É médica patologista de formação. Como surgiu o interesse pelo estudo da Leishmaniose?
Após alguns anos de carreira hospitalar ingressei na docência universitária em 1988 e dediquei-me à investigação na área da parasitologia médica, nomeadamente nas Leishmanioses. Sempre me interessou muito o trabalho de laboratório, gostava de saber o que é que os patologistas viam para além dos clínicos. Só que ao fim de uns anos no laboratório comecei a ficar cansada da rotina, de estar todos os dias a fazer as mesmas análises. Entretanto o diretor do meu Serviço de Patologia Clínica hospitalar, o Prof. Pedro Abranches (que recomeçou o estudo das Leishmanioses em Portugal, no final dos anos 70) estava a terminar o doutoramento, o que contribuiu para o meu interesse pela área e assim comecei a trabalhar com ele no Instituto de Higiene e Medicina Tropical – Universidade Nova de Lisboa. Os protozoários são muito inteligentes e apaixonei-me por estes parasitas. Encontrei uma área da qual gostei muito e que profissionalmente tive muita realização. Estamos ao nível dos melhores grupos de Leishmanioses no mundo.
Como surgiu a oportunidade de presidir ao Observatório Nacional das Leishmanioses (OnLeish) criado em 2008?
Sou co-fundadora do OnLeish, que nasceu de conversas com colegas investigadores e médicos sobre a necessidade de existir uma estrutura que nos ajudasse a comunicar para o exterior (comunidade civil, científica e autoridades competentes) o conhecimento sobre as leishmanioses e assim contribuir para o seu controlo. Surgiu uma oportunidade de ter o apoio da indústria, pois caso contrário não era possível. A “Semana da Leishmaniose” é um projeto que move muitas pessoas e é muito dispendioso fazer um trabalho destes de norte a sul do país. Mas foi muito importante pois tínhamos de ter um estudo a nível nacional, feito com a mesma metodologia, para podermos comparar as várias áreas geográficas do país.
Este cargo ajudou-a a conhecer melhor a doença?
Sem dúvida. Permitiu a todos, comunidade científica e população, dar mais atenção à esta patologia.
Na altura não se dava tanta importância à Leishmaniose. O que mudou desde então?
Verificou-se um aumento do interesse pela parte de novos investigadores e também de algum apoio da indústria. Considero que o grande inquérito nacional promovido pelo OnLeish marcou uma data na prevenção das Leishmanioses em Portugal.
Os rastreios de dois em dois anos continuam a ser feitos?
Infelizmente não. São projetos muito trabalhosos e onerosos, e esta crise económica afeta muito a Investigação e consequentemente a Saúde Pública.
Quais as principais conclusões que retiram destes rastreios? É possível atuar com mais eficácia nas regiões do país onde se registam mais casos da doença?
Estes rastreios ajudaram a sugerir ou comprovar os principais riscos de transmissão de infeção e a determinar as regiões com as mais altas prevalências da infeção e maior risco de transmissão.
Cabe aos veterinários informar as populações para os cuidados a nível de prevenção? Qual o papel do veterinário no combate à Leishmaniose?
Na minha opinião, cabe aos médicos veterinários a informação sobre a patologia e a prevenção aos proprietários dos animais. Por exemplo, informar que nos meses de verão os cães não devem ir à rua à noite. O flebótomo pica durante a noite e no estudo que fizemos viu-se que o maior risco é ser um cão de rua ou um cão de caça, não tanto a raça ou o tamanho do pelo. Um cão que esteja em casa e que só vai à rua durante o dia tem menos probabilidades de ser picado. Há sempre a possibilidade do flebótomo entrar em casa, mas tem de ser em sítios onde haja uma grande densidade de flebótomos para abrir a janela e entrar algum. Eles têm pouca capacidade de voo e não resistem ao vento.
As armas terapêuticas que temos à disposição têm ajudado a controlar a doença?
Verifica-se que cada vez mais os proprietários dos cães fazem tratamento aos seus animais e esta é uma importante medida de controlo
Participou no estudo Fatores de Risco para Leishmaniose canina numa região endémica do Mediterrâneo. Quais as principais conclusões que gostaria de destacar?
Gostaria de destacar três aspetos: as regiões do interior do País têm uma prevalência mais elevada que o litoral, nomeadamente o litoral noroeste, a diminuição da exposição aos vetores diminui a prevalência da infeção e ainda que o uso de repelentes/inseticidas diminui a taxa de infeção.
Dos estudos que foram feitos no passado até este último estudo podemos verificar alguma evolução?
Verificámos que aumentou a prevalência da Leishmaniose e em alguns locais quase que duplicou. Por exemplo, na região de Castelo Branco não esperava ver prevalências de 16%. Em 230 cães estudados encontrar uma percentagem de 16% é um valor muito elevado. Portalegre também é um distrito com alguns casos humanos de Leishmaniose visceral e cutânea, tal como o de Beja. Estes 3 distritos acabaram por ser aqueles onde sei que há mais casos humanos, relativamente aos outros distritos. Anteriormente a maior prevalência registava-se em distritos junto ao rio Douro. Atualmente, vimos um maior número de casos na Beira Baixa e Alentejo. Aparentemente não há explicação. Mas não se fala muito de Leishmaniose humana, fala-se mais da Leishmaniose canina pois as incidências são mais elevadas, mas existem em Portugal, bem como por todo o sul da Europa. A Leishmaniose é uma doença dos pobres e verificámos que quando começámos a melhorar as condições de vida no país também diminuíram o número de casos de Leishmaniose infantil.
Castelo Branco, Portalegre e Beja são então as novas áreas endémicas. Conseguimos perceber porquê?
Existem razões ambientais, climáticas e outras ainda não totalmente esclarecidas. Por exemplo na leishmaniose cutânea, os casos descritos em Castelo Branco estão relacionados com as barragens que existem na região. É preciso um ambiente propício para o vetor e onde houver vetor e cão infetado vai haver transmissão de Leishmaniose. Apesar de se dizer que a Leishmaniose é uma doença dos pobres (nos humanos), já nos cães não conhece pobres nem ricos, no cão não faz distinção. O que o flebótomo quer é animais para se alimentar (sejam cães, galinhas ou outros), certas condições de humidade e calor. Com frio e a chuva desaparecem. Reproduzem-se na primavera-verão e para haver transmissão gostam de dias muito quentes e sem vento, pois não resistem ao vento.
Faz sentido aumentar a informação sobre Leishmaniose à população nestes distritos que referiu?
Sim, faz todo o sentido. Deve ser programado e integrado numa ação pluridisciplinar e ampla.
Face aos estudos efetuados existe um aumento ou uma diminuição da incidência da Leishmaniose em Portugal?
Os resultados sugerem um aumento.
A crise económica pode levar os donos dos animais a descurarem a prevenção. Esta situação preocupa-a?
Muito. As medidas de prevenção, tais como o uso de repelentes, inseticidas ou vacina são dispendiosas. Contudo é possível evitar a exposição do animal às horas de maior atividade flebotomínica durante a época de transmissão, sobretudo nas regiões de elevada prevalência.
A Leishmaniose humana em números
Segundo dados da Organização Mundial de Saúde registam-se:
– Mais de 50 mil mortes por ano provocadas por Leishmaniose visceral
– 2 milhões de novos casos por ano
– Atinge 12 milhões de indivíduos
– Existe em 98 países
– Os casos mais graves de Leishmaniose visceral registam-se na Índia, Bangladesh, Etiópia, Sudão e Brasil
– Os casos mais graves de Leishmaniose cutânea registam-se no Afeganistão, Irão, Síria, Argélia, Etiópia, Sudão, Brasil, Peru, Colômbia e Costa Rica