Miguel Quaresma é médico veterinário e dedica-se há quase 20 anos à investigação da raça asinina do Burro de Miranda. Entre as inúmeras contribuições para o desenvolvimento de estratégias de conservação da raça, destaca-se a sua tese de doutoramento, que permitiu estudar o ciclo reprodutivo das fêmeas e perceber o seu impacto na recuperação.
Corria o ano 2002. A raça do Burro de Miranda acabava de ser reconhecida, depois de um projeto inicial de levantamento da população asinina do Planalto Mirandês. A participação do médico veterinário e investigador, Miguel Quaresma, no projeto de recuperação e valorização do Burro de Miranda começou com um convite por parte do colega Miguel Nóvoa − secretário técnico do Livro Genealógico − que pretendia que este fosse conhecer a raça e Miranda. “Esse convite surgiu da perceção que já havia da necessidade de aumentar o número de nascimentos, para ser possível preservar a raça. Na altura, a minha experiência em reprodução de asininos, e mesmo de equídeos em geral, era quase nula. No entanto, como me dedicava e tinha já alguma experiência em reprodução de bovinos, o Miguel Nóvoa achou que faria sentido a minha colaboração e também sabia da minha paixão pelo mundo rural e pelas raças autóctones”, explica o médico veterinário e investigador, Miguel Quaresma. Logo no primeiro dia apaixonou-se pelo burro, por Miranda e pela ideia de recuperação da raça. De um apoio que se previa pontual, surgiu uma colaboração que já vai quase em 20 anos.
Sobre a raça, o investigador sublinha o seu caracter “corpulento” e “dócil”. “O Burro de Miranda tem andamentos e modos lentos e tem em média cerca de 1,3 m e 300 kg. Apresentam uma pelagem castanha, que não deve ter outras cores, além do branco no focinho e região peri-ocular”, refere, acrescentando que habitualmente “eram utilizados no trabalho agrícola e para proteger as ovelhas de ataques de lobos”. Já Miranda do Douro, pelo seu isolamento geográfico e topografia característica, é uma região que conserva muito do mundo rural mais antigo, o que agrada a Miguel Quaresma, contribuindo para a forte ligação que mantém com a terra.
A grande maioria das suas investigações têm como objeto de estudo os asininos de Miranda, “cerca de 80%”, refere. O investigador que está integrado no Centro de Ciência Animal e Veterinária (CECAV) da UTAD, financiado pela FCT, realça o apoio dos estudantes do Mestrado Integrado em Medicina Veterinária da UTAD, assim como da Associação para o Estudo e Proteção do Gado Asinino (AEPGA) e dos detentores dos Burros de Miranda.
Tese de doutoramento: Implementar estratégias de conservação
“Muitas histórias poderiam ser contadas sobre todo este projeto”, começa por dizer. “As dificuldades em fazer investigação nesta área, os burros em si, a relação dos detentores e dos estudantes com estes animais, as formações em Miranda, os sucessos já conseguidos, os projetos para o futuro… Histórias em que tenho particular orgulho”. E neste quesito realça o processo da recolha de dados para o doutoramento − essencialmente ecografias reprodutivas para acompanhamento da dinâmica ovárica e uterina − que tinha de conciliar com o trabalho clínico diário. “Ao longo de dois anos, fiz 3980 ecografias reprodutivas (86 horas de filmes de ecografias), que começavam às 8h da manhã e terminavam por vezes às 11h da noite, sob chuva, neve e calor, com o trabalho normal de clínica de outros animais pelo meio. Os animais estavam na rua e era lá, num sítio coberto, mas no exterior, que as ecografias eram realizadas. Trabalhei com -10ºC e com 42ºC. Foi uma experiência dura, mas muito enriquecedora, também levada a cabo graças à ajuda de alguns colegas e estudantes”, conta.
A tese de doutoramento pretendia aumentar o nível de conhecimento da demografia e reprodução da população da raça do Burro de Miranda, fornecendo suporte científico à implementação de estratégias de conservação e maneio. “Estes objetivos foram alcançados através de uma aproximação multidisciplinar. Para a análise e caracterização demográficas, analisaram-se o Livro Genealógico e de Nascimentos, complementando a informação obtida com um inquérito realizado aos proprietários dos animais”, refere Miguel Quaresma. No sentido de prever a progressão da raça sob as atuais condições de maneio e de identificar as variáveis vitais à sua sobrevivência, o investigador utilizou “um programa informático de análise de viabilidade de população, que mostrou que a raça está atualmente em risco de extinção”. Os registos genealógicos e dos criadores foram igualmente analisados para identificar fatores humanos e genéticos que pudessem vir a afetar a diversidade genética da raça.
O principal fator limitante para a sobrevivência da raça, sublinha o médico veterinário, está relacionado com a “percentagem anual de fêmeas em reprodução, estando esta percentagem dependente da população existente”. Outros fatores importantes passam pela “redução da mortalidade das fêmeas, idade ao primeiro parto, registo no Livro Genealógico e rastreabilidade dos animais”. Miguel Quaresma revela que “a taxa de mortalidade dos burrancos no primeiro mês de vida foi de 8,92%, mais baixa nas fêmeas (6,51%) que nos machos (12%)”. A mortalidade neonatal esteve distribuída de forma não uniforme ao longo do ano, sendo igualmente menor “em fêmeas com idades ao parto compreendidas entre os 5 e 15 anos (8,06%), em comparação com as fêmeas de idade inferior a 4 anos ou superior a 16 anos (10,3% e 14,1%, respetivamente)”, refere. Por outro lado, os principais fatores de risco para o aumento da consanguinidade foram “as baixas taxas de reprodução, o reduzido número de machos e a sua desigual contribuição para a genética populacional, a contribuição desigual dos diferentes criadores para a genética da população e a idade avançada dos proprietários”, explica.
  O principal fator limitante para a sobrevivência da raça está relacionado com a “percentagem anual de fêmeas em reprodução, estando esta percentagem dependente da população existente”
Foco no ciclo reprodutivo
No que concerne à atividade reprodutiva das fêmeas, um grupo foi seguido durante as estações reprodutiva e não-reprodutiva, por ecografia e medições da progesterona sérica durante dois anos. “Foram regularmente monitorizadas as variações na condição corporal para estimar os seus eventuais efeitos na atividade ovárica, com um estudo comparativo de diferentes métodos de avaliação da condição corporal”, explica Miguel Quaresma, que também refere quais foram os métodos utilizados: “Observação visual com palpação e por mensuração da espessura da gordura subcutânea e da profundidade dos tecidos subcutâneos da parede torácica, com recurso à ecografia”. Encontrou uma correlação significativa entre a condição corporal e todas as medições ecográficas. “As medições ecográficas de profundidade dos tecidos subcutâneos têm uma relação logarítmica com a avaliação da condição corporal tradicional. A ecografia combinada com a análise de imagem permite uma medição fidedigna da profundidade dos tecidos e gordura subcutâneos para a monitorização das reservas de gordura nas burras”.
Na estação reprodutiva, refere, “o intervalo interovulatório foi de 23,8 ± 0,551 dias; o diestro e o estro apresentaram uma duração de 17,9 ± 0,462 e 6,65 ± 0,298 dias, respetivamente. Durante este período a duração dos intervalos interovulatórios foi influenciada pela idade e condição corporal”. Esta última influenciou ainda a duração do diestro e o tempo em cio após ovulação. “A incidência de ovulações simples, duplas ou triplas foi de 57,6%, 36,4% e 6,06%, respetivamente. As ovulações múltiplas aumentaram a duração do intervalo entre o início do estro e a última ovulação do ciclo, mas não interferiram com a duração das outras fases do ciclo”, garante. Quando combinada com a idade, a condição corporal mais elevada afetou igualmente a taxa de ovulação. “A divergência do folículo dominante ocorreu cerca 8,7 antes da ovulação, independentemente da taxa de ovulação. O folículo dominante era maior à divergência em ovulações simples do que em ovulações múltiplas (19,2 ± 0,968 mm vs. 18,2 ± 1,16 mm). De igual modo, o tamanho folicular máximo antes da ovulação era maior nas ovulações múltiplas que nas simples (40,2 ± 1,41 mm vs. 37,2 ± 0,825 mm). A taxa de crescimento dos folículos dominantes foi independente da taxa de ovulação, tanto no período antes do cio como após o seu início”, explica o investigador.
Para o estudo dos padrões reprodutivos na estação não-reprodutiva, as fêmeas foram seguidas de setembro a maio. Miguel Quaresma verificou que “75% (9/12) destas fêmeas apresentaram alterações do padrão normal de atividade ovárica durante este período. A perda da ciclicidade normal apresentou-se como anestro (41,7%), estro silencioso com ovulação (25%) ou persistência do corpo lúteo (8,3%). Somente 25% (3/12) das fêmeas mantiveram ciclicidade regular”. Este estudo revelou ainda que a interrupção dos ciclos ováricos pode ser desencadeada se a condição corporal descer abaixo de um determinado limiar entre o equinócio do outono e o solstício de inverno, “sugerindo que a condição corporal modula as influências sazonais da ciclicidade ovárica em burras”.
Resultados: “Ainda há muito espaço para melhoramento”
As principais conclusões têm a ver essencialmente com duas vertentes distintas, por um lado a análise demográfica e, por outro, o estudo dos ciclos reprodutivos na fêmea. Na primeira, revela o autor da investigação, “foi a descoberta − por uma análise objetiva de viabilidade populacional − de que a raça do Burro de Miranda está em real perigo de extinção nos próximos 50 anos”. Para evitá-lo, “há que aumentar o número de nascimentos, com o aumento do número de fêmeas postas à reprodução − sendo-o em idades mais precoces −, diminuir a mortalidade neonatal e garantir a rastreabilidade dos animais da raça”. Contudo, para que isto aconteça, é preciso ter “novas utilizações do Burro de Miranda e novos proprietários, mais jovens”, ressalva Miguel Quaresma. Por outro lado, em termos de biologia reprodutiva, o estudo compreendeu, entre outras coisas, “a ciclicidade anual e a importância de diagnósticos de gestação precoces para evitar as perigosas gestações gemelares, comuns nesta raça devido à elevada percentagem de ovulações duplas e mesmo triplas. Também entendemos o ciclo éstrico, o que nos permite agora uma melhor escolha do momento ideal para a cobrição ou inseminação”.
De uma forma geral, nas áreas que não da reprodução, o estudo percecionou que há ainda muito espaço para melhoramento. “Os animais devem manter uma condição corporal mais equilibrada. Encontrámos uma percentagem demasiado grande de animais obesos, o que pode causar sérios problemas. Devem ainda generalizar-se os cuidados de saúde preventiva, como desparasitações, vacinações, aparo de cascos e tratamentos dentários. Também alguns problemas comportamentais encontrados podem estar relacionados com a solidão de alguns animais, ou mesmo maneiras menos bem conseguidas de lidar com os animais”, adianta.
“Os animais devem manter uma condição corporal mais equilibrada. Encontrámos uma percentagem demasiado grande de animais obesos, o que pode causar sérios problemas. Devem ainda generalizar-se os cuidados de saúde preventiva, como desparasitações, vacinações, aparo de cascos e tratamentos dentários. Também alguns problemas comportamentais encontrados podem estar relacionados com a solidão de alguns animais”
Recuperar, proteger e conservar
As raças autóctones são uma herança cultural importante na manutenção da identidade geográfica dos territórios de onde são originárias. Marcam esses territórios e dão-lhes um carácter único. Para Miguel Quaresma essa marca cultural não será suficiente para a sua manutenção e eventual crescimento. “Há que manter a sua utilidade prática e, se necessário, criar novas aplicações das suas características tão próprias, sejam elas a mansidão e resistência no caso do Burro de Miranda, ou as características únicas da carne mirandesa, no caso das vacas Mirandesas, por exemplo.” O investigador salienta ainda a importância das raças autóctones na medicina veterinária e realça que devia ser dada uma maior atenção no ensino das suas características, vantagens e cuidados de saúde, na formação dos médicos veterinários. “Há que ultrapassar os complexos de inferioridade que ainda se associam a estas raças, com um potencial tão grande de criação, de riqueza e identidade.”
“Há que ultrapassar os complexos de inferioridade que ainda se associam a estas raças, com um potencial tão grande de criação, de riqueza e identidade”
A tese de doutoramento terminou em 2015 e a VETERINÁRIA ATUAL quis saber em que ponto se encontra a investigação sobre o Burro de Miranda. “Ideias e projetos não faltam”, avança Miguel Quaresma, reforçando que as dificuldades são inerentes e ultrapassam-se à custa de muito sacrifício pessoal. “Nos últimos anos, focamo-nos nos processos de envelhecimento uterino e na perca de fertilidade a ele associada, ao mesmo tempo que temos estudado o macho e as possibilidades de avaliar e maximizar a sua fertilidade. Também temos feito alguns estudos sobre a gestação e as ondas foliculares ao longo do ciclo éstrico”, revela.
Além dos projetos de estudo da reprodução do Burro de Miranda, Miguel Quaresma tem-se dedicado também ao bem-estar e cuidados desta raça e da espécie asinina em geral. “Para tal, temos estudado o comportamento e a saúde, principalmente a nível da condição corporal e dos cuidados dos cascos e dentes, juntamente com outros colegas”, explica. Mas será que esta área interessa à maioria dos investigadores? “Muitos demonstram interesse, embora não a maioria. Têm noção que será difícil fazer carreira só nessas áreas, mas tanto a reprodução como as raças autóctones são alvo de interesse por muitos estudantes e temos tido diversas dissertações finais de curso nesta área. E alguns doutoramentos. Também existem vários colegas já em atividade profissional que, tendo a sua principal atividade profissional com os equinos, dão apoio aos cuidados de saúde dos burros, com grande entusiasmo”, conclui.
O percurso do investigador
Médico veterinário desde 2001, Miguel Quaresma exerce no Hospital Veterinário da UTAD (HVUTAD) com funções na atividade clínica e cirúrgica na Área Hospitalar de Animais de Produção e Equinos. Dá apoio ao ensino e à investigação nas áreas relacionadas. É ainda professor auxiliar convidado do Mestrado Integrado de Medicina Veterinária da UTAD, nas unidades curriculares de Medicina da Reprodução.
É membro eleito da Assembleia Geral da Ordem dos Médicos Veterinários, desde 2016, pelo círculo eleitoral da Região Norte. É Presidente da Assembleia Geral da AEPGA desde 2011. Em 2017, começou a residência alternativa do European College of Animal Reproduction − sob a orientação do Prof. Dr. Francesco Camillo, da Universidade de Pisa, em Itália − com vista à obtenção do grau de Especialista em Reprodução Animal, subespecialidade de Reprodução em Equinos. Também em 2017, tornou-se presidente da direção da Associação Portuguesa de Buiatria.
Assume ainda o cargo de editor da Revista Portuguesa de Buiatria, é Membro do Grupo de Trabalho sobre Demografia e Empregabilidade da Ordem dos Médicos Veterinários e Membro do Grupo Consultivo – Animais de Produção da Ordem dos Médicos Veterinários.
Novas funções para o Burro de Miranda
O principal fator que pode levar à extinção do Burro de Miranda, explica Miguel Quaresma, é a sua não utilização pelas pessoas. “As utilizações tradicionais, como o trabalho no campo, estão a perder-se, e é necessário encontrar novas funções. Felizmente, estas têm crescido e trazem esperança na recuperação. São elas a utilização como animal de companhia, no agroturismo, na terapia assistida e na produção de leite.”
Os detentores dos asininos também assumem um forte impacto na manutenção e recuperação da raça. “São eles que encontram utilizações para o Burro de Miranda e que garantem o nascimento de animais suficientes”. Embora, de uma forma geral, os proprietários de Burros de Miranda estejam envelhecidos, “é cada vez mais comum surgirem novos criadores, mais jovens e com mais animais, que dão alguma esperança para a conservação da raça”, nota Miguel Quaresma, acrescentando que “sem eles, não será possível às Associações ou ao Estado garantir uma população com a dimensão suficiente para impedir a sua extinção”.
*Artigo publicado originalmente na edição n.º 149 da revista VETERINÁRIA ATUAL, de maio de 2021.