Apesar de ser uma patologia «sem qualquer risco para a saúde humana», segundo o responsável da Direcção-Geral de Veterinária (DGV), no respeitante à saúde animal o caso muda de figura, pois é uma «arbovirose não contagiosa, específica dos ruminantes», acrescenta Carlos Agrela Pinheiro. São três os vértices que, unidos entre si, formam um triângulo, cuja acção das suas partes constituintes se manifesta primordial no combate deste fenómeno: a DGV, os médicos veterinários e os produtores. Já o presidente da Sociedade Portuguesa de Ciências Veterinárias (SPCV), Carlos Godinho, afirmava, na edição de Abril da Veterinária Actual, que a «língua azul veio para ficar e constitui hoje um desafio à capacidade dos veterinários e decisores políticos. Esta doença a par da influenza aviária, constituem duas preocupações permanentes que não deixam descansados os responsáveis pela condução das políticas de saúde animal e os governantes, porquanto a sua progressão pode causar danos económicos irreparáveis na economia pecuária da Europa».
Agrela Pinheiro defende que «a actuação dos médicos veterinários é fundamental, não só no que se refere ao exame clínico dos animais, como no aconselhamento dos produtores na aplicação das medidas de profilaxia, nomeadamente a vacinação nos períodos determinados, e de acordo com as instruções emanadas dos serviços veterinários da DGV ao nível local, regional e central».
Quanto à DGV, como Autoridade Sanitária Nacional, «determina as medidas de luta de acordo com o estipulado na legislação comunitária, código do OIE, e Legislação Nacional aplicável». Compete ainda a esta autoridade, segundo o seu responsável, «a definição das estratégias no relativo às medidas profilácticas e de biossegurança a adoptar nas explorações e na movimentação de animais, que são divulgadas e tornadas públicas através de editais».
Na questão da língua azul os produtores também têm uma palavra a dizer, sendo, provavelmente, o elo desta cadeia de acção a sofrer o primeiro impacto causado pela doença. Uma das várias Organizações de Produtores Pecuários (OPP) do nosso país é a Associação de Criadores de Ovinos do Sul (ACOS). «Nos ovinos os prejuízos decorrem da mortalidade, da morbilidade e da infertilidade causadas pela doença, bem como das limitações legais do trânsito animal. Nos bovinos, como raramente há casos clínicos, os principais prejuízos resultam das referidas limitações ao trânsito animal», explana Miguel Madeira, médico veterinário da ACOS, para quem «estas limitações à movimentação animal têm sido determinantes nos preços do mercado de animais, uma vez que os especuladores aproveitaram imediatamente esta vulnerabilidade dos produtores para inflacionarem o valor».
Acção conjunta
Num cenário onde focos da doença podem estar eminentes, o médico veterinário municipal (MVM) poderá desempenhar um papel de relevo, pois «enquanto Autoridade Sanitária Veterinária concelhia e pólo de desenvolvimento local no apoio ao mundo rural, constitui-se como um elo importantíssimo na articulação com as OPP, nas quais a DGV delegou competências para a execução das campanhas de vacinação e controlo do trânsito animal, bem como na vulgarização e formação dos produtores relativamente à etiopatogenia da língua azul e às estratégias preconizadas para o seu diagnóstico, combate e profilaxia», revela João Paulo Costa, da Associação Nacional dos Médicos Veterinários dos Municípios (ANVETEM), que refere ainda «que são inúmeros os casos de MVM que colaboram activamente com as OPP da sua área geográfica de intervenção nas campanhas de vacinação, no controlo do trânsito animal e na formação dos produtores. Esta conduta interventiva, dinâmica e colaborante, além de se constituir como uma incumbência funcional inerente ao desempenho das actividades do MVM, tem provado ser uma estratégia ajustada, como é prova inequívoca o sucesso na luta contra diversas enfermidades, como são exemplo a raiva, a febre aftosa, a equinococose e, mais recentemente, a língua azul».
A utilização de vacinas «constitui-se como arma fundamental para o combate à doença», esclarece o director-geral de veterinária. E a indústria farmacêutica «tem investido no desenvolvimento de vacinas inactivadas contra os serótipos circulantes na União Europeia, que têm vindo a ser disponibilizadas no decurso deste ano».
Em Portugal, os programas implementados «assentam na estratégia de vacinação, cuja execução no terreno está a cargo dos Agrupamentos de Defesa Sanitária, sob a supervisão da DGV, nomeadamente as Direcções de Serviços Veterinários Regionais e a Direcção de Serviços de Saúde e Protecção Animal», sublinha o responsável da autoridade veterinária.
Com os serótipos do vírus que «até à data têm circulado no nosso território continental (o 1 e o 4), são os ovinos que apresentam mais sintomas clínicos, embora, esporadicamente, os bovinos também possam ser clinicamente afectados», informa o médico veterinário da ACOS, salientando que «na vizinha Espanha já circula o serótipo 8 que parece também manifestar-se clinicamente nos bovinos». Consciente do risco que esta situação afigura, Miguel Madeira destaca que «estamos apreensivos relativamente ao perigo eminente que representa esta realidade e seria de todo desejável vacinar “preventivamente”, ou seja, antes do serótipo 8 entrar no país». Não obstante, ressalva que «sabemos que há alterações legislativas em fase de aprovação a nível comunitário que nos permitirão enveredar por esta abordagem sanitária, que nos parece a mais correcta».
As vacinas contra os serótipos 1 e 4, «têm sido aplicadas de forma sistemática nos ovinos e de forma direccionada nos bovinos», menciona Agrela Pinheiro, sendo que «está praticamente erradicado o serótipo 4». Algo que atribui ao esforço de «quatro anos de campanhas de vacinação na zona atingida». No respeitante ao serótipo 1, este «está controlado na totalidade do território continental», afirma, indicando que «o Estado tem suportado integralmente o custo das vacinas, bem como a sua aplicação no âmbito do despacho nº 2949/2005».
Desde o início «da epizootia que o apoio do Estado, suportado integralmente pela Comunidade Europeia, consiste no financiamento da compra e da aplicação das vacinas contra a doença, bem como dos rastreios serológicos impostos para a movimentação animal», reitera Miguel Madeira. Para além disto, «durante o primeiro surto de língua azul causado pelo serótipo 1, no Verão e Outono de 2007, o Estado indemnizou os ovinicultores, pagando o valor de mercado pelos ovinos mortos na sequência da doença». Uma atitude «que consideramos uma boa medida», conclui. Mas se a ACOS, através do seu responsável veterinário, mostra o seu contentamento em relação à situação anterior, alerta, no entanto, para o facto de o Estado «não financiar rigorosamente nada dos enormes custos que os produtores têm com o controlo do insecto vector e com a emissão das Guias Sanitárias de Trânsito e dos Certificados de Desinsectização que obrigatoriamente têm de acompanhar os animais aquando de uma movimentação». E em termos futuros o panorama ainda parece mais desolador, uma vez que, «de acordo com informações que nos foram transmitidas recentemente pela DGV, os decisores de Bruxelas preparam-se para “reclassificar” a doença como enzoótica e, como tal, deixar de ser objecto de financiamento comunitário. Na nossa modesta opinião, parece-nos que esta “reclassificação” da patologia carece de fundamentação técnica e é motivada simplesmente por razões financeiras, o que é um péssimo princípio».
Outro dos problemas sentidos pelos produtores advém da acção da DGV no “campo de batalha”. Embora «a relação institucional e pessoal seja boa», como classifica o médico veterinário da ACOS, no terreno «apercebemo-nos da escassez de recursos humanos e materiais com que se deparam os departamentos descentralizados da DGV, o que dificulta a operacionalização em tempo oportuno de determinadas medidas sanitárias». Por outro lado, do ponto de vista financeiro, a relação «já não é tão boa, visto que, enquanto OPP, somos sistematicamente confrontados com atrasos significativos dos pagamentos que nos são devidos, realidade que é extensível a outras instituições da Administração Pública, como é o caso do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP). A título de exemplo, e à data de cinco de Dezembro, são-nos devidos pela DGV e pelo IFAP os pagamentos referentes às vacinações efectuadas contra o serótipo 4 e 1, respectivamente, desde o início do ano de 2008».
A culpa é do insecto
«A língua azul é uma doença cujo agente etiológico é um vírus da família Reoviridae do género Orbivirus que afecta essencialmente os ovinos», explica João Paulo Costa da ANVETEM, sendo caracterizada, continua, por «hipertermia, inflamação, ulceração, erosão e necrose da mucosa bucal, língua tumefacta e muitas vezes cianosada (língua azul), aborto, emagrecimento e perturbações locomotoras com claudicação provocadas por miosites, coronites e pododermatites». Por vezes, «provoca a morte dos animais afectados em oito a dez dias ou, mais frequentemente, resulta em cura lenta com perturbações no crescimento e perda de condição corporal» e pode infectar, «geralmente de forma inaparente, caprinos, bovinos, ruminantes selvagens e dromedários», informa o também MVM de Boticas.
De acordo com Agrela Pinheiro, é uma patologia «vectorial transmitida por um insecto do género Culicoides que tem várias espécies, sendo importantes fundamentalmente três, à luz do conhecimento actual: Culicoides imicola, C. pulicaris e o complexo C. obsoletus».
País azul
«A língua azul está a progredir na Europa de sul para norte com alguns serotipos, e a avançar de norte para sul com outros», salientava o responsável da SPCV na edição de Abril da nossa revista. Por cá, em Chaves, no início do mês de Novembro, de acordo com o que informava o Diário Digital, era detectado um foco do serótipo 1 numa exploração de 141 ovinos. Por causa desta detecção em Trás-os-Montes, «foi alargada a zona de restrição para o serótipo 1 a todo o território nacional continental, com o consequente condicionamento de movimentos no concelho e numa área geográfica que inclui o território nacional ainda não sujeito a restrições e que grosso modo representa toda a região Norte e parte da região Centro, com a determinação de um conjunto de medidas que vão desde observação clínica dos animais a transportar até à aplicação de insecticidas às instalações, equipamentos, animais e transportes», esclarece o director-geral de veterinária, acrescentando que «foi ainda determinada a obrigatoriedade de vacinação dos ovinos do território agora incluído em zona de restrição, bem como dos bovinos de produção com destino a engorda».
Na sequência do foco detectado em Chaves, «foram posteriormente confirmados mais nove pelo serótipo 1 nos concelhos de Arcos de Valdevez, Paredes de Coura, Ponte da Barca, Ponte de Lima e Viana do Castelo», informou o responsável, sendo que todo o país «está neste momento submetido a medidas de condicionamento que consistem no conjunto de procedimentos já referidos anteriormente».
Contudo, alerta, «durante o mês de Dezembro, como tem acontecido nos últimos anos, será possível aligeirar estas medidas de condicionamento, atendendo à sazonalidade do vector que não está activo durante os meses de Janeiro, Fevereiro e Março, de acordo com os dados históricos de que dispomos».
Nos últimos meses, «nesta região do Baixo Alentejo, não têm havido casos de língua azul confirmados laboratorialmente. Parece-nos que esta “acalmia” clínica da doença se deve à campanha de vacinação de ovinos contra a doença que foi levada a cabo em toda esta região em devido tempo», informa Miguel Madeira. No entanto, «temos conhecimento da ocorrência de focos no Alentejo Litoral e no Alto Alentejo durante o final do Verão e o início do Outono», declara, realçando o enorme esforço «que tem sido feito pelas OPP para conseguir concluir a vacinação antes da época de maior risco sanitário».
Segundo João Paulo Costa da ANVETEM, «a totalidade da área geográfica do território nacional está sujeita a restrições por serótipo 1, enquanto a área geográfica das Direcções de Serviços Veterinários da Região do Centro (apenas alguns concelhos), de Lisboa e Vale do Tejo (todos os concelhos), do Alentejo (todos os concelhos) e Algarve (todos os concelhos) estão sujeitas a restrições pelos serótipos 1 e 4».
Agir quando se detecta
No caso de aparecimento de focos de língua azul «deverá ser efectuada a declaração obrigatória nacional e europeia, bem como a implementação das medidas estratégicas de combate à doença consagradas no Decreto-Lei n.º 146/2002 de 21 de Maio e no Edital da DGV que, sumariamente, passam pela vacinação, delimitação de uma zona de protecção e de uma zona de vigilância, restrição/controlo do trânsito animal e desinsectização de animais e viaturas em trânsito», sublinha o MVM de Boticas.
Para Miguel Madeira da ACOS, «o significado de um foco dentro da zona sujeita a restrições, onde há circulação viral, não é o mesmo do de um que ocorra na zona livre». Daí que defenda que as medidas a tomar (legalmente definidas) são diferentes consoante a área onde aparece o foco. «Nesta região, que está englobada na zona sujeita a restrições, quando surge um foco da doença, a DGV impõe um sequestro de 60 dias à exploração em causa e notifica o produtor para reforçar as medidas de controlo do insecto vector, entre elas a desinsectização dos animais, equipamentos e instalações. Durante a vigência deste sequestro o produtor só pode vender animais para abate. Desta limitação resultam encargos importantes para os produtores, como por exemplo encargos durante estes 60 dias com a alimentação de animais que ainda não estão em condições de ser abatidos e que numa situação de livre trânsito seriam vendidos para Centros de Agrupamento ou para Explorações de recria e acabamento».