O cancro é uma doença transversal a todos os animais.
Embora esta doença seja semelhante na sua biologia entre as várias espécies, existem muitas particularidades relativamente à epidemiologia e terapêutica.
Um exemplo desta particularidade de espécie verifica-se, por exemplo, nos tumores mamários, em que as gatas desenvolvem, na sua grande maioria, carcinomas agressivos, enquanto que nas cadelas a incidência de tumores benignos versus malignos é quase semelhante.
Existem, ainda, diferenças entre espécies relativamente à localização anatómica dos tumores, ao seu comportamento biológico e à resposta à terapêutica.
Um estudo realizado pela GfK Track.2Pets, apresentado em 2015, descreve que em Portugal existem 6,7 milhões de animais, sendo 20% (1,34 milhões) gatos. Não tenho números oficiais, mas arrisco dizer que, nas grandes cidades, o número de gatos é semelhante ou ultrapassa o número de cães.
Num estudo recente, realizado em Portugal, Katia Pinello e colaboradores (2022) descrevem que os gatos têm um risco quatro vezes superior de desenvolver tumores malignos, comparativamente aos cães. E a prática clínica corrobora estes dados, pois o número de gatos que se apresentam à consulta de oncologia é cada vez maior (dados do autor).
Neste contexto, torna-se importante alertar para as particularidades da oncologia na espécie felina para que, não só de adequem os métodos de vigilância epidemiológica e medicina preventiva, como também, se proceda ao planeamento e adaptação da terapêutica resultando, assim, num tratamento mais seguro e eficaz.
Peso, tamanho e dosagem
O tamanho entre raças nos gatos é menos variável que nos cães. Excetuando os Bosques da Noruega, a diferença de tamanho entre indivíduos não é tão significativa como nos cães. Contudo, as variações de peso podem ser importantes, mesmo entre indivíduos da mesma raça.
Uma vez que não existem medicamentos antineoplásicos especificamente aprovados para utilização em gatos, os comprimidos não são produzidos em dosagens adequadas ao seu peso. Em termos de relevância prática, é frequente, no caso dos medicamentos orais, ter que se recorrer à manipulação magistral para a obtenção de comprimidos, cápsulas ou soluções com concentrações adequadas.
Muitos fármacos quimioterápicos são doseados com base na superfície corporal (SC), em metro quadrado (m2), em oposição ao peso corporal. A SC é utilizada em humanos e em pacientes veterinários para medicamentos que têm uma gama terapêutica estreita, uma vez que os múltiplos processos fisiológicos, incluindo a função renal e o metabolismo energético, são proporcionais à área de superfície corporal. Contudo, existem várias limitações na utilização da superfície corporal para calcular as doses terapêuticas, uma vez que este parâmetro não tem em conta as variações individuais no metabolismo, distribuição e excreção de fármacos. Além disso, podem, ainda, existir diferenças pessoais na ligação, absorção, metabolismo e excreção dos fármacos que podem levar a a variações nas concentrações séricas dos medicamentos oncológicos.
Por exemplo, existe alguma evidência da existência de variações específicas de espécie e, mesmo, entre gatos machos e fêmeas da mesma raça em enzimas da família citocromo P450 que condicionam o metabolismo hepático de certos medicamentos e de fármacos lipossolúveis.
Ainda está identificada uma alteração genética presente em todos os animais da Família Felidea que resulta num atraso no processo de glucuronidação hepática e, como tal, a uma acumulação do fármaco e dos seus metabolitos, provocando uma toxicidade mais marcada.
Metabolismo e toxicidade
É importante conhecer a farmacologia das moléculas utilizadas no tratamento oncológico dos gatos e se aqueles não apresentam risco de toxicidade específica de espécie, devido ao seu baixo índice terapêutico. Para alguns fármacos, os gatos apresentam um metabolismo alterado e, consequentemente, toxicidade específica o que pode constituir um desafio para o médico veterinário.
Embora a maioria dos medicamentos usados em cães possa, também ser usada em gatos, os estudos feitos especificamente na espécie felina são, ainda, limitados, sendo necessário cuidado na utilização de medicamentos que têm um baixo índice terapêutico.
Quando recebem terapêutica oncológica, os gatos podem sofrer dos mesmos efeitos secundários que os cães, . Parecem, contudo, ser mais propensos à anorexia e perda de peso. É importante, identificar a presença destes sinais de toxicidade digestiva e medicar em conformidade. Para terapêutica da émese o uso de metoclopramida ou de maropitant é, regra geral, o mais indicados; no caso da anorexia é recomendada a administração de mirtazapina oral ou transcutânea .
A neutropenia parece, também, ser observada com mais frequência em gatos do que em cães.
Embora seja uma preocupação frequente dos tutores, o gatos, tal como os cães, raramente perdem o pêlo. Podem, sim, perder as vibrissas e ficar com um pêlo menos espesso recuperando completamento após o final dos tratamentos.
Na tabela a seguir são apresentados os fármacos utilizados mais frequentemente no tratamento de tumores em gatos, assim como as suas doses e particularidades nesta espécie.
Administração
Os gatos têm, ainda, particularidades comportamentais de espécie que condicionam a administração farmacológica.
Sendo muito sensíveis em termos de ambiente, é aconselhável que o CAMV implemente procedimentos cat-friendly e, se necessário, instruir o tutor relativamente à tranquilização com Gabapentina (100 mg/gato) ou Trazodona (50 mg/gato), cerca de uma hora antes da consulta ou sessão de quimioterapia. Desta forma, o animal estará muito menos ansioso, necessitando de menos contenção e a experiência será menos traumática para o animal, o seu tutor e profissionais de saúde veterinária.
É do senso comum, que os gatos não colaboram muito quando é necessária a administração de medicamentos por via oral. O tamanho e formulação dos medicamentos orais podem ter que ser adaptados para ser mais fácil a sua administração. No caso das preparações magistrais de medicamentos citotóxicos, são preferíveis as formulações sólidas, uma vez que diminuem o risco de contaminação ambiental causada, seja pelas gotículas que se podem libertar devido ao movimento de resistência do gato, seja pela salivação, por vezes, exagerada que os gatos fazem, após administração de líquidos por via oral.
Relativamente à cateterização, é importante a utilização de cateteres de boa qualidade, uma vez que a pele do gato pode ser mais difícil de perfurar do que a do cão e os cateteres podem dobrar.
A desinfeção deve ser realizada com solução antisséptica não alcoólica e a fixação com adesivo de papel, facilmente e rapidamente removível.
Para a tricotomia é aconselhável usar uma tosquiadora que seja silenciosa e de pequenas dimensões.
Após a terapia citotóxica, os fármacos e seus metabolitos, são maioritariamente eliminados por via urinária ou fecal. Para minorar o risco de exposição acidental a estes resíduos biológicos, a liteira deve ser forrada com um saco plástico e conter uma pequena quantidade de areia aglomerante. Esta deve ser eliminada diariamente, fechando o saco plástico e deitando o seu conteúdo no lixo comum ou, se o gato estiver internado, nos recipientes próprios para resíduos citotóxicos. O recipiente deve ser lavado com uma solução de lixívia a 5%.
Quem limpa a liteira, seja o tutor ou pessoal do CAMV, deve usar máscara FFP2 e luvas descartáveis.
Em conclusão, os tratamentos farmacológicos anti-tumorais nos gatos apresentam algumas diferenças relativamente aos cães.
Até à data, não existem moléculas citotóxicas específicas para gatos e as doses administradas têm sido extrapoladas de poucos estudos clínicos ou farmacológicos.
Devido à biologia e comportamento particulares desta espécie, é frequentemente necessário realizar adaptações de doses ou procedimentos, de forma a evitar complicações ou toxicidade desnecessárias.
Referências: disponíveis sob pedido
*Médico veterinário, oncovet@gmail.com
**Artigo de opinião publicado na edição 172 da VETERINÁRIA ATUAL, de junho de 2023.