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Cardiologia Veterinária: formar para saber diagnosticar

Cardiologia Veterinária: formar para saber diagnosticar

A capacidade de diagnóstico e de tratamento da doença cardíaca em pequenos animais tem vindo a evoluir de forma assinalável, sobretudo graças ao avanço tecnológico. Se hoje os cardiologistas dispõem de crescente formação específica e meios para combater a doença, falta disseminar os conhecimentos sobre a mesma junto dos médicos veterinários não especialistas, aqueles que emitem a primeira opinião. Porque, nesta doença, quanto mais precoce for o diagnóstico, maiores são as probabilidades de sucesso terapêutico.

A doença cardíaca em pequenos animais sempre existiu, mas a sua prevalência na clínica de animais de companhia tem aumentado ao longo dos anos. O que se explica pela maior capacidade de diagnóstico dos médicos veterinários e, também, pelo aumento da esperança média de vida dos cães e dos gatos. Isto porque, embora a doença cardíaca não seja exclusiva dos animais idosos, ela é mais frequente em idades avançadas.

«Segundo estudos recentes, realizados nos EUA e em Itália, a prevalência da doença cardíaca andará à volta dos 11%, sendo que este número poderá ser maior em regiões endémicas de dirofilariose», explica Luís Lobo, director do serviço de cardiologia do Hospital Veterinário do Porto. A doença cardíaca é um tema de eleição para este profissional, que escolheu a cardiomiopatia dilatada canina como tema da sua tese de doutoramento em Ciências Biomédicas no ICBAS – Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar, no Porto.

 

A patologia cardíaca mais comum em cães é a doença valvular mitral crónica, que afecta especialmente raças pequenas e representa cerca de 75% das causas de insuficiência cardíaca congestiva, o que tem motivado o debate na classe veterinária sobre a melhor forma de tratamento nas várias fases da evolução desta doença. Outra doença que tem também uma prevalência importante na clínica de animais de companhia é a cardiomiopatia dilatada, que afecta maioritariamente raças grandes e gigantes, como as Serra da Estrela, Doberman, Boxer, Cão da Terra Nova, entre outras.

Nos gatos, as patologias cardíacas são em geral menos comuns, sendo a cardiomiopatia hipertrófica a doença cardíaca adquirida mais habitual, com uma prevalência de cerca de 27%, e bastante importante em raças em que é hereditária, como a Persa ou a Main Coon.

 

Diagnosticar a tempo

As doenças cardíacas podem ser congénitas ou adquiridas, como as referidas anteriormente. No caso das congénitas e hereditárias, o veterinário tem um importante papel no rastreio de animais afectados e portadores, assim como na colaboração com os criadores e clubes de raça, para evitar a reprodução de animais afectados, alerta Luís Lobo. «No Hospital Veterinário do Porto temos vários protocolos com clubes de raça para rastreio de patologias hereditárias, não só de cardiopatias hereditárias, mas também de outras patologias. Em alguns clubes apenas os cães livres de doença podem ser inscritos como reprodutores, sendo os resultados dos exames publicados periodicamente. Também a Associação Portuguesa de Médicos Veterinários Especialistas em Animais de Companhia tem um programa oficial para rastreio de displasia da anca».

 

Seja no caso das doenças congénitas ou das adquiridas, quanto mais precoce for o diagnóstico, maiores são as probabilidades de sucesso terapêutico, não esquecendo que, além do tratamento inicial, é fundamental elaborar um plano de seguimento, monitorização da evolução da doença e educação do proprietário, de maneira a poder fazer-se o diagnóstico precoce de complicações ou agravamento da doença e actuar em conformidade.

Grande parte das vitórias no combate à doença cardíaca tem passado, justamente, pelos avanços alcançados nas técnicas de diagnóstico. Assim, se durante muito tempo os veterinários apenas podiam contar, no momento do exame aos animais, com as suas mãos e um estetoscópio, hoje existem modernas técnicas de diagnóstico que fazem toda a diferença.

 

Evolução tecnológica

Os EUA têm sido os impulsionadores dos maiores avanços da cardiologia veterinária ao longo dos anos. O maior salto, reporta Luís Lobo, aconteceu nos anos 50, com os estudos de David Detweiller, concentrados na caracterização dos sons e sopros cardíacos e na electrocardiografia básica. «Foi o responsável pela criação da especialidade de Cardiologia na Universidade da Pensilvânia. No entanto, a electrocardiografia só se tornou um meio de diagnóstico corrente mais tarde, com os estudos e publicações de Steve Ettinger e Larry P. Tilley. Nos últimos 30 anos o desenvolvimento da cardiologia veterinária tem sido tremendo. Desde a implantação do primeiro pacemaker num cão, pelo Dr. Buchanan, em 1967, até ao advento e generalização do uso da ecocardiografia veterinária, tem-se observado uma grande evolução desta especialidade».

Se a história clínica do animal e o exame físico continuam a ser indispensáveis no diagnóstico da doença, a evolução tecnológica dos últimos anos permitiu melhorar consideravelmente a precisão de diagnóstico e a capacidade de avaliação da função cardíaca. Para além da radiologia e da electrocardiografia, os meios de diagnóstico clássicos, a ecocardiografia revelou-se uma ferramenta fundamental. «Veio trazer-nos uma nova perspectiva sobre a cardiologia», explica Luís Lobo, «na maior parte das situações só a ecocardiografia nos permite um diagnóstico definitivo, assim como uma caracterização mais exacta da fase de evolução das diferentes patologias, o que nos permite uma abordagem terapêutica mais consentânea com a patologia em causa».

Estes meios de diagnóstico, mesmo o ecógrafo, estão disponíveis em Portugal a preços crescentemente acessíveis. No entanto, em centros veterinários que não tenham casuística suficiente pode não justificar-se o investimento, até porque para além da aquisição do aparelho, é necessária formação específica para a interpretação de radiografias torácicas e de electrocardiogramas. Assim, solicitar os serviços de colegas especializados, cuja oferta é cada vez maior, pode ser a melhor opção. Por exemplo, o Hospital Veterinário do Porto fornece um serviço de telemedecina para veterinários, a Telecardio. Como explica Luís Lobo, o fundador deste serviço, «fazemos a interpretação destes exames com o objectivo de ajudarmos os colegas no diagnóstico e terapêutica de patologias cardio-respiratórias».

Disseminar conhecimento

A cardiologia veterinária tem vindo a desenvolver-se em Portugal como uma especialidade da medicina veterinária, a par de outras. «Há cada vez mais veterinários interessados em aprofundar os seus estudos nesta área», assegura Luís Lobo.

A tendência para uma cada vez maior especialização está relacionada com a necessidade de o veterinário se manter actualizado com a informação científica mais recente, para poder tomar as decisões terapêuticas mais adequadas, sendo impossível manter-se actualizado e fazer formação contínua em todas as áreas e especialidades da medicina veterinária.

Falta agora, sobretudo, estender o conhecimento sobre cardiologia aos clínicos não especializados, aqueles que emitem a primeira opinião, para que estejam aptos a fazerem um diagnóstico mais precoce das diferentes patologias, consigam um melhor reconhecimento das complicações e garantam um acompanhamento dos pacientes com patologia crónica. Esta necessidade é mais premente pelo facto de o diagnóstico precoce ser meio caminho andado para uma terapêutica de sucesso, cabendo aos médicos não especializados fazê-lo.
Luís Lobo reconhece que «ultimamente a oferta de formação tem sido maior, especialmente por parte de instituições privadas», mas na sua opinião seria importante «um maior empenho na formação contínua, mais perto dos clínicos, por parte da Ordem dos Médicos Veterinários e da Associação Portuguesa de Médicos Veterinários Especialistas em Animais de Companhia».

Tratamento para toda a vida

As doenças cardíacas mais comuns são sempre doenças crónicas que necessitam de tratamento e acompanhamento médico-veterinário para o resto da vida do animal. «A abordagem do tratamento crónico da insuficiência cardíaca tem de ser vista como um triângulo, cujos vértices são o animal, o veterinário e o proprietário», defende Luís Lobo. «Todos estes vértices têm que ser tidos em conta se queremos ser bem sucedidos no tratamento. Ao veterinário cabe educar e gerir as expectativas do proprietário, sendo nossa obrigação mantermo-nos actualizados sobre as melhores opções terapêuticas e meios auxiliares de diagnóstico».

O tratamento pode ser bastante oneroso, em especial quando envolve situações de emergência, em que a função cardíaca se deteriora de tal maneira que são necessários cuidados urgentes para reverter a situação, podendo implicar monitorização constante e medicação frequente do animal, idealmente numa unidade de cuidados intensivos. Mais uma vez se torna importante o diagnóstico e avaliação precoce da doença cardíaca, assim como uma correcta monitorização da evolução da mesma, no sentido de evitar complicações súbitas mais complicadas de tratar e mais onerosas para os proprietários.

Tal como nas técnicas de diagnóstico, também a evolução tecnológica no caso do tratamento é assinalável. Se no passado, as drogas disponíveis eram pouco mais que a noz-vómica ou os digitálicos, nos nossos dias estão disponíveis terapêuticas cada vez mais complexas.

Sobretudo nos EUA e em países europeus como a Inglaterra e a Itália, já se utiliza a chamada cardiologia intervencionista, que inclui um conjunto de procedimentos médicos para diagnóstico e tratamento de cardiopatias, que utiliza o cateterismo, tal como a introdução de pacemakers artificiais, o tratamento de patologias cardíacas congénitas ou arritmias primárias. Em Portugal, a aplicabilidade prática da cardiologia intervencionista «implica um investimento relativamente grande com difícil retorno financeiro a médio prazo», considera Luís Lobo, embora seja possível aplicar um pacemaker em colaboração com cardiologistas de medicina humana, o que implica «muito boa vontade de toda a gente». O grande desafio, num futuro próximo, no que se refere à cardiologia veterinária em Portugal é «criar uma estrutura que permita praticar a cardiologia intervencionista por rotina».

Primeiro pacemaker canino

O primeiro pacemaker utilizado clinicamente num cão, com 10 anos de idade, foi implantado em 1967, para colmatar falhas cardíacas recorrentes, motivadas por um bloqueio cardíaco completo. O pacemaker, produzido em 1966, tinha um prazo de validade de dois anos, mas manteve-se em funcionamento normal durante mais de cinco anos, o que era controlado através de electrocardiogramas semestrais.

Aos 15 anos e meio de idade, o cão permanecia em bom estado físico. Como o pacemaker estava a ficar sem bateria, foi-lhe implantado um novo, que funcionou normalmente até ao falecimento do cão, devido a um carcinoma no pâncreas. As funções cardíacas, renais e o próprio pacemaker funcionaram bem até ao fim.

Fonte: Journal of veterinary internal medicine/ American College of Veterinary Internal Medicine (2003) Sep-Oct;17(5):713-4

3 perguntas a
David Connolly, especialista britânico em cardiologia veterinária

– Como avalia a evolução das técnicas de diagnóstico às doenças cardíacas em pequenos animais nos países ocidentais?

– As técnicas de diagnóstico na cardiologia de pequenos animais vão progredir num conjunto de frentes nos próximos anos. Estas incluem o refinamento na compreensão tecnológica e clínica dos marcadores biológicos associados ao coração, incluindo os peptideos natriuréticos (NT-proANP e NT-proBNP) e as troponinas cardíacas (cTni e cTnT).
Outras áreas de progresso vão incluir o diagnóstico por imagens usando as novas técnicas de ultra-som Doppler, como as que permitem a visualização de tecidos, para medir strain e strain rate, permitindo melhorar a avaliação da função sistólica e diastólica, assim como as ainda mais recentes técnicas, como speckle tracking, que evitam alguns dos problemas associados às tecnologias Doppler. Outras técnicas por imagem que estão a começar a ser usadas experimentalmente são as técnicas de ressonância magnética aplicadas à cardiologia, para avaliar quer a estrutura quer a função cardíaca. Estas técnicas estão a começar a ser usadas por centros veterinários por toda a Europa e EUA.

– Como imagina o futuro do tratamento de doenças cardíacas em pequenos animais? É possível o uso de pacemakers em pequenos animais tal como o é nos seres humanos?

– No que diz respeito ao tratamento, a evolução passa pelo uso de novas terapêuticas como as drogas sensibilizadoras dos canais de cálcio de segunda geração, para lidar com a falha sistólica, novas drogas anti-arrítmicas que terão menos efeitos na função sistólica, novas drogas anti-trombóticas para o tratamento do tromboembolismo nos gatos, assim como um crescente refinamento no uso das drogas existentes, com base na evolução do conhecimento médico.
Outros novos tratamentos vão incluir a substituição cirúrgica de válvulas e eventualmente terapias utilizando células estaminais. Os pacemakers já são usados de forma rotineira em cães e gatos que sofrem de bloqueio AV e disfunção do nódulo sinusal. Nós implantamos cerca de 12 aparelhos deste tipo em pequenos animais por ano.

– Quais podem ser, no futuro, as aplicações práticas das técnicas ecográficas de strain e strain rate, especialmente na patologia mitral?

– Uma das principais preocupações quando se trata de avaliar a função sistólica neste tipo de doença prende-se com as condições características de carga, com um relativamente alto nível de pré-carga e baixo nível de pós-carga causado pelo jacto de insuficiência mitral, habitualmente massiva.
Infelizmente, estas condições de carga também influenciam as mais recentes técnicas Doppler de visualização de strain e strain rate, pelo que continua a faltar-nos um sólido método ecocardiográfico que permita a avaliação da função sistólica em formas avançadas de doença da válvula mitral. Das técnicas actualmente disponíveis, a ressonância magnética será provavelmente aquela que melhor se adequa a esta função.

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