O conceito, e sobretudo a profissão, ainda são pouco conhecidos na Europa, mas em países como o Canadá, a Austrália ou os Estados Unidos da América (EUA) os veterinary social workers são uma realidade há vários anos.
A VETERINÁRIA ATUAL procurou entender o que são e o que fazem estes profissionais na comunidade veterinária anglo-saxónica falando com quem se dedica a este trabalho que parece juntar a psicologia ao trabalho social no apoio às equipas médico-veterinárias e aos tutores.
O momento em que morre um animal de companhia não deixa ninguém indiferente. Os tutores lidam com a dor de perder um ser que faz parte da família e com quem partilharam momentos felizes e tristes ao longo de anos, às vezes de décadas.
Os médicos veterinários têm de dar a notícia – da morte ou do diagnóstico de doenças terminais – a tutores tantas vezes dilacerados pela dor quando eles próprios estão angustiados pois, em tantos casos, seguiram aquele animal desde que era uma cria, o viram crescer, vacinaram, esterilizaram e trataram nas mais variadas situações, numa relação que acaba, invariavelmente, por se estreitar com o passar do tempo.
Não é fácil para ninguém. E toda a comunidade médico-veterinária – desde os clínicos, aos enfermeiros e assistentes – bem o sabe e tem relatado em vários trabalhos publicados na VETERINÁRIA ATUAL reconhecendo o impacto que o luto, vivido na primeira pessoa e vivido na relação com os tutores, tem na saúde mental da classe. Por exemplo, no encontro Vet Mental Summit, em junho de 2023, a psicóloga Manuela Peixoto apresentou de forma preliminar o estudo “Suicide Risk in Veterinary Professionals in Portugal: Prevalence of Psychological Symptoms, Burnout, and Compassion Fatigue”, publicado meses depois, no qual 20,9% dos profissionais reconheceram já ter passado por uma depressão, 27,7% reconheceu ter sentido fadiga por compaixão e 3,5% admitiu mesmo já ter tentado o suicídio.
Mas, em setembro de 2023, a VETERINÁRIA ATUAL marcou presença na conferência de Angie Arora no 48.º Congresso Mundial da World Small Animal Veterinary Association (WSAVA) e ficou a conhecer o trabalho dos veterinary social workers (VSW). Na palestra, a profissional explicou a uma audiência maioritariamente europeia as funções que estes profissionais desempenham no dia-a-dia dos hospitais veterinários do outro lado Atlântico e como podem ter um papel importante no âmbito da saúde mental das equipas em situações de luto e não só.
  “Os veterinary social workers fazem parte das equipas de clínicas e hospitais e têm como função dar suporte à equipa e aos clientes.”- Augusta O’Reilly, presidente da IAVSW
Agora, em entrevista por escrito à revista, Angie Arora, também investigadora da Seneca College de Toronto, no Canadá, explicou que trabalha “em medicina veterinária enquanto veterinary social worker há quase 20 anos, tendo trabalhado em diversas funções, incluindo a assistência em hospitais veterinários no apoio a clientes na tomada de decisão de fim de vida, no apoio durante e após a perda, ajudando igualmente as equipas [médico-veterinárias] através de coaching individual e de equipa, na educação, trabalhando igualmente na facilitação de trabalho comunitário em grupos de apoio à perda de animais de companhia e também no aconselhamento ao luto em consultório particular”.
Essas foram, até ao momento, as funções que a profissional desempenhou e abarcam, em grande medida, todas as atribuições que um VSW está capacitado para desempenhar, como também explicou Augusta O’Reilly, presidente da International Association of Veterinary Social Work (IAVSW). Afinal, a profissão está de tal forma já estabelecida nos países anglo-saxónicos que existe mesmo uma associação (ver caixa) que representa estes profissionais.
Segundo declarações enviadas por escrito à revista, a dirigente explica que “os veterinary social workers fazem parte das equipas de clínicas e hospitais e têm como função dar suporte à equipa e aos clientes. Para os clientes, os VSW estão disponíveis para fornecer apoio em torno da tomada de decisões durante o tratamento, no luto antecipatório [em doenças terminais] e na perda de animais de companhia. Para as equipas, eles apoiam os vários casos de clientes, marcam presença em consultas de atendimento e de eutanásia, oferecem oportunidades de debriefing [prática reflexiva que permite escrutinar os pressupostos e práticas após uma determinada ação] e dão suporte à saúde mental. Podemos pensar no veterinary social worker como mais um serviço especializado na equipa.
A profissional, que atualmente desempenha funções como VSW no Virginia Tech VA-MD College of Veterinary Medicine e é formadora na Universidade do Tennessee, acrescentou ainda que estes profissionais também podem atuar “como facilitadores na conexão com serviços sociais e organizações de bem-estar animal, compartilhar recursos e fornecer oportunidades educacionais para melhor apoiar o vínculo humano-animal”.
No fundo, estes técnicos – cuja tradução à letra será trabalhadores sociais veterinários – parecem juntar nas suas funções a componente de apoio psicológico a equipas e clientes, no momento do luto e não só, e também a vertente do trabalho social na comunidade, um pouco à semelhança do que os assistentes sociais fazem em Portugal na saúde humana.
Um cão já não é apenas um cão, é família
A importância deste tipo de apoio no mundo veterinário não é apenas explicada pelos números conhecidos sobre a saúde mental de médicos, enfermeiros e auxiliares veterinários. A forma como se tem vindo a transformar o papel do animal no seio das famílias, como estes são, cada vez mais, olhados como parceiros de vida e não apenas como meros cães, gatos ou papagaios, também faz crescer a necessidade de novos serviços neste meio e na sociedade em geral.
E essa maior proximidade com os animais de companhia e a crescente preocupação com o seu bem-estar também é expressa, inevitavelmente, na hora do luto. Isso mesmo está a ser documentado por Miguel Barbosa, professor na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa (UL), que nas XLVII Jornadas Médico-Veterinárias da Faculdade de Medicina Veterinária da UL apresentou os dados de um estudo sobre o luto feito pelos tutores de animais de companhia. Como relatou à VETERINÁRIA ATUAL, os dados preliminares desta investigação são claros sobre a perceção da perda: 54% dos tutores reconheceram que a morte de um animal de companhia foi tão ou mais dolorosa do que a perda de um familiar e 11% admitiu mesmo ter sido a perda mais dolorosa que teve na vida.
“Embora o impacto sistémico da integração dos VSW nas práticas veterinárias seja ainda uma questão empírica, pois não temos investigação revista por pares sobre o assunto até à data, a prática percecionada é que podem ajudar na redução do burnout e do suicídio na comunidade veterinária ao dar resposta às questões de saúde mental.” – Elizabeth Strand, fundadora do Programa de Serviço Social Veterinário, Universidade do Tennessee
Ainda assim, nos inquéritos que realizou, o psicólogo concluiu que este ainda é “um luto desautorizado” e muito estigmatizado pela sociedade que não entende a dor sofrida pelos tutores no momento da morte do animal.
Um relato também ouvido pela VETERINÁRIA ATUAL no trabalho mais recente, publicado na edição de julho/agosto, sobre o serviço gratuito disponibilizado pelo Hospital do Gato. A Linha de Apoio ao Luto nasceu formalmente no fim do período pandémico e funciona como uma linha telefónica, onde uma técnica formada para o apoio emocional em situações de perda acompanha os tutores nestas situações. Quer Maria João Fonseca, diretora clínica do grupo Hospital do Gato, quer Paula Reis, a técnica, também falaram em “luto envergonhado” por parte dos tutores e a médica veterinária acabou por reconhecer como este serviço tira “um peso de cima” das equipas pois sabem que, após a morte do animal de companhia, “as pessoas não vão ficar desamparadas” quando o médico veterinário termina a consulta e segue com a sua agenda, pois terão um acompanhamento personalizado na sua dor.
Ainda assim, em Portugal, a disponibilização de ferramentas de apoio emocional e psicológico a tutores e equipas médico-veterinárias ainda está a dar os primeiros passos, é muitas vezes feita de forma informal e, sobretudo, existe uma clara separação entre o apoio social e o apoio psicológico.
A título de exemplo, a Ordem dos Médicos Veterinários (OMV) criou o Programa de Apoio Emocional ao Médico Veterinário em maio de 2023, disponibilizando aos profissionais sessões de aconselhamento psicológico gratuitas 365 dias por ano. Também a Associação Portuguesa de Médicos Veterinários Especialistas em Animais de Companhia (APMVEAC), disponibiliza na página online uma secção com documentos para promover a saúde mental tanto a nível individual do profissional, como a nível da equipa veterinária.
Já para os tutores, quando se fala em apoios estes são particularmente direcionados para a vertente social, ou seja, para as ações dirigidas a famílias carenciadas económica e socialmente no sentido de ajudar na alimentação do animal de companhia e nos cuidados médicos a preços reduzidos, como é o caso do Programa Cheque Veterinário da OMV ou o Apoio a Famílias da Associação Animalife.
Será um caminho sem retorno?
Questionada sobre como é que o trabalho dos VSW pode ajudar a melhorar os índices de saúde mental na comunidade veterinária, Elizabeth Strand lembra que, apesar do extenso treino que os médicos têm na saúde animal e no relacionamento com clientes, nada os prepara para lidarem com os problemas de saúde mental que decorrem tantas vezes das situações clínicas dos animais. “Não faz parte do seu âmbito de prática”, reforça. E é por isso que, advoga, ter um VSW na equipa evita que o médico veterinário tenha de se estender para lá das suas funções clínicas e preocupar-se com as carências sociais e emocionais do tutor, porque esse será o papel do VSW.
“Estamos à beira de algo transformacional e acredito fortemente que é apenas uma questão de tempo até que o serviço social veterinário não seja apenas compreendido pelas profissões veterinárias em todo o mundo, mas acabará por se tornar parte integrante da forma como os hospitais veterinários funcionam.” – Angie Arora, veterinary social worker
Além disso, recorda, atendendo ao considerável perigo de burnout associado à profissão veterinária, os VSW também podem ser úteis ao ensinarem técnicas que previnam a exaustão laboral não só ao nível individual, mas também ao nível macro, das equipas de grupos de veterinários, trabalhando “iniciativas ou campanhas para a profissão com o objetivo de ajudar a aumentar a consciencialização, diminuir o estigma e criar programas para apoiar o bem-estar dos veterinários em todos os níveis de prática”, explica.
Sobre o impacto já medido desta profissão, ainda considerada recente na comunidade veterinária, Elizabeth Strand diz que “embora o impacto sistémico da integração dos VSW nas práticas veterinárias seja ainda uma questão empírica, pois não temos investigação revista por pares sobre o assunto até à data, a prática percecionada é que os VSW podem ajudar na redução do burnout e do suicídio na comunidade veterinária ao dar resposta às questões de saúde mental dos profissionais veterinários”.
A experiência de Angie Arora também corrobora esta ideia. Segundo explica, a professora de Toronto tem-se dedicado “a trabalhar com profissionais veterinários para os ajudar a compreender como o stress e o trauma se manifestam no seu corpo, levando muitas vezes a comportamentos adaptativos padronizados que vemos frequentemente nesta comunidade, nomeadamente, o entorpecimento, o perfeccionismo, a evitação de conflitos ou o estabelecimento de limites pouco saudáveis, apenas para citar alguns”. Com esse conhecimento, assegura, será possível ao VSW “construir relações de longa duração com os profissionais veterinários para trabalhar esses padrões com novas estratégias de coping” que ajudam os indivíduos a lidar com situações de stress evitando, ou minorando, essas manifestações com implicações positivas ao nível da saúde mental.
Os resultados obtidos, acredita Angie Arora, levarão a que cada vez mais hospitais e clínicas considerem fornecer este tipo de apoio às equipas, não só através de sessões únicas e pontuais, como também com a contratação de VSW, a tempo inteiro ou parcial, “para fornecer coaching, formação e suporte que permita uma melhoria contínua do bem-estar ao longo do tempo”.
Sobre o crescimento da profissão fora do mundo anglo-saxónico, as profissionais estão convencidas que será algo inevitável. Angie Arora admite que “estamos à beira de algo transformacional e acredito fortemente que é apenas uma questão de tempo até que o serviço social veterinário não seja apenas compreendido pelas profissões veterinárias em todo o mundo, mas acabará por se tornar parte integrante da forma como os hospitais veterinários funcionam”. Aos interessados noutras partes do mundo, aconselha acompanharem o trabalho da IAVSW “uma organização que pode fornecer recursos úteis para quem deseja aprender mais”.
A presidente da IAVSW também considera que o mais importante é agir. “Mesmo que não existam VSW, é possível estabelecerem conexões na comunidade para ajudarem as equipas e as famílias que seguem”, frisa Augusta O’Reilly.
A precursora dos VSW lembra que Boris Levinson, conhecido por ter sido pai da terapia assistida por animais nos EUA, dizia que ninguém deveria ser responsável pela saúde mental de uma população, todavia “cada vez mais veterinários estavam a assumir responsabilidades pela saúde mental da população”.
Hoje, é claro para Elizabeth Strand “que os veterinários não devem ser deixados sozinhos para atender à saúde mental dos tutores de animais de companhia”, pois o seu papel único, que deve ser respeitado, dá-lhes acesso à mente e ao coração de um tutor de uma forma que, por vezes, até psicoterapeutas ou médicos têm dificuldade em alcançar. Por isso, advoga, “ao aprender as nuances de trabalhar bem como assistentes sociais no ambiente veterinário, podemos beneficiar do poder do vínculo humano-animal, apoiar a saúde mental dos tutores de animais e proteger o bem-estar e a resiliência da profissão veterinária”.
*Leia o artigo na íntegra na edição 185, de setembro, da VETERINÁRIA ATUAL