Será que os veterinários levam a questão da obesidade animal verdadeiramente a sério ou ainda olham para o assunto como uma questão estética? Para Alex German, um dos maiores especialistas em obesidade animal, ainda é uma questão estética e a mentalidade tem de mudar rapidamente. Porque a situação tem vindo a piorar de ano para ano e porque pode está provado que é um fator de risco para o aparecimento de outras doenças.
Quando começou a interessar-se pela temática da obesidade em pequenos animais?
Tudo começou quando vim morar para Liverpool, há 13 anos. Antes disso estava em Bristol, onde fiz a minha formação em gastroenterologia em cães. Na altura havia uma grande equipa de cientistas a trabalhar nessa área, mas quando mudei para Liverpool não havia nada ligado à gastroenterologia. Foi aí que percebi que tinha de mudar de direção. Liverpool tinha um problema relacionado com obesidade em animais e conheci o primeiro professor de obesidade, Paul Trayhurn, com quem trabalhei nos primeiros anos.
Nessa altura já existiam muitos cães e gatos obesos?
Sim, sempre foi um problema e está a piorar. Não temos boas estatísticas no Reino Unido e estudos americanos referem que a situação está inclusive a piorar. Sempre foi um problema, pelo menos um problema suficientemente grande para investir na sua resolução. Depois há uma parte filosófica: se queremos fazer a diferença na pesquisa científica podemos estudar doenças genéticas raras e fascinantes, mas na realidade não vai fazer a diferença para muitos indivíduos. Ou então podemos escolher as doenças mais comuns, como a obesidade, e fazer a diferença, beneficiar muitos mais pacientes. Sempre achei que era uma área onde eram necessários mais conhecimentos científicos.
Falou na importância dos veterinários perceberem que este é um problema sério, não apenas uma questão cosmética. Como podemos alertar os veterinários a preocuparem-se seriamente com a obesidade?
Esse é um dos maiores desafios. Dizemos sempre que os donos estão em negação, ou seja, que veem os animais mais magros do que estão na realidade. Não olham para a questão como um verdadeiro problema, mas ainda assim acho que o médico veterinário representa o principal desafio. Para ser sincero acho que devíamos estar focados na prevenção e temos de começar pelas gerações mais novas. Informar os veterinários que estão atualmente a formar-se e esperar uma mudança de atitude. Quando se trata de mudar de atitudes é necessário uma geração para que a sociedade mude como um todo. Agora o que temos de fazer passa pela consciencialização, pela educação e informação das pessoas. Por tornar o trabalho do médico veterinário tão fácil quanto possível, esta é a chave do problema.
Como é que se faz isso?
Os médicos veterinários vão sempre dizer que estão muito ocupados a lidar com outras situações para olhar para a obesidade, então a única coisa que têm de fazer é colocar em contacto os donos dos animais com a pessoa da clínica que está responsável por analisar os problemas de excesso de peso nos animais. No Reino Unido quem trata destas situações, por norma, são as enfermeiras pois estão mais motivadas para lidar com o assunto. O que os veterinários têm de fazer é apresentar a enfermeira ao dono do animal obeso e dizer que ela vai explicar o que pode fazer para lidar com o problema de excesso de peso, mas não sob a forma de confronto direto ou com um discurso acusatório. Não é a situação ideal, mas se conseguirmos que façam 10 ou 20% do que aconselhamos então já começamos a fazer a diferença. Passa tudo por uma estratégia de gestão na clínica, de ter um serviço para lidar com os casos de obesidade e prevenção.
Tem uma opinião muito própria sobre as razões pelas quais os donos alimentam os animais de estimação com guloseimas. Porque estamos a dar comida em demasia aos animais?
Acho que uma das razões é porque é agradável alimentar o animal porque recebemos algo em troca. É um gesto que vai diretamente ao coração dos donos dos animais: damos uma guloseima e eles dão-nos amor em troca. E depois de acontecer é muito difícil quebrar esse laço. De uma maneira geral as pessoas não têm noção da quantidade e da frequência com que estão a alimentar os seus animais. Se lhes perguntar que tipo de alimentação estão a dar ao animal vão dizer o que colocam na tijela, ou seja, vão referir a refeição principal, mas depois não falam nas guloseimas. Não acho que o escondam de forma deliberada, o problema é que nem se lembram quando lhes perguntamos. E se estiverem na sala os dois donos do animal, marido e mulher, provavelmente vão dizer coisas diferentes (risos). É uma daquelas situações que é vista à parte da comida, funciona como uma recompensa, e há aquela ideia de que não faz mal. Mas para cães pequenos pode fazer toda a diferença. Se olharmos para os diários de alimentação do animal, cada vez que os donos dão alguma coisa referem quase sempre que é ‘um bocadinho de comida’, porque acham que isso não conta, mas a verdade é que faz toda a diferença. Para mim ficar com excesso de peso não está necessariamente relacionado com a alimentação do animal, mas com o facto de estarmos a fornecer demasiadas calorias. O perigo das recompensas e das guloseimas é que são dadas quase sem se pensar, de forma escondida, e as pessoas nem se apercebem que o estão a fazer.
A obesidade vai continuar a ser um problema no futuro ou podemos prevenir?
Vai ser sempre um desafio. Por exemplo em gatos, há certos felinos que regulam a comida que recebem, ou seja, podemos dar qualquer tipo de comida e não ficam com excesso de peso. Estamos a falar de questões genéticas e um dos estudos que fizemos mostrou isso. Tínhamos uma colónia de gatos que eram alimentados sem restrições, alguns ficaram com o peso ideal e estavam claramente a regular o que ingeriam, por isso para esses gatos provavelmente não vai fazer diferença dar algumas guloseimas. Mas uma pequena percentagem de gatos ficou em excesso de peso e surge com o tempo, a obesidade não aparece de um dia para o outro.
Está relacionado com a raça ou é uma questão genética?
Ainda há algumas dúvidas, mas há suspeitas que pode estar relacionado com diferenças genéticas. Existem teorias que defendem que possa ir além de questões genéticas, nomeadamente com experiências ainda no interior da progenitora, mas são estudos muito complexos, ainda não conseguimos compreender o processo como um todo. No futuro temos de identificar esses indivíduos que estão em risco antes de se tornarem obesos. E educar os donos sobre recompensas responsáveis, não proibir as recompensas, mas fazê-los ter consciência que estão a dar essas guloseimas e encoraja-los a trocá-las por outro tipo de recompensa positiva, como brincar com o animal ou levá-lo a passear. Em termos psicológicos, os donos dos animais acham que a recompensa tem de ser diferente da comida habitual e acham que quanto maior, melhor. Perante uma recompensa pequena e outra grande acham que o animal vai escolher a grande. Mas na perspetiva do cão, o que importa é o ato de receber a recompensa, não se esta é pequena ou grande. Ou seja, temos de ensinar as pessoas que podem dar a mesma comida ao seu animal de estimação, mas em forma de recompensa, guardar um pouco da comida e dar mais tarde. Ou se querem dar uma recompensa diferente, então que partam o biscoito em pedaços pequenos e então ficam com várias recompensas.
Os donos não acham estranho vir a uma clinica especializada em obesidade animal?
Funcionamos há dez anos e sempre tivemos uma lista de espera, optamos por ver um pequeno número de casos, pois cada um leva o seu tempo a resolver. Não queremos resolver milhares de casos, mas sim dar um apoio personalizado a cada caso.
Como escolhem os casos?
Nunca recusamos completamente um paciente que precise de ajuda, pelo que depende da lista de espera e da necessidade de tratamento. Às vezes demora duas ou três semanas até podermos analisar o caso e quando não conseguimos optamos por dar conselhos aos veterinários sobre como lidar com o caso, porque a maioria são casos enviados por veterinários. O que queremos é mudar as atitudes para a vida, uma mudança de comportamento e mudança de estilo de vida. O sucesso surge se as pessoas mudarem os seus hábitos, o que é difícil, tal como é difícil manter esse novo estilo de vida. É difícil porque temos cães e gatos habituados a comer mais do que precisam, e coisas muito palatáveis. De um momento para o outro vamos mudar isso, vamos alimentá-los com menos quantidade de comida.
Isso afeta de alguma forma o comportamento dos animais?
Pode modificar alguma coisa, mas não conseguimos dizer se aquele tipo de comportamento está relacionado com isso, ou se um tipo de comportamento levou ao excesso de peso. Ou seja, se o cão está a exigir demasiada atenção do dono, em vez de o dono dar um biscoito ou mais comida pode levá-lo a dar um passeio, ou usar um comedouro em forma de puzzle, para não comerem tudo de uma vez. Passa por fazer as coisas de forma diferente. Se os animais perceberem que, se forem simpáticos para o dono, vão receber comida esse vai ser um laço muito difícil de quebrar. Temos de dar aos donos estratégias para não ceder à pressão emocional. É por isso que é tão essencial o apoio dos veterinários, para ajudá-los a mudar este tipo de atitudes.
Como funciona o seu plano de exercícios para os animais?
Tentamos moldar o plano de acordo com o indivíduo. Temos de olhar para o dono e para o animal, não posso falar em duas estratégias iguais. Na verdade, muito do sucesso da perda de peso deve-se à dieta, já que o exercício não queima uma grande quantidade de energia. Mesmo se não fizessem nada, na realidade podia ter sucesso ajustando a dieta do animal. Ainda assim, o exercício é positivo porque aumenta os laços entre o dono e o animal. Oque fazemos é olhar para o indivíduo, para o que está a ser feito, e tentamos construir um plano. Se os donos não conseguem fazer caminhadas durante a semana, então podem tentar dar um passeio mais longo ao fim de semana. O que percebemos é que a partir do momento em que os animais começam a perder peso ficam mais alegres, mais ativos, com mais mobilidade, mesmo quando perdem apenas 6% de peso e então encorajamos os donos a fazer mais e mais. Se temos casos com problemas ortopédicos frequentemente recorremos à hidroterapia. Já os gatos podem ser um verdadeiro desafio e o que promovemos é que o dono incuta um pouco de exercício físico. Às vezes pode passar por um ou dois minutos duas vezes por dia. É mínimo, mas é apenas para tentar que os donos comecem a fazer alguma coisa e os gatos exercitam-se de forma diferente. No seu habitat natural são sprinters, não maratonistas quando têm de perseguir as presas, por isso é que um a dois minutos é suficiente. E fazer várias sessões curtas é melhor do que uma única sessão longa, pois aborrecem-se rapidamente. Já os brinquedos têm de ser diferentes, gostam de coisas que se mexam rápido. E é importante que o deixem apanhar o brinquedo porque o que estão a fazer é imitar o comportamento de caçada. Se nunca conseguirem apanhar a ‘presa’ podem ficar frustrados, por isso prefiro não usar o laser, para não ficarem frustrados e desistirem.
Perfil
Ale German é especialista em obesidade em pequenos animais na Universidade de Liverpool e é médico veterinário há mais de 20 anos. Além disso é especialista em medicina interna de pequenos animais pelo European e Royal College of Veterinary Surgeons. Há dez anos deu conta que a obesidade era um dos maiores problemas em animais de estimação e desde então que tem dedicado a sua carreira a melhorar o tratamento da obesidade. Publicou mais de 100 artigos científicos nesta área.
*A jornalista viajou para Liverpool a convite da Royal Canin
Artigo publicado na edição de maio de 2015 da revista VETERINÁRIA ATUAL