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Cardiologia intervencionista: «Redução significativa da morbilidade e mortalidade»

Cardiologia intervencionista: «Redução significativa da morbilidade e mortalidade»

A cardiologia intervencionista é sinónimo de tratamentos minimamente invasivos. No entanto, para que se torne uma prática recorrente em Portugal, deve-se investir em tecnologia e em formação, algo que não sai propriamente barato. Apostando na máxima “a união faz a força”, há quem acredite que deveria existir centros ou instituições de referência com vontade e capacidade de providenciar este tipo de serviço.

A cardiologia intervencionista baseia-se «num conjunto de procedimentos médicos invasivos, não cirúrgicos, cuja finalidade é o diagnóstico e o tratamento de várias cardiopatias». Estes procedimentos incluem «a introdução de cateteres (tubos finos e flexíveis) nos vasos sanguíneos periféricos até ao coração, normalmente guiados por fluoroscopia, que utiliza a técnica de raios X, mas em tempo real», explica Luís Lima Lobo, do Hospital Veterinário do Porto.

Esta prática apresenta «uma redução significativa da morbilidade e mortalidade associadas às intervenções cirúrgicas clássicas, com benefício para o doente», sublinha Nuno Félix, docente da cadeira de Clínica dos Animais de Companhia da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Técnica de Lisboa (FMV-UTL).
 
Problemas de coração

 

O diagnóstico de patologia cardíaca é baseado, de acordo com Rui Máximo, na conjugação do historial clínico com o exame clínico exaustivo e auxiliado por exames complementares, onde a radiografia, a ecocardiografia e o electrocardiograma são os mais comuns. Na opinião do médico veterinário do Hospital Veterinário do Restelo, em Lisboa, estas “ferramentas”, «que isoladas fornecem alguma informação, devem ser utilizadas em conjunto, uma vez que cada uma delas fornece informação específica para a construção definitiva do diagnóstico, assim como para uma melhor percepção da função cardíaca». Porém, existem outras técnicas mais avançadas para diagnóstico de patologia cardíaca, «como o Holter, a ecocardiografia 3D e a angiografia, entre outras», que «até há pouco tempos estavam reservadas à medicina humana, mas cada vez mais são utilizadas em medicina v veterinária. A sua utilização já é feita regularmente noutros países, sendo que em Portugal estamos agora a iniciar o seu uso», diz o “especialista” em cardiologia.

As doenças mais frequentes nos cães são «as patologias valvulares crónicas (sobretudo ao nível de válvula mitral), representando cerca de 75% dos casos de patologia cardíaca. A tosse e o cansaço são muitas vezes os sinais de alerta mais comum para os donos», continua Rui Máximo, acrescentando que, no relativo aos felinos, as doenças inerentes ao próprio músculo cardíaco, sobretudo a cardiomiopatia hipertrófica, são as mais comuns, sendo que a expressão clínica é um pouco diferente: prostração, taquipneia, etc.».

 

Existem, inclusive, raças com propensão a desenvolver patologias cardíacas. «A cardiomiopatia hipertrófica nos Maine Coon ou a estenose sub-aortica nos Terranova são apenas alguns exemplos de doenças cardíacas em que existe uma componente genética/familiar envolvida», alerta o médico veterinário do Hospital Veterinário do Restelo.

Os tratamentos variam muito em função da patologia, baseando-se «na melhoria da função cardíaca, seja por controlo do ritmo, por aumento da contractilidade, por bloqueio de alguns mecanismos que o organismo impõe como “protectores”, mas nocivos a longo prazo para a função cardíaca, por diminuição de congestão, etc.». E se «grande parte dos pacientes passa por medicação oral apenas, existem, contudo, algumas patologias, sobretudo congénitas, que podem ter uma abordagem diferente», ressalva Rui Máximo. Neste sentido, «a cardiologia intervencionista tem um papel importante na resolução de alguns casos clínicos e com pequenas intervenções podemos corrigir defeitos anatómicos, comunicações entre câmaras, etc.», conclui.

 

Procedimentos menos invasivos

Nuno Félix explica que antes do advento de técnicas de diagnóstico não invasivas como a ecocardiografia, «a principal forma de diagnóstico, investigação clínica e experimental em cardiologia, implicava a cateterização do coração». Esta consistia, basicamente, «na introdução de cateteres, de comprimento variável e com determinadas características, em grandes vasos (veias ou artérias) e através destes a sua colocação nas grandes cavidades cardíacas». Uma vez posicionados, «permitiriam a medição das pressões nas mesmas e, utilizando-se um liquido de contraste, o sentido do fluxo de sangue». A técnica, para o professor da FMV-UTL, possibilitava, «não só o diagnóstico de anomalias anatómicas das válvulas e cavidades cardíacas, como também medições de parâmetros de função (como a força de contracção do coração), além de algumas intervenções». Actualmente, em medicina humana e veterinária o foco da cardiologia intervencionista «tem-se dirigido mais para a intervenção terapêutica, nomeadamente na resolução de anormalidades anatómicas valvulares (por exemplo por dilatação de uma válvula estenosada através da insuflação de uma balão) e de comunicações anómalas entre as cavidades e grandes vasos». Não obstante, segundo o médico veterinário, em alguns casos «a vertente diagnóstico ainda é muito importante, designadamente no caso das coronariografias, em que se verifica a patência das artérias coronárias no diagnóstico de enfarte miocárdico, um procedimento que presentemente está a ser realizada em milhares de pessoas em todo o mundo».

 

A cardiologia intervencionista tem revolucionado ainda a forma de diagnóstico e tratamento de arritmias cardíacas, «nas quais o exemplo mais típico é a colocação de pacemakers. Nesta área, além da cardiologia intervencionista, para determinados tipos de patologia, não existem quaisquer outras alternativas terapêuticas», acrescenta.

A colocação do pacemaker

Apesar de em medicina humana a cardiologia intervencionista ter aplicações no diagnóstico e tratamento de doença coronária por cateterismo cardíaco, em medicina veterinária começou «por ser utilizada para a introdução de pacemakers artificiais, havendo hoje muitos centros de cardiologia veterinária na Europa e Estados Unidos que a utilizam para outros procedimentos, tais como: valvuloplastias (que permitem a redução do grau de obstrução das válvulas cardíacas, através de um cateter com balão); aplicação de aparelhos intracardíacos para resolução de defeitos congénitos (como por exemplo a resolução de defeitos do septo interventricular, que é um defeito do septo que separa os dois ventrículos) ou; mais recentemente em cardiologia veterinária, estudos electrofisiológicos (electrocardiogramas intracardíacos) e ablação de arritmias com energia eléctrica de alta-frequência aplicada em locais específicos do tecido de condução cardíaco», revela Luís Lima Lobo.

A aplicação de pacemakers para tratamento de determinados tipos de arritmia é actualmente muito comum em alguns países, «sobretudo para arritmias associadas a diminuição patológica da frequência cardíaca e alterações de condução do impulso electro-cardíaco. A sua utilização para determinação do débito cardíaco (método de termodiluição), bem como de outros parâmetros hemodinâmicos é efectuada ocasionalmente em Unidades de Cuidados Intensivos Veterinários, com recurso a um cateter especial chamado Swan-Ganz. Finalmente é utilizada extensivamente para a investigação laboratorial de patologias cardíacas», refere Nuno Félix.

Os pacemakers usados em animais provêm, frequentemente, de dadores humanos, o que origina, segundo o docente da FMV-UTL, três tipos de problemas. O primeiro consiste na disponibilidade destes aparelhos, «que como tal é limitada». Por outro lado, «poderão existir algumas complicações de carácter legal se as situações não forem devidamente acauteladas e, por último, em medicina humana existem actualmente muitos tipos de pacemakers, sendo que muitos deles baseiam-se em sensores adaptados para as características electrofisiológicas do coração humano e como tal podem não funcionar da forma esperada quando colocados num doente da espécie canina ou felina», ressalva.

Porém, presentemente, «nos centros de cardiologia veterinária em que a cardiologia intervencionista é uma prática mais ou menos corrente, os pacemakers implantados são novos, sendo pouco comum a sua reutilização a partir de “dadores” humanos», revela Luís Lima Lobo. De qualquer forma, salienta, a reutilização poderá não constituir um problema «se houver uma preparação adequada (esterilização) e o tempo de vida da bateria do aparelho for longa, ou seja, em comparação com o tempo de esperança de vida média dos animais, o tempo de vida do pacemaker é normalmente adequado».

Medicina intervencionista no CAMV

A cardiologia intervencionista é um procedimento pouco invasivo. Contudo, acarreta um investimento em tecnologia, e até em formação, por parte dos CAMV. «É fundamental existir um fluoroscópio, isto é, uma espécie de aparelho que funciona com raio X, associado a um intensificador de imagem para visualizarmos a colocação do cateter e outras intervenções a tempo real, o que implica a existência de equipamento e instalações adequadas para a prevenção da exposição a radiação», especifica Nuno Félix, alertando que, «se quisermos também estudar os grandes vasos torácicos tais como a aorta poderá existir a necessidade de se possuir um injector de contraste – um aparelho que consegue ejectar uma quantidade pré-determinada de líquido contraste em pressão suficiente e de forma rápida num vaso de grandes pressões -, pois só assim se consegue uma “imagem” de qualidade no fluorsocópio».

Há ainda, segundo este profissional de medicina veterinária, «a necessidade de equipamento que permita a anestesia geral, incluindo a sua monitorização e prevenção e/ou tratamento de complicações que possam existir da intervenção (desfibrilhador, sangue disponível caso seja necessário fazer-se uma transfusão, etc.)». Quanto à equipa, «deverá estar preparada para efectuar a cirurgia de tórax aberto (toracotomia), caso esta seja necessária de forma urgente».

No relativo ao material consumível, «na sua maioria poderá adquirir-se externamente a diferentes tipos de fornecedores». 

Para o professor, este investimento «compensa a vários níveis», em primeiro lugar «para o doente, dado que o diagnóstico e sobretudo a terapêutica de patologias que de outra forma não seria possível, ou que seria mas de uma forma muito mais invasiva e portanto associada a riscos aumentados em termos de mortalidade e morbilidade»; em segundo, «em termos profissionais para o médico veterinário, uma vez que irá dispor de mais uma técnica de forma a melhorar a sua actividade; e em terceiro, «para a profissão em geral, pois permite de forma objectiva melhorar muito a saúde dos nossos animais com o que de mais moderno e eficaz está disponível». Finalmente, «em termos económicos, também acredito que compensa». Não obstante, Nuno Félix ressalva que não em qualquer CAMV: «é com efeito um investimento que poderá compensar em hospitais ou clínicas cuja casuística de cardiologia seja significativa». O docente argumenta que, «embora o poder de compra dos portugueses seja um factor limitativo, existem pessoas com disponibilidade e capacidade de forma a possibilitar a rentabilização de um serviço deste género e, para além disso, o equipamento de radiologia intervencionista poderá ser utilizado noutras áreas para ser rentabilizado. Incluem-se nestas a radiologia diagnóstica de alterações vasculares extra-torácicas, a oncologia, ortopedia, pneumologia e urologia, entre outras».

O médico veterinário é ainda da opinião que, «uma vez iniciados estes procedimentos, a maioria das reticências serão colocadas de lado. Veja-se o exemplo das ressonâncias magnéticas em animais de companhia. Há cerca de oito ou nove anos era impensável pensarmos que a maioria dos donos dos animais poderia suportar o preço associado à realização deste tipo de exame em cães ou gatos e a verdade é que, apesar da crise que nos afecta, elas actualmente realizam-se e em número crescente. E se de início a sua utilização era exclusivamente para determinados tipos de patologias neurológicas, na verdade já começam a ser pedidos exames deste tipo para diagnóstico de outros tipos de patologia».

Medicina intervencionista em Portugal

Estes procedimentos intervencionistas são, sem dúvida, uma prática em ebulição no nosso país e há até quem os considere o futuro, no relativo ao tratamento de certas patologias cardíacas. Porém, para que se torne numa realidade consistente, é necessário continuar a caminhar…

Para Luís Lima Lobo, para que a cardiologia intervencionista se possa desenvolver em Portugal deve-se investir em tecnologia e na formação. No primeiro caso, os maiores investimentos, «são a bomba de angiografia e o fluoroscópio, que deve ser instalado numa sala preparada para o efeito. Este aparelho deve garantir qualidade e segurança, o que implica um investimento relativamente grande». Algo que será compensado, «se se conseguir criar uma referência para cardiologia intervencionista nos colegas veterinários em Portugal. Isto implica também uma formação de base dos clínicos, de maneira a que os potenciais casos que necessitem de intervenção sejam detectados». O médico veterinário do Hospital Veterinário do Porto reitera que «mais importante do que o investimento em tecnologia é o investimento na formação necessária para se poder exercer cardiologia intervencionista veterinária».

No entanto, em primeiro lugar, os médicos veterinários «têm de estar conscientes de que é uma alternativa que pode e deve ser aplicada nos pacientes veterinários», diz Nuno Félix, defendendo que, por outro lado, e relacionada com a primeira questão, «deverá existir uma maior divulgação junto dos donos dos animais, uma vez que eles serão um dos principais beneficiários deste tipo de terapêuticas». Neste sentido, «os médicos veterinários deverão ser uma peça-chave nesta educação».

O professor aponta ainda a «existência de muito poucos profissionais portugueses com a formação adequada nesta área» como entrave ao desenvolvimento destes procedimentos no país e acredita «que seria importante a existência de centros ou instituições de referência com a vontade e a capacidade de providenciar este tipo de serviço, justificando-se perfeitamente a existência de um ou dois centros ao nível nacional».

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