“O facto de termos acessos mais facilitados e toda uma envolvência de menos stress, dando até a sensação de que os dias são mais longos, torna a vida menos complicada, permitindo-nos desfrutar de pequenos (grandes) prazeres: tempo para conversar mais com os clientes e para a família, assim como para apreciar a paisagem envolvente”, sintetiza Isabel Maia, diretora do Grupo HVV – Hospital Veterinário de Viseu.
O regresso às origens
As razões que levam um médico veterinário a estabelecer-se fora dos grandes centros urbanos são várias. Há quem tenha decidido regressar às origens, como Firmino Coutinho, que após vários anos a trabalhar em grandes hospitais em Lisboa resolveu montar um projeto: a Clínica Veterinária dos Milagres, na sua cidade natal, Leiria. Foram ponderados “argumentos familiares de proximidade e argumentos individuais de ganho de qualidade de vida profissional e pessoal”.
Também Pedro Requicha, após dez anos a trabalhar na capital, achou que 2008 era a altura ideal para mudar de vida a nível pessoal e profissional. “Acreditar que para os meus filhos trazia mais benefícios do que inconvenientes crescerem fora de um grande centro e a possibilidade de lhes proporcionar uma melhor qualidade de vida pesou muito na minha decisão”, conta o médico veterinário. Já do ponto de vista profissional poder construir uma estrutura de raiz, sólida, “apoiada numa visão muito própria da Medicina Veterinária e ainda por cima rodeado de uma equipa de profissionais fantásticos” foi o driver. Estavam lançadas as bases para a criação do Hospital Veterinário do Oeste, na Lourinhã.
Sempre fora de um grande centro
Mas há mesmo quem nunca tenha experienciado uma vida profissional num grande centro urbano. Luís Pissarra é um desses casos. Depois de ter crescido e estudado em Lisboa, iniciou a sua vida profissional em Coruche, substituindo uma colega que estava em ‘baixa de parto’, no âmbito das espécies pecuárias. Era suposto ser uma situação pontual, mas “o trabalho foi aumentando, a empresa foi crescendo e, com o percurso normal de uma estrutura mais ambiciosa, juntamente com mais duas colegas de Coruche, demos o passo inevitável de começar um centro de atendimento médico veterinário (CAMV)”, conta-nos o médico veterinário. A partir desse momento, a sua vida profissional tinha-se oficialmente estabelecido no Ribatejo, na Clínica Veterinária Vale do Sorraia.
O apelo das raízes
E há ainda quem tenha sentido o apelo das raízes e, por isso, escolhido ficar na terra onde nasceu ou nas proximidades por perceber que “havia muito a fazer na área da saúde animal, nomeadamente em clínica de animais de companhia”, confidencia Isabel Maia.
Filipe Pereira também optou por ficar pela ‘terra’: “nasci aqui perto, numa aldeia com o nome Turcifal, e desde que entrei em veterinária que fui falando com os meus pais em abrir um hospital veterinário no terreno dos meus bisavós. Nascemos como clínica no Turcifal e passamos a hospital também numa aldeia com o nome Mugideira, a 4 km de Torres Vedras”, explica o diretor-clínico do Hospital Veterinário da Mata de Santa Iria.
Acompanhamento personalizado
Montar um CAMV fora de um grande centro urbano é “menos dispendioso”, salienta Tânia Faria, do Animalcare – Centro Veterinário da Póvoa da Galega. Ou seja, nas grandes cidades “o valor do metro quadrado é substancialmente mais caro e isso é um facto inegável”, complementa Pedro Requicha. Esta é uma vantagem a ter em conta, mas a isto acresce o facto de ser “mais fácil a deslocação dos clientes (trânsito e estacionamento)”, aponta Tânia Faria.
Além disso, sendo um ambiente mais tranquilo para os tutores e para os animais, “conseguimos um acompanhamento personalizado, já que quando não conseguem vir à clínica facilmente nos deslocamos às suas casas”, revela a médica veterinária.
A proximidade que se estabelece com o cliente também é um ponto destacado por Firmino Coutinho. Porém, o médico veterinário salienta, no leque de vantagens, conseguir-se “uma maior flexibilidade na gestão das consultas e qualidade de vida, apesar de todas as exigências da profissão”. Outro dos benefícios de ter um CAMV num meio mais pequeno é “não existir uma concorrência descontrolada e poder haver uma cultura de respeito e educação entre os colegas”, refere o médico veterinário.
Uma relação de parceria
A concorrência está a aumentar, mas “até aqui tem sido sempre uma concorrência leal, com muito respeito e inclusivamente que aposta na colaboração”, ressalva Firmino Coutinho. Pedro Requicha concorda e vai mais adiante, preferindo falar em parceiros. “Quando contamos com mais de 50 CAMVs referenciadores, que acreditam no nosso trabalho e no nosso profissionalismo e que confiam na nossa equipa para ajudá-los a resolver os seus casos mais delicados e complicados, faz com que tenha alguma dificuldade em falar em concorrentes, falando mais facilmente em parceiros”.
Apesar desta relação de parceria que se tem vindo a estabelecer entre os CAMVs, não se é alheio ao facto de continuarem a “existir clientes que gostam de receber uma segunda opinião, seja para mudar ou para reforçar a primeira; que nunca estão satisfeitos e que pura e simplesmente não valorizam os atos médico veterinários ao ponto de se fidelizarem, indo ao CAMV que calhar naquele dia”, elucida Firmino Coutinho.
Rural versus urbano
Mas este tipo de cliente não é exclusivo dos meios mais pequenos. Aliás, de um modo geral, o tipo de clientes não varia muito entre as várias zonas do país. “O cliente de uma cidade do interior, como Viseu por exemplo, não é muito diferente do de uma cidade do litoral”, diz Isabel Maia, sublinhando que onde ainda se nota diferenças é “nas zonas mais rurais, mas também aqui tendem a esbater-se”.
A realidade em Coruche acaba por ser paradigmática da situação descrita por Isabel Maia. Se, por um lado, “temos clientes típicos de cidade, mais eruditos e que sabem o que procuram”, por outro temos clientes que “trazem animais de guarda ou mesmo de pastoreio, que procuram outro tipo de serviços, caçadores e mesmo pessoas ‘mais humildes’ que vivem afastadas dos centros urbanos e que acabam por ter um conhecimento menor do que pode afetar os seus pets”, sublinha Luís Pissarra. Esta mentalidade e falta de cultura do animal de estimação “exige muito do nosso grupo de trabalho”, declara Pedro Requicha, acrescentando que, por isso, “trabalhar as pessoas tornou-se um desafio diário, desgastante, porém compensador”.
Neste sentido, como completa Isabel Maia, “o simples facto de, quando recorrem a nós, perceberem que o seu ‘animal de guarda’ afinal também sente dor e até fez umas análises (tal como o ‘dono’ e até tem uma doença idêntica), faz com que o comecem a olhar com outros olhos e quem sabe se não poderá passar a ser um verdadeiro animal de companhia”.
Porém, fora dos grandes centros urbanos, também já existe “um cliente instruído, disposto a entender aquilo que lhe é proposto e a trabalhar connosco para benefício do seu animal”, reforça Firmino Coutinho. A prova disso está “no aumento das consultas em áreas não clássicas, como comportamento, peso e até geriatria”.
O cliente está mais exigente e, em consequência, “obriga-nos a trabalhar melhor”, afirma Filipe Pereira, o que é bom pois “não pretendemos ser um hospital veterinário com filas à porta, mas queremos continuar a ser uma equipa pequena a quem o cliente conhece a cara”.
Desafios próprios
Se há uma série de vantagens em montar um CAMV fora de um grande centro urbano há igualmente o reverso da moeda, com dificuldades e desafios. Luís Pissarra começa por apontar como desafio a questão de ainda não se ver o animal como um ser que sente e que precisa de ser alvo de cuidados. “Há a necessidade de explicar que alguns hábitos que os tutores praticam diariamente com os animais domésticos não são os mais adequados (alimentação, algumas profilaxias…) e essa tentativa de mudança, muitas vezes por questões culturais, pode ser um desafio”.
Por outro lado temos a situação do investimento financeiro que os donos têm de fazer na saúde dos seus animais de estimação, “quer seja em termos de profilaxia ou mesmo em tratamentos e cirurgias, o que pode ser um obstáculo”, acrescenta Luís Pissara. Tânia Faria concorda: “tem de se trabalhar muito e bem, por vezes com poucos recursos ou recorrendo a poucos meios de diagnóstico, pela fraca disponibilidade monetária dos donos”. Porém, nesta adversidade, a médica veterinária vê uma oportunidade, já que “em termos clínicos aprende-se bastante”.
Outro aspeto limitativo é que a demografia pesa na casuística. “Tenho dificuldades em justificar no meu CAMV a existência de um médico apenas ‘especializado’ numa área específica. Precisamos todos de assegurar o elementar com qualidade e apostar nas ‘especializações’ a partir daí”, salvaguarda Firmino Coutinho.
A casuística pesa também na justificação de adquirir (ou não) alguns equipamentos de topo “porque encontramos maiores dificuldades em rentabilizá-los. Todos gostaríamos de ter um aparelho de TAC, mas para fazer uma por dia simplesmente não é racional”, refere o médico veterinário.
Daí que, do seu ponto de vista, o maior desafio é “caminhar para uma cultura de especialização acompanhada por equipamento de topo de uma forma equilibrada tendo em conta a demografia e a casuística”.
Recursos humanos
Filipe Pereira aponta aquela que será uma das maiores dificuldades ou mesmo desafios destes CAMVs situados fora das grandes cidades: os recursos humanos. “A contratação de uma equipa clínica é possivelmente o pior dos contras”, reforça. Os grandes centros urbanos “têm mais fatores de atratividade para recém-licenciados, que não raramente estudaram ali, têm ali as suas vidas organizadas e encontram dezenas e dezenas de CAMVs, alguns de grande dimensão, que os absorvem, proporcionando-lhes experiência e casuística”, especifica Firmino Coutinho. A lei da oferta e da procura faz com que “surjam abusos e existam relatos preocupantes de colegas a serem literalmente explorados”
Na sua região de atuação – Oliveira de Frades, Viseu e Seia – Isabel Maia tem “bastante dificuldade em recrutar”, situação que pode estar relacionada com “a vontade dos jovens licenciados estarem nos grandes centros e em particular de saírem para o estrangeiro”.
No Hospital Veterinário da Mata de Santa Iria também se tem tido dificuldade em contratar e, por isso, foi preciso encontrar soluções. “Neste momento estamos a passar por algumas mudanças estruturais. Tínhamos uma equipa de médicos superior à dos enfermeiros e auxiliares e isso fazia com que o médico veterinário tivesse várias funções. Decidimos passar a atribuir funções de maior responsabilidade a enfermeiros – penso que estes profissionais vão ter um papel preponderante num futuro próximo – libertando mais os médicos veterinários para consultas”, explica Filipe Pereira. Por outro lado “estamos a concluir um alojamento para oferecer estadia a colaboradores recém-chegados ao hospital, uma ideia bem aceite por quem tem passado pelas entrevistas”, revela o médico veterinário.
No seu CAMV, Firmino Coutinho admite que nunca teve muita dificuldade em recrutar, “apesar de a base de recrutamento ser muito inferior à de colegas de grandes centros urbanos”. Porém justifica o facto por “apostarmos em remunerações condizentes com o cargo, progressivas, e em formação, bem como em dar algum tempo para a curva de aprendizagem. E, obviamente, que temos de dar condições para que os colaboradores possam usufruir da melhor qualidade de vida que uma cidade como Leiria pode oferecer, organizando horários decentes e proporcionando períodos de descanso que decorrem da Lei e das leis do bom senso”.
Em suma, como sintetiza o diretor clínico da Clínica Veterinária dos Milagres, fora dos grandes centros urbanos “podemos e devemos ser mais pacientes com o desenvolvimento dos nossos recursos humanos, não só porque a oferta é menor, mas porque a gestão do tempo dos atos médicos o permite”. Desta forma conseguem-se “equipas sólidas, rotinadas, coesas e muito funcionais ao mesmo tempo que permitimos o incremento de qualidade de vida”, conclui Firmino Coutinho.
Quer abrir um CAMV fora de um grande centro urbano?
O que dizem os médicos veterinários:
– “Existem imensos locais onde se consegue ter melhor qualidade de vida, custos menores, remunerações melhores, mais tempo (só no trânsito ganham-se anos) e outras coisas que aprendemos a valorizar com o tempo (boas escolas para os filhos, boa cultura, boa saúde). Leiria proporciona-me isso tudo”, Firmino Coutinho.
– “Para os colegas que pretendam investir digo que é preciso ter algum ‘jogo de cintura’ para lidar com realidades muito diferentes, mas as pessoas são, de uma forma geral, muito agradecidas e consegue-se um relacionamento mais pessoal. É necessário um acompanhamento personalizado e muita disponibilidade em termos de tempo e de trabalho. Mas em qualquer área de negócio tem de se trabalhar bem, gostar do que se faz e ter disponibilidade para inovar e fazer uma aprendizagem contínua, de modo a proporcionar um serviço de qualidade. Construir todos os dias o nosso ‘negócio’ e fazer dele um prazer”, Tânia Faria.
– “É preciso gostar deste meio, estar preparado para uma vida e relações diferentes, mas do meu ponto de vista é muito gratificante e honesto. E a forma como os clientes reconhecem o nosso trabalho acaba por ser muito genuína e sincera. É preciso dar mais tempo e ser mais paciente”, Luís Pissarra.
– No início de carreira, em particular, não procurem facilidades pois a vida muito facilitada não traz verdadeira felicidade. E porque as barreiras vão sempre surgir, o melhor será encarar cada dificuldade/desafio com garra, determinação e muita humildade, sendo que numa pequena ou grande cidade um começo é sempre um começo”, Isabel Maia.
– “É preciso ser persistente pois acho que o evoluir do negócio é mais lento fora das cidades”, Filipe Pereira.