam mais barato (30 ou 40 euros). Eu cobro as consultas a 18 ou 20 euros. Os preços têm aumentado pouquíssimo. Somos obrigados a reduzir os orçamentos ao mínimo, a receitar os medicamentos mais baratos…».

Ainda assim, Maria Calaça gosta da gente e do sítio onde vive. De resto, confessa que o facto do seu actual marido ser natural de Silves, ajudou na hora de decidir ficar a viver naquela cidade. Contudo, como em qualquer meio pequeno, as mentalidades não serão tão abertas quanto Maria gostaria que fossem. «As mentalidades das pessoas de Silves ainda são um bocadinho… Tudo aquilo que vier, ou for de fora, é melhor do que o existe em Silves. Se for preciso, fazem vários quilómetros para comprar uma peça de roupa exactamente igual noutro local. Por outro lado, temos de saber lidar com as resistências aos procedimentos médicos de rotina, como é a vacinação anual, porque muitas pessoas acham que por terem os animais em casa já não necessitam de ser vacinados. É preciso saber lidar com este tipo de mentalidade portuguesa e de dificuldades».

Por agora, Maria Calaça não está arrependida da opção de se ter mudado de armas e bagagens para Silves, até porque a vida não tem sido tão madrasta assim. Todavia, a proprietária da Centralvet lamenta não ter uma situação económica mais desafogada. «Queria poder pagar mais um pouquinho à Dr.ª Inês, que é uma amiga, mas não dá para mais. De resto, os próximos investimentos vão direitinhos para novos meios de diagnóstico, porque somos a única clínica da zona – fazemos cirurgias – e somos obrigados a ter aqui o que de melhor existe no auxílio à prática clínica».

Ter recepcionista, por exemplo, é um “luxo” que não está ao alcance da Centralvet. Maria e Inês, patroa e empregada, vão revezando-se na tarefa de receber os clientes. Sempre que há a necessidade de fazer uma intervenção cirúrgica, fecham-se as portas até que uma das duas médicas possa voltar ao balcão de atendimento. Para Maria Calaça, são pequenas contingências que não atrapalham o bom desempenho do duo, mas que poderiam ser contornadas se houvesse mais clientes, com maior capacidade financeira. Mas não é por isso que na Centralvet os clientes vão deixar de ser recebidos com a imagem a marca da clínica algarvia: um enorme sorriso e carinho para dar e vender.

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