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Enfermeiros veterinários portugueses pelo mundo

“Fui a primeira enfermeira veterinária a receber a bolsa Teach the Teachers da WSAVA”

Sandra Félix, enfermeira veterinária no Hospital Tierklinik Hofheim, Alemanha. Foi a 1ª enfermeira a receber a bolsa “Teach the Teachers”.

Sandra Félix, enfermeira veterinária no Hospital Tierklinik Hofheim, Alemanha

O que a levou a escolher a área da Enfermagem Veterinária?

Um pouco por aquilo que nos leva a todos a escolher esta área, a paixão pelos animais e a vontade de ajudar seres que nos dão tanto, sempre sem esperar algo em troca. Inicialmente, pensei que a medicina veterinária seria o meu futuro e ponderei mudar de curso, mas aos poucos apaixonei-me pelo curso de Enfermagem Veterinária e, posteriormente, pela profissão, e atualmente não me vejo a fazer outra coisa.

Dentro da enfermagem veterinária qual é a sua área de especialidade (ou de interesse)?
 

A minha área de interesse é a enfermagem de emergência e cuidados intensivos, tendo completado com sucesso (e distinção, no primeiro de três exames), em 2019, o meu Certificate in Veterinary Nursing in Emergency and Critical Care (CertVNECC), da Vets Now, na Escócia.

Fale-me um pouco do seu percurso profissional cá em Portugal.

Em Portugal, realizei um estágio profissional de um ano numa pequena clínica de pequenos animais em Évora, de dezembro de 2009 a novembro de 2010, onde aprendi os “básicos” da profissão. Em 2011, apercebi-me que queria exercer em meio hospitalar e candidatei-me a uma vaga no Hospital Escolar da Faculdade de Medicina Veterinária de Lisboa, local onde exerci a minha profissão até 2016, tendo sido uma experiência fantástica e muito gratificante pelo contacto diário com uma grande equipa de médicos veterinários e colegas enfermeiros excelentes, com professores, com alunos e estagiários que me fizeram crescer como profissional. Esta experiência de cerca de 5 anos fez-me também perceber que, como enfermeira veterinária, não posso parar de aprender todos os dias para poder prestar o melhor dos cuidados aos meus pacientes e para transmitir o melhor conhecimento aos colegas médicos, enfermeiros e estagiários. Percebi também que aprendemos muito com a nossa equipa.

Como é que chegou à Alemanha?
 

Cheguei à Alemanha através do incentivo de uma colega enfermeira veterinária, do meu ano de curso, e que também trabalhou comigo no Hospital Escolar da Faculdade de Medicina Veterinária durante 4 anos – a Irina Knorr. A Irina já trabalhava há um ano no hospital onde trabalhamos ambas atualmente, e sabia que eu estava à procura de uma oportunidade para crescer profissionalmente. Enviei o meu CV, fiz uma entrevista telefónica em inglês com um dos diretores clínicos, fui convidada a visitar o hospital e envolver-me no seu dia-a-dia durante uma semana e, após essa visita, fui convidada a ficar. Comecei a aprender alemão em Portugal, logo após confirmar a minha ida. Neste momento, e desde junho de 2016, trabalho nesse mesmo Hospital, Tierklinik Hofheim, o maior hospital privado de referência da Alemanha, na cidade de Hofheim am Taunus, perto de Frankfurt.

Como é que é um dia de trabalho normal para si?

Eu trabalho exclusivamente com pacientes internados e espero, no futuro, trabalhar única e exclusivamente com pacientes que requerem cuidados intensivos.

 

O meu dia normal de trabalho começa às 7h da manhã (se estiver no turno da manhã) no internamento com a passagem dos casos do enfermeiro da noite. Depois, seguem-se todos os cuidados relativos aos animais internados (medicações, tratamentos, exames de diagnóstico, alimentação, entre outros), começando sempre com os pacientes que são considerados mais críticos. Temos sempre em média 20 a 40 pacientes internados.

Por volta das 9h da manhã, chegam os médicos (após a passagem de casos do clínico da noite, para os clínicos do dia) para fazer os exames clínicos aos seus pacientes, determinar qual o plano de cuidados para cada internado, e ainda determinar altas médicas. Normalmente, o final de um turno de 8h normal acaba para nós enfermeiros com mais uma ronda de medicações, tratamentos, alimentações, passeios (no caso dos cães) e ainda a entrega dos animais que têm alta aos seus tutores. No turno da tarde, também de 8h e que se prolonga até à meia-noite, à exceção do auxílio ao médico veterinário nos exames físicos e da maioria das altas clínicas (que é dada ao início da tarde), as funções são em tudo iguais às do turno da manhã, com rondas de medicações e tratamentos, a cada 4h, sensivelmente. O turno da noite, fica a cargo de uma equipa exclusiva, à parte da equipa do internamento.

 

Os enfermeiros do internamento são ainda responsáveis por tarefas como, por exemplo, colheita de sangue e colocação de catéteres venosos, colocação de catéteres urinários, colocação de sondas naso-esofágicas, cálculo de planos de alimentação, monitorização de transfusões sanguíneas, avaliação da dor através do uso de escalas para esse efeito e ainda pela orientação da aprendizagem dos colegas estudantes e a integração de novos colegas, entre outras.

Como é que foi a adaptação a um trabalho fora de Portugal?

Inicialmente, e muito por conta da língua, foi bastante difícil, até porque nem todos os colegas falavam inglês. Após os primeiros 3 ou 4 meses foi ficando cada vez mais fácil, fui começando a comunicar exclusivamente em alemão no meu local de trabalho e aprendendo a língua em simultâneo com o trabalho, numa escola da região.  A partir daí, tudo se torna mais fácil. Quanto ao desempenho das funções que um enfermeiro veterinário desempenha em meio hospitalar, aqui ou em Portugal, são em tudo semelhantes e, por isso, a esse nível, não houve grandes dificuldades. Uma das grandes dificuldades são as saudades da família e dos amigos, mas que aprendemos a minimizar durante os nossos períodos de férias.

Em que ponto se encontra a enfermagem veterinária na Alemanha, sente diferenças em relação a Portugal?

Na Alemanha, não existem enfermeiros veterinários. O equivalente são técnicos (Tiermedizinische Fachangestellte), que fazem uma formação profissional de 2 a 3 anos, dividida entre uma escola profissional e um hospital ou clínica da sua escolha.

Nós enfermeiros veterinários somos, portanto, “unicórnios”, pois temos uma formação a nível teórico em muito superior à formação alemã, por possuirmos um curso superior e somos, por isso, muito valorizados.

À parte da formação académica e do conhecimento teórico, os técnicos alemães são no desempenho das suas funções práticas em tudo semelhantes a nós. Pelas conversas que tenho com a maioria dos colegas alemães, sinto que há necessidade em tornar o curso profissional em licenciatura, tal como existe em Portugal, pois há muitas lacunas, como já referi, na aprendizagem teórica.

De que forma é que a enfermagem e a medicina veterinária se complementam?

Na minha opinião, e tal como na medicina humana, a medicina e a enfermagem veterinária não vivem uma sem a outra, e será essa (espero) a tendência no futuro. Acho que os médicos veterinários aprenderam com a presença dos enfermeiros algo muito importante: delegar tarefas. Nós enfermeiros existimos não só para cuidar dos nossos pacientes, mas também para permitir que o médico veterinário delegue a execução de certas tarefas que, podem e devem ser desempenhadas por nós e que, se não forem desempenhadas por nós, podem roubar-lhes tempo precioso e diminuir o tempo dedicado, por exemplo, ao diagnóstico, função exclusiva do médico veterinário.

Quais são os seus planos para o futuro?

Se tudo correr bem 2021 será um ano diferente, com um projeto profissional novo, mais ligado ao meio académico, e que pode trazer benefícios extraordinários ao mundo da enfermagem veterinária em português. Recentemente recebi a bolsa “Teach the Teachers” do Global Pain Council da WSAVA, um projeto que visa a criação de líderes e profissionais especializados em maneio da dor entre os enfermeiros veterinários e médicos veterinários do mundo inteiro (há uma bolsa para médicos e outra para enfermeiros). Fui a 1ª enfermeira veterinária a recebê-la. O destinatário da bolsa irá aprender com especialistas veterinários em dor nos EUA, Canadá, Japão ou Suíça e depois, nos 6 meses seguintes, compromete-se a passar o seu conhecimento de forma gratuita ao maior número de colegas (neste caso, enfermeiros veterinários) no seu país. Devido à pandemia, ainda não tenho informação de quando irei iniciar esta experiência, estou à espera de mais informação.

A longo prazo, espero continuar a focar-me na minha área de interesse e a poder ter um papel mais ativo na formação e acompanhamento no terreno de novos enfermeiros veterinários. Para além disso, espero continuar a dedicar-me com a minha colega Ana Sêco ao nosso projeto conjunto, o podcast Vet Nurse FM.

Como é que tem vivido a situação da pandemia e como é que isso afeta o seu trabalho?

Neste momento, a Alemanha tem números bastante elevados no que diz respeito a novos casos diários de covid-19 e estamos novamente em lockdown rigoroso (escolas, creches, comércio não essencial fechados) até dia 10 de janeiro.

Desde o início da pandemia, o meu local de trabalho adotou medidas de prevenção bastante restritas e adaptou-se de modo a que conseguíssemos continuar a desempenhar o nosso trabalho sem interrupções e sem comprometer a nossa saúde e a dos tutores que nos visitam.

Apesar da pandemia, o volume de trabalho aumentou exponencialmente este ano, talvez pelo facto de os tutores terem mais tempo disponível para os seus animais e estarem por isso mais atentos a problemas relacionados com a sua saúde. Este aumento exponencial de volume de trabalho, representou obviamente uma grande sobrecarga a nível físico e emocional, que julgo ser transversal à nossa profissão em todo o mundo. Mas resta-nos confiar nas nossas equipas e tratarmos bem de cada um de nós, para podermos continuar a prestar o melhor dos cuidados aos nossos pacientes.

Que conselhos daria aos recém-licenciados em enfermagem veterinária que estão a ter dificuldades em ingressar no mercado de trabalho em Portugal?

Não desistam de exercer a profissão, se é aquilo que os move e que os faz sair da cama todos os dias. Se não for em Portugal, haverá outro lugar qualquer no mundo onde vocês podem fazer aquilo que mais gostam. Não se subestimem, acreditem em vocês e nunca deixem de aprender e de querer tornar-se melhores.

Como é que avalia o estado atual da enfermagem veterinária?

Penso que a enfermagem veterinária ainda tem um longo caminho a percorrer.

Ainda falta sermos reconhecidos no meio e na sociedade em geral e que nos deem oportunidade de apostar em formação nas nossas áreas de interesse, para sermos uma mais valia nos locais onde trabalhamos. Além disso, falta por vezes alguma união entre a classe profissional. Se não formos unidos e se não nos apoiarmos nunca conseguiremos que a profissão evolua e que os outros nos reconheçam.

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