Depois de anos a melhorar o curriculum, a publicar artigos científicos e a fazer residências clínicas, longe da família e dos amigos para obter uma especialização veterinária, voltaram a Portugal para exercer a sua profissão num país que ainda não sabe bem quais são as suas competências. Conheça as histórias daqueles que foram e ficaram, e dos que voltaram, com esperança de poder investir num serviço médico-veterinário de excelência.
São na sua maioria médicos veterinários diplomados pelo Colégio Europeu. Contudo, em Portugal ainda não existem especialidades veterinárias uma vez que, segundo o regulamento da OMV, “não existe atualmente uma forma objetiva de verificar se os médicos veterinários possuem efetivamente as especialidades profissionais a que se arrogam”. A discussão tem sido longa e aqueles que rumaram a outros países para obterem uma especialidade veterinária através dos respetivos Colégios queixam-se, sobretudo, de falta de reconhecimento por parte dos colegas de profissão. Não entendem o trabalho por detrás da conquista de uma especialidade, dizem, mas já reconhecem que o diálogo e a partilha de experiências são importantes para o desenvolvimento de uma área que tem vindo a ganhar importância na sociedade portuguesa: a medicina veterinária.
Doroteia Bota, médica veterinária de 33 anos, com residência em Medicina Interna, fez internato e residência no Centre Hospitalier Veterinaire Frégis, em França, período durante o qual trabalhava cerca de 12 horas por dia, quatro dias por semana para conseguir a tão desejada especialidade. De acordo com a médica veterinária, no seu caso em particular fazer uma especialização em Medicina Interna implicou ter que “fazer anteriormente um internato geral em Medicina e Cirurgia de Pequenos Animais e depois submeter-me a um concurso a nível europeu”. Sendo de Portugal, país onde esta formação ainda não existe, obter uma especialidade significou também ter que estar “fora de casa, longe da família e dos amigos, dos animais de estimação, da comida portuguesa e da luz de Portugal, durante três anos, que é o tempo que demora a tirar uma residência em Medicina Veterinária”. Os anos de estudo, revela-nos, são os mesmos que para qualquer aluno do Mestrado Integrado de Medicina Veterinária, mas depois é preciso “tirar um internato e, ou temos a ‘sorte’ de ser escolhidos para um programa de residência logo a seguir, ou temos que melhorar o nosso CV, publicando artigos, tirando um PhD, fazendo investigação, estágios, trabalhando em locais que oferecem residências, falando outras línguas e trabalhando em clínica geral.”
“Os anos de investimento dependem de pessoa para pessoa. No meu caso fiz dois internatos gerais e depois fui aceite na residência de Medicina Interna no local onde fiz o meu primeiro internato”, revela. E se no caso de Doroteia Bota os anos de residência foram remunerados, a médica veterinária revela que sabe de “colegas que foram para os EUA e fizeram residências não remuneradas”, situação que acredita ser rara na Europa. A decisão de investir numa especialização foi sobretudo fruto da paixão pela Medicina Interna. “Não me via a fazer mais nada dentro da clínica de pequenos animais. Assim, quis aprender o mais e melhor possível dessa área, para poder dedicar-me ‘apenas’ à Medicina Interna e ser o mais competente possível nesse domínio. Acredito que, tal como na Medicina Humana, o futuro [da Medicina Veterinária] está na especialização.”
Doroteia Bota foi uma das profissionais que tirou uma especialidade noutro país e que decidiu regressar a Portugal. A decisão foi motivada “pela família”. “Sim, ganha-se mais lá fora, mas ao contrário dos médicos, que fazem cá as especializações e estão agora quase que obrigados a emigrarem para encontrarem emprego, eu fiz lá fora a especialização e quero trabalhar em Portugal porque sei que há lugar para mim aqui. Mas talvez tenha que desbravar caminho para me verem como uma ‘coisa’ boa e não como uma ameaça, ou alguém que só porque esteve fora se acha melhor do que quem cá está. Nada disto é verdade!” De acordo com a médica veterinária, o investimento que fez na sua carreira “não foi só a pensar no ordenado que isso me daria…se fosse acho que nem deveria ter tirado Medicina Veterinária. Eu investi, tal como muitas pessoas fazem nas mais diversas profissões. Aprendi muito, mas não tenho resposta para tudo. O que eu pretendo é tão só poder aplicar aqui aquilo que aprendi lá fora. Quem quiser discutir casos comigo terei todo o gosto em fazê-lo, porque acredito que duas cabeças pensam melhor do que uma. Também gostaria muito que outros colegas que estão agora a tirar a residência ou já diplomados desejem regressar a Portugal. Isso seria ótimo! Acredito que só assim se conseguirá, progressivamente, provar que estamos aqui para melhorar os serviços do médico veterinário, mostrando alternativas, propondo soluções, ajudando!”
O regresso a Portugal é recente e já está a trabalhar na área, mas confessa que “foi difícil conseguir falar com os locais para onde enviei CV e, no entanto, enviei para sítios ditos de ‘referência’, ou seja, sítios onde acredito que possam ter lugar para mim e onde poderia ser uma mais-valia. Por isso creio que talvez [em Portugal] não valorizem o nosso trabalho, ao contrário do que acontece noutros países europeus. Talvez aqui os colegas tenham medo de arriscar em contratar alguém com este tipo de percurso. Ou então partem do princípio que ‘custamos muito caro’ e, como tal, nem vale a pena conversar. Espero e acredito que isso vá mudar.”
Quem vai e não volta
Rodrigo Pinheiro de Lacerda, médico veterinário português diplomado pelo Colégio Europeu de Oftalmologia, tem 35 anos e exerce numa clínica privada. Foi um dos que rumou a outro país para investir na sua carreira profissional e já não voltou. A exercer em Inglaterra, descreve todo o processo por que passou para tirar uma especialidade como moroso e difícil. À semelhança de outros médicos veterinários diplomados por Colégios Europeus, o especialista em Oftalmologia revela que existe um caminho complexo, marcado por muitos requisitos e “um processo muito competitivo” para conseguir o título de especialista.
“Obter uma residência é um processo muito competitivo, face ao reduzido número de programas de formação a nível mundial. Nesse sentido são pontos relevantes a realização de internatos homologados, participação em congressos da especialidade, pós-graduações, publicações em revistas científicas, apresentações em congressos internacionais…”, explica. Um programa de residência tem “normalmente a duração de três anos” e é essencial para aqueles que pretendem uma especialização. Uma vez iniciado esse programa de residência “haverá que completar vários objetivos determinados pelo colégio, como por exemplo publicar artigos científicos, realizar apresentações em congressos internacionais, obter um número mínimo de pacientes examinados (nalguns casos de diferentes espécies) e de técnicas cirúrgicas”, refere o médico veterinário. Mas o verdadeiro investimento por detrás da obtenção de uma especialização “baseia-se na disponibilidade, ambição e determinação para perseguir esse objetivo. Isso significará, na maioria dos casos, ter que emigrar, com todos os custos inerentes (familiares e profissionais).”
Além disso, o facto de a oferta formativa ainda ser bastante reduzida faz com que estes profissionais enfrentem graus de competitividade bastante elevados. “Dependendo da especialidade, a existência de residências é muito variável nos diferentes países. No meu caso em particular – residência de Oftalmologia – em Espanha só existe na Universidade de Barcelona, o que reflete bem a escassez de programas disponíveis e o alto grau de competitividade que existe”, revela. No que diz respeito à remuneração das residências, relata um cenário muito semelhante ao de Doroteia Bota. “Na maioria dos casos sim [são remunerados], mas depende da instituição onde se realize o programa de residência. Por exemplo, nos Estados Unidos da América há faculdades que oferecem residências não remuneradas, contudo são uma minoria. Por outro lado, como um residente é um veterinário em formação, em muitas instituições o salário é reduzido. No entanto há países, como Inglaterra, com poder económico mais forte, onde os salários oferecidos são moderadamente superiores.”
A motivação para tirar uma especialidade foi semelhante à de tantos outros que investem nesse tipo de formação. “O desejo de aprender, aperfeiçoar e oferecer um serviço de excelência na respetiva área. Saber que estamos a par do mais avançado que se desenvolve em cada área e que temos a formação necessária para implementar novas técnicas de diagnóstico ou terapêuticas são fatores relevantes”. Como defende, “a medicina veterinária tem que acompanhar a metodologia que existe na medicina humana e a única forma de o alcançar é através do sistema de especializações, obtidas através dos respetivos Colégios Europeus ou Americano.”
Colaboração entre especialistas diplomados e veterinários generalistas
Esta é, aliás, a opinião de Cristina Seruca, Especialista Europeia em Oftalmologia Veterinária Diplomada pelo Colégio Europeu. Em entrevista à VETERINÁRIA ATUAL, a médica veterinária refere que “com a colaboração dos especialistas diplomados e dos clínicos veterinários generalistas espero que, no futuro próximo, a Medicina Veterinária venha a ter em Portugal o mesmo rigor clínico e científico que a Medicina Humana.” Obter um diploma numa especialidade veterinária é “um processo equivalente àqueles que realizam os médicos de humana que obtêm o título de fellow de um Colégio de Especialidade Europeu”.
Em relação à falta de informação que ainda existe em Portugal acerca daquilo que é, na realidade, tirar uma especialização, a médica veterinária indica que “é importante esclarecer que, na Europa, só o Colégio Europeu está apto a acreditar um programa de especialização e atribuir o título de Especialista Diplomado pelo Colégio Europeu. O mesmo acontecendo nos Estados Unidos com o Colégio Americano. As regras são estritas e há condições específicas de cada colégio para o efeito.” Antes de poderem vir a obter uma especialização, os médicos veterinários têm de realizar primeiro um internato geral rotacional durante um período mínimo de um ano. “Só depois de completar esse internato se pode realizar uma residência na área de uma especialidade em concreto. A residência tem uma duração mínima de três anos. Tanto o internato, como a residência são realizados num centro veterinário de referência que esteja acreditado para o efeito a nível europeu. Para aceder a um internato e especialmente a uma residência é preciso ter um currículo profissional suficientemente consistente para competir, com outros concorrentes, a uma vaga de acesso”, conta.
E todo este processo se complica graças à elevada competitividade. É que “existem poucas vagas e há muitos veterinários a candidatarem-se. Por isso é necessário investir muitos anos em formação teórica e prática, nomeadamente em estágios em centros de referência internacional, em cursos de pós-graduação, em congressos de especialidade, na realização de projetos de investigação e posterior publicação dos mesmos em revistas de impacto internacional, etc., de forma a ter um currículo relevante para a candidatura.” Cristina Seruca, em particular, conseguiu entrar na residência de Oftalmologia no dia a seguir a ter terminado o seu internato geral, mas para isso, conta, “tive que investir oito anos de formação no Hospital Clinic Veterinári da Universidade Autónoma de Barcelona, onde completei todo o processo.” No que diz respeito aos salários, refere que “são geralmente muito baixos comparando com os dos veterinários a trabalhar em clínica geral privada ou com os próprios especialistas a trabalhar em centros de referenciação. Fazer uma especialidade implica, sem dúvida, um enorme sacrifício económico e pessoal.” Mas tudo isto “significa muito pouco em comparação com o esforço e dedicação inerentes à realização de uma especialização. Fá-lo por amor à profissão e pela vontade de investir numa formação de excelência numa área específica da medicina veterinária da qual se goste muito. É a possibilidade de obter uma aprendizagem intensiva teórico-prática com rigor científico, sob a orientação de um mentor altamente qualificado. É, também, um investimento numa carreira futura com uma excelente preparação.”
Sobre o reconhecimento que um especialista europeu tem em Portugal, a visão é um pouco diferente da de Doroteia Bota. Para Cristina Seruca, os médicos veterinários especialistas já são reconhecidos “pelos próprios colegas e pelos donos dos animais. O problema é que o nosso mercado de trabalho ainda está muito pouco informado sobre o que é um especialista e qual a formação necessária para obter essa qualificação. Por isso ainda é preciso dar tempo para que o nosso mercado vá adquirindo essa informação.” Se assim é, a decisão de exercer em Portugal prende-se sobretudo com o facto de ser um país “onde se consegue ter muita qualidade de vida e porque, depois de investir tanto tempo numa formação fora do nosso país, a grande maioria tem muitas saudades de viver rodeado da família e dos amigos de longa data.”
Na opinião da Especialista em Oftalmologia, cabe aos profissionais já diplomados, sobretudo aos que regressam, “provar a nós próprios e aos outros que queiram seguir o mesmo caminho, que se pode trabalhar com qualidade em medicina veterinária de referenciação em Portugal. Espero que, num curto prazo, sejamos mais para que se possa trabalhar cada vez melhor em equipa, tanto com outros especialistas diplomados, como com clínicos gerais.” Para a médica veterinária é possível oferecer um serviço de excelência em Portugal, “no entanto não nos podemos iludir. Em Portugal não existem as mesmas condições de trabalho que existem nos outros países da Europa, como no Reino Unido, Espanha, Holanda, França etc. Tudo demora mais tempo e estamos muito dependentes de nós próprios. Tenho a certeza que, com tempo e com perseverança, a situação irá melhorando progressivamente.”
Rodrigo Pinheiro de Lacerda acredita que aqueles que voltam o fazem por questões pessoais, mas também porque como diplomados “existe a responsabilidade de trabalhar para a evolução da especialidade, e com isso contribuir para o crescimento do alto nível de veterinária já praticado em Portugal, nomeadamente através da criação de programas de residência. Só assim poderemos permitir que veterinários portugueses possam fazer a sua formação no seu país. A possibilidade de criar centros de referência, onde grupos de veterinários diplomados possam trabalhar em conjunto, significará que o serviço oferecido possa acompanhar a exigência cada vez mais elevada, que os proprietários desejam para os seus animais”, conclui.
O que os faz voltar
Ana Rita Serras completou em março deste ano uma residência de especialidade em Oncologia pelo Colégio Europeu de Medicina Interna (ECVIM). Há cerca de dois meses voltou a Portugal e revela estar “extremamente satisfeita com a decisão. Acho que somos muito valorizados. (…) Fiquei muito surpresa com a aceitação do meu trabalho. A recetividade tem sido enorme e tenho recebido inúmeros casos referenciados e pedidos de ajuda de colegas para casos.” Foi durante o período de Erasmus, em Copenhaga, que ouviu falar pela primeira vez em Especialidades. Estávamos em 2002. Depois de terminar a Licenciatura trabalhou alguns anos em clínica geral em Portugal, mas a frustração de ter que aprender sozinha levou-a ao Reino Unido, onde acabou por fazer o internato e residência. “No meu caso, a razão de investir na especialização foi muito pessoal, de frustração em relação à realidade portuguesa e de querer mais.” A decisão de voltar, conta-nos, foi difícil, sobretudo devido “às múltiplas ofertas de trabalho que aparecem no estrangeiro e falta de veterinários especializados na Europa. No entanto valorizo muito a parte pessoal da minha vida, a minha família, os meus amigos e considero a qualidade de vida em Portugal muito boa”.
Ana Oliveira, a diplomada pelo Colégio Europeu de Dermatologia Veterinária “mais antiga do país”, e Docente da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, sublinha que “os Colégios Europeus são a única alternativa para se conseguir uma especialidade reconhecida na Europa e, em muitos casos nos Estados Unidos, nomeadamente em instituições académicas.” Depois do fim da residência, os médicos veterinários devem formalizar o seu processo de candidatura, que além de envolver “vários tipos de trabalhos para que o candidato se possa submeter a exame”, implica passar por um exame que se realiza anualmente num país europeu e que dura entre dois a três dias. “Todo o processo implica muita dedicação, tempo e estudo com eventuais repercussões na vida pessoal e familiar”, explica Ana Oliveira.
A médica veterinária, atualmente a finalizar um doutoramento pela Universidade Autónoma de Barcelona dentro da área das resistências aos antibióticos e tratamento tópico das infeções da pele do cão, esclarece que apesar da falta de conhecimentos que ainda existe no país relativamente a todo o processo, já “existe mais abertura do mercado português aos Diplomados Europeus, tal como acontece em outros países europeus há alguns anos.” Ana Oliveira acredita que é possível investir-se num serviço de excelência na medicina veterinária no país. “No geral, um Diplomado pretende dedicar-se a longo prazo à sua área de especialização, independentemente do país em que resida.”
Foi precisamente por isso que Ana Rita Serras decidiu voltar a Portugal. “Por um lado sinto que temos algum dever de partilhar o nosso conhecimento e experiência com os colegas e estudantes, senão tudo isto não vale a pena. Gostava muito de ser um incentivo para outros colegas voltarem e estou frequentemente em contacto com colegas a quem tento convencer a regressar. Algumas áreas são mais difíceis do que outras, mas na Oncologia tenho a certeza que podemos fazer a diferença e fazer um trabalho de excelência. É uma área em constante mudança e com avanços da medicina todos os dias. Além disso, em Portugal ainda se faz muito pouco nos casos oncológicos e a medicina baseada em evidência é muitas vezes esquecida. (…) Gostava muito que mais colegas que tenham feito residências de especialidade voltassem para termos uma Medicina Veterinária em Portugal mais perto do resto da Europa.”
Rodrigo Pinheiro de Lacerda acrescenta que “a cultura social e científica portuguesa não é inferior à dos demais países onde as especializações são reconhecidas. Simplesmente o sistema de residências e diplomados especialistas é muito recente e, como tal, nem todos os profissionais portugueses estão familiarizados com ele. Uma vez que as futuras gerações de estudantes de veterinária estiverem mais informados das opções que existem a nível internacional, seguramente que o número de diplomados portugueses aumentará, e com eles a respetiva valorização no mercado nacional.”