O principal papel de um especialista forense, de acordo com Isabel Pires, do departamento de Ciências Veterinárias da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), é «fornecer as informações necessárias para uma posterior decisão judicial acerca de um determinado caso, assegurando que todas as provas recolhidas sejam válidas». Neste sentido, «é essencial a manutenção do controlo permanente sobre todas as amostras e informações – para que se possa atestar com certeza quanto à sua identidade – com o risco de comprometer todo o processo».
Para a médica veterinária, o caso mais difícil que lhe “passou pelas mãos” foi o de um «animal, ainda jovem, que apresentava sintomatologia de insuficiência renal crónica que lhe provocou a morte». Não obstante, «para além das lesões características encontradas, no exame pós-morte, observou-se, no coração, um projéctil com localização sub-endocárdica. Apesar de todo o esforço do proprietário, posteriormente, já não foi possível conduzir judicialmente este caso».
Já Justina Prada, também do departamento de Ciências Veterinárias da UTAD, relata que, uma vez, deparou-se com uma situação de «morte inesperada de vários animais num rebanho de ovelhas, que tinha o mau hábito de entrar na vinha de um vizinho, que já havia ameaçado em colocar veneno». O caso, segundo a também patologista do Laboratório de Histologia e Anatomia Patológica (LHAP) da UTAD, ocorreu em finais do Verão e «depois do exame pós-morte, concluímos que a morte não fora provocada por envenenamento, mas por indigestão causada pelas uvas muito maduras, que levou a uma acidose ruminal, que conduziu à morte dos animais». Não sabendo se foi o caso mais difícil que teve de resolver, foi sem dúvida «o mais melindroso, pela grande quantidade de animais envolvidos».
Mas, nestas andanças da medicina veterinária forense, também existem situações caricatas «como o de uma senhora que deu ao gato um pedacinho da carne que estava a estufar e o animal morreu em seguida, sendo que a grande dúvida da dona seria se a carne estava envenenada, mas aquilo que matou o gato foi a gulodice, pois faleceu com um pedaço de carne entalado na garganta».
Os casos, às vezes, chegam mesmo a surpreender os especialistas, «nomeadamente nas situações de suspeita de envenenamento: um canídeo, submetido a necrópsia com suspeita de envenenamento, apresentava lesões de peritonite, por rotura intestinal. No exame do intestino observou-se um corpo estranho que o animal tinha ingerido: uma chupeta», revela Isabel Pires.
E há, inclusive, casos que marcam, como aquele, «que avaliei em conjunto com a professora Isabel Pires, em que uma matilha de cães recebidos no âmbito do programa antídoto havia sido intoxicada com uma quantidade de veneno tal, que o sangue que escorria do cadáver era tóxico para os insectos em redor», salienta Justina Prada.
Porém, a medicina veterinária forense também inclui a análise de situações em que existe suspeita de má prática clínica. A este propósito, Isabel Pires conta que, certa vez, «o proprietário punha em questão o tratamento antibioterápico efectuado durante o internamento de uma gata, após uma histerectomia e uma eventual relação com a morte. Na avaliação pós-morte detectou-se uma peritonite. As suspeitas do dono do animal não se confirmaram, pois a recolha de material para análise da efusão abdominal, exames histopatológicos e microbiológicos, permitiu determinar que as lesões eram compatíveis com processo vírico».
Os casos de fraude são também bastante comuns, de acordo com esta médica veterinária, que também é patologista no LHAP. «Num dos últimos casos de suspeita de ataque de lobos, verificou-se que a avestruz apresentava caquexia e lesões próprias de salpingite. A observação de outros órgãos não foi possível pois estes não estavam presentes no cadáver. A suspeita inicial não se confirmou, já que existiu adulteração de provas. Na região da cloaca, as marcas observadas foram efectuadas após a morte e não correspondiam a mordedura de predador mas sim a cortes efectuados por um objecto cortante».
Isabel Pires sublinha ainda que «os casos recebidos no LHAP são acompanhados pelos alunos do Mestrado Integrado de Medicina Veterinária da UTAD, o que constitui uma mais-valia na sua formação como futuros médicos veterinários».
Ainda a dar os primeiros passos
Em Portugal, a medicina veterinária forense enfrenta «todos os desafios», garante Justina Prada, justificando «que estamos a começar e há um longo caminho a desbravar». Na verdade, quando a professora começou a interessar-me pelo tema, «não se ouvia falar disto». E se, presentemente, «existem áreas mais desenvolvidas como patologia forense – onde por exemplo na UTAD existe uma equipa motivada a trabalhar há vários anos – existem outras áreas onde se estão a dar os primeiros passos».
Um dos desafios prende-se com a formação. Quem se quiser dedicar profissionalmente a esta área da medicina veterinária «terá de construir um caminho, em grande parte, sozinho», avisa a patologista, dado que «não há cursos de especialização». No entanto, no actual currículo do Mestrado Integrado em Medicina Veterinária da UTAD «existe uma disciplina troncular de Anatomia Patológica e Medicina Veterinária Forense, que transmite as primeiras impressões, e também uma disciplina opcional de Tanatologia Veterinária Forense, que permite consolidar algumas ideias». No caso específico da professora, «tive o privilégio de ser a primeira médica veterinária a frequentar o primeiro mestrado em medicina legal do ICBAS, com a orientação do professor Pinto da Costa, que me alargou os horizontes e mostrou diferentes facetas da medicina legal, ainda que nem todas aplicáveis à veterinária».
No geral, assegura que «ainda temos um longo caminho a percorrer para que um médico veterinário possa dedicar-se a 100% e consiga viver apenas desta área de “especialização”».
O cadáver
«A medicina legal é definida como a aplicação de conhecimentos médicos a questões de direito e assim tem uma abrangência muito grande. Trata-se, no fundo, de auxiliar a Justiça na investigação de crimes que, de alguma maneira, envolvam animais», explica Justina Prada. Tal como referido anteriormente, em medicina veterinária está-se a dar os primeiros passos «no reconhecimento desta área de trabalho». A professora acrescenta que, «quando pensamos em forense, pensamos no estudo do cadáver (tanatologia) e na pesquisa da causa e circunstâncias da morte. Mas existem outras áreas de intervenção como a identificação de fraudes na venda de animais de grande valor, peritagens em seguros, avaliação do dano e outras funções, como averiguação da origem de animais ou subprodutos animais, emitir opiniões em casos de litígio ou má-conduta profissional, investigação de doenças ocultas de animais e avaliação do risco zoonótico de doenças ou epidemias».
Para a patologista não é possível generalizar aquilo em que consiste a actividade profissional de um médico veterinário que se dedica à medicina veterinária forense. Mas, falando na primeira pessoa, explica que «a um perito médico veterinário forense, especialista em tanatologia, como eu, pede-se que conheça a lei e que tenha um saber alargado ao nível de patologia». Isto significa que, na prática, «no exame pós-morte, de entre as lesões encontradas num determinado animal, devo determinar quais as mortais e não mortais e quais as que poderão ter causa externa». Justina Prada alerta que «existem, contudo, muitas áreas de trabalho na medicina veterinária forense que já não podem ser abrangidas pela mesma pessoa. Para mim seria muito difícil avaliar a paternidade de um determinado poldro e muito fácil determinar a sua causa de morte, se fosse o caso». A perita adianta ainda que «os colegas veterinários municipais e também os colegas inspectores têm uma grande intervenção médico-legal».
Isabel Pires costuma dizer aos seus alunos, em tom de gracejo, que os cadáveres falam. «Só temos de aprender a entender a sua linguagem e quanto melhor a percebermos, mais informações poderemos obter no exame pós-morte de um animal». De acordo com a professora, numa necrópsia forense «procura-se a resposta a três questões principais: o que causou a morte do animal, as circunstâncias em que esta ocorreu e que mecanismos a provocaram. Para isso, o cadáver terá de ser examinado de forma minuciosa e sistemática, acompanhada de recolha de material para exames posteriores».
Justina Prada acrescenta que o «cadáver é uma fonte inigualável de informações», sendo que «não temos restrições para o manuseamento e manipulação do mesmo, ainda que sempre com o respeito que lhe é devido».
Proprietários/agentes judiciais
Mas quem recorre aos serviços deste profissional? «A maioria das solicitações vem de proprietários/agentes judiciais, a quem o animal morreu de forma súbita e inesperada e que, por alguma razão, suspeita de que esta morte possa ter sido causada por elementos externos», responde Justina Prada, sublinhando que, «de um modo geral, é a história do animal que se suspeita ter sido envenenado pelo vizinho. Também já tivemos solicitações de colegas veterinários, que perante um proprietário conflituoso solicitam um exame pós-morte. Felizmente, apenas numa pequena percentagem se verifica haver uma causa externa para a morte».
A falta de formação especializada é um dos desafios a enfrentar pelo médico veterinário, contudo, pelo seu caminho, vai deparar-se com outras dificuldades, designadamente «a falta de recursos». Para um perito «é muito frustrante não ter os recursos técnicos, humanos e financeiros para investigar um caso correctamente». Para ilustrar melhor a situação, a médica veterinária dá um exemplo «imaginemos um animal morto subitamente no campo: o trabalho deveria começar logo no levantamento do cadáver e na análise cuidada do local, que não é feita. O cadáver é muitas vezes levantado pelo proprietário, o que inviabiliza desde logo a possibilidade de uma intervenção legal. O custo muito elevado dos exames toxicológicos, em suspeita de envenenamento, também é um grande senão». Mas há mais: «a pesquisa toxicológica, mesmo dos compostos mais comuns, tem custos que o proprietário frequentemente não pode suportar, pelo que muitas vezes o caso tem de se concluir apenas pela suspeita».