Maria Joana Dias é a primeira diplomada pelo European College of Veterinary Internal Medicine – Companion Animals (ECVIM-CA) a fazer a formação a partir de Portugal. O anúncio foi feito nas redes sociais da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa (FMV-UL) e do Hospital Escolar da instituição, onde decorreu o primeiro programa de residência em Medicina Interna de Animais de Companhia do País. A VETERINÁRIA ATUAL entrevistou a nova especialista e o orientador da formação, Rodolfo Oliveira Leal, sobre a experiência que foi uma das primeiras portas abertas para a realização de formação certificada pelos colégios europeus em território nacional.
Em janeiro de 2020 começava, em termos práticos, a jornada formativa de Maria Joana Dias que duraria até dezembro de 2023 e lhe permitiu obter a especialização certificada pelo European College of Veterinary Internal Medicine – Companion Animals (ECVIM-CA). Em março deste ano, com a realização do conjunto final de exames exigido pelo colégio que integra o European Board of Veterinary Specialisation (EBVS), tornou-se na primeira médica veterinária a obter o diploma de especialização europeia por este colégio a partir da formação realizada numa residência em Portugal.
A VETERINÁRIA ATUAL falou com a recém-especialista poucas semanas depois de obter o grau de especialista europeia. Tinha ainda bem presente os meses anteriores que teve de passar a estudar para o general exam final, lembrou “a dedicação e o esforço grande” que foram necessários para ultrapassar este derradeiro passo e, assim, obter o almejado grau europeu. “Não vou dizer que é um período bonito, porque não é. É preciso mesmo muito esforço e muita resiliência, se calhar são as palavras que encontro para melhor descrever [todo o processo de estudo]”, reconhece, hoje já a sorrir de satisfação, na entrevista.
Esta avaliação no final da residência tem uma parte teórica, que inclui um exame escrito que dura quatro horas, exatamente o mesmo tempo que dura a segunda parte dessa avaliação, com um exame de escolha múltipla. Decorre, depois, a avaliação prática, que consiste na interpretação de exames complementares de diagnóstico (raio-X, citologias, etc.) e também na discussão de três casos clínicos. A taxa de sucesso dos formandos nos exames finais do EBVS situa-se entre os 50% e os 60% e marca o fim de um percurso, no caso da Medicina Interna de Animais de Companhia, de quatro anos que foram de estudo contínuo, como lembra Maria Joana Dias: “Não é só para o exame final, toda a residência em si é de estudo constante. Ao longo dos anos, temos de ir submetendo trabalhos, fazendo apresentações, é todo um trabalho que é preciso fazer para ser aceite no exame final. Tudo isto dá muito trabalho, que tem ainda de ser conciliado com o dia-a-dia laboral normal”. E o caminho de Maria Joana Dias foi concluído com sucesso – o que faz, então, da médica veterinária a primeira a completar o programa de residência europeia em Medicina Interna de Animais de Companhia na FMV-UL – e agora a profissional junta-se aos cerca de 50 diplomados europeus portugueses que, segundo o site do EBVS, já estão a exercer em Portugal.
  “Não é só para o exame final, toda a residência em si é de estudo constante. Ao longo dos anos, temos de ir submetendo trabalhos, fazendo apresentações, é todo um trabalho que é preciso fazer para ser aceite no exame final. Tudo isto dá muito trabalho, que tem ainda de ser conciliado com o dia-a-dia laboral normal.” – Maria Joana Dias, especialista europeia em Medicina Interna de Animais de Companhia
Portugal entrou, finalmente, na lista de países com formação pelo EBVS
A obtenção do título de especialista europeia em Medicina Interna por Maria Joana Dias é mais um passo importante na caminhada da especialização na medicina veterinária nacional, sobretudo porque retira Portugal da lista de nações na Europa “que não conseguiam ter a formação de especialidade no país”, lembrou Rodolfo Oliveira Leal. Por esse motivo, o especialista europeu também pelo ECVIM-CA – e professor na FMV-UL que foi o orientador de Maria Joana Dias – teve, tal como aconteceu com os outros médicos veterinários que decidiram diplomar-se pelos colégios europeus de especialidade, fazer o percurso mais comum para quem desejava graduar-se: emigrar durante a formação, no seu caso para Paris.
Portugal iniciou há apenas cinco anos o caminho para os médicos veterinários nacionais passarem a poder fazer a formação especializada no País com a abertura das primeiras residências nacionais (ver caixa), muito em virtude do regresso de alguns dos diplomados que fizeram a formação no estrangeiro e estão a trabalhar nas faculdades de medicina veterinária nacionais. Rodolfo Oliveira Leal lembra que, para iniciar a residência de Medicina Interna na FMV-UL, foi necessário passar pelo exigente crivo do ECVIM-CA, num processo exigente que se inicia com a submissão do projeto – com o plano de formação, o local, ou locais, por onde a discente vai passar – até se obter a aprovação final da entidade europeia, que chegou no final de 2019.
Depois de ter a luz verde para avançar na prática, o coordenador reconhece que a realização da residência na prática “foi um desafio de parte a parte”. “Em primeiro lugar, porque a Joana era a minha primeira residente, porque o programa era todo recente e, depois, porque tivemos de ir gerindo os problemas à medida que estes iam surgindo”, recorda. Tudo era novo tanto para o formador, pela primeira vez neste papel, como para a formanda, com os desafios inerentes a uma formação tão exigente, mas também para a FMV-UL, que teve de enquadrar um novo modelo formativo na vida quotidiana laboral da instituição, por exemplo, atribuindo tempo off-clinic para a médica veterinária estudar.
Ainda assim, apesar de reconhecer que “não há nenhuma residência perfeita no mundo e nesta fomos melhorando a cada descoberta, quer do meu lado, enquanto supervisor, quer do lado da Joana, enquanto residente”, o coordenador da formação mostra-se satisfeito e faz um balanço positivo: “No final, valeu a pena”.
Ter contribuído para colocar Portugal na lista de países onde é possível fazer formação certificada pelos colégios europeus de especialidade em medicina veterinária é, aos olhos de Rodolfo Oliveira Leal, “muito bom e gratificante. Vemos que já temos colegas de outras áreas [de especialidade] que voltaram e estamos a crescer [no número de especialistas europeus em Portugal]. Mas, de facto, é muito gratificante porque fomos o primeiro programa [de residência europeia] de Medicina Interna que se estabeleceu em Portugal e acabámos [a formação] com sucesso, o que é sempre muito bom”.
Apesar de existir uma base orientadora da formação por parte do colégio europeu, foi necessário fazer algumas adaptações na residência portuguesa tendo em conta, por exemplo, a inexistência de especialistas europeus em Portugal em algumas das áreas em que Maria Joana Dias precisava fazer rotação formativa. A título de exemplo, por cá fez a rotação em cirurgia no Porto, com o especialista europeu Carlos Adrega, mas foi ir ao Reino Unido fazer rotações nas áreas da Neurologia, Oncologia, Cardiologia e Imagiologia.
Olhando para trás, a médica veterinária considera que esses momentos de contacto com outras realidades para além do que conhece em Portugal foram bastante enriquecedores. É certo que não ter tido a necessidade de emigrar, como acontece com outros profissionais em formação pelos colégios europeus, lhe deu a estabilidade emocional de estar em casa, perto de família e amigos e no ambiente laboral que conhece, mas durante os estágios no estrangeiro, que podiam durar cerca de um mês, teve a oportunidade de contactar com colegas de outros países na mesma situação formativa e vivenciar ambientes em que as residências estão estabelecidas há mais tempo. Maria Joana Dias reconhece ter sido “muito bom ver como os hospitais de topo no Reino Unido funcionam, ver como é que os colegas abordam os seus casos, como é que funcionam os serviços [de Medicina interna]” e até admite que “também foi muito bom para mim ver que o nosso serviço de Medicina Interna [na FMV-UL] trabalha de forma muito similar aos serviços de Medicina Interna lá fora”. Claro que existem diferenças, nomeadamente no campo dos recursos financeiros, logísticos e até de recursos humanos, mas, assegura a agora especialista europeia, “o trabalho que o Rodolfo e eu desenvolvemos aqui é muito similar à forma como se faz [Medicina Interna] no estrangeiro”. Esta experiência fê-la perceber que, apesar do conforto e da mais-valia de ter permanecido em Portugal, seja qual for o modelo de residência, será sempre benéfico ter algumas rotações em diferentes países, para enriquecer a experiência, o conhecimento académico e também para tomar contacto com as diferentes realidades da medicina veterinária.
“É muito gratificante porque fomos o primeiro programa [de residência europeia] de Medicina Interna que se estabeleceu em Portugal e acabámos [a formação] com sucesso, o que é sempre muito bom.” – Rodolfo Oliveira Leal. especialista europeu em Medicina Interna de Animais de Companhia e professor na FMV-UL
Todavia, foram precisamente essas rotações no estrangeiro que levantaram um dos principais desafios desta primeira residência nacional em Medicina Interna: o financiamento. A formação saiu, em grande medida, do bolso de Maria Joana Dias, um encargo que não é despiciente, mas que a médica veterinária encara de forma pragmática: “Há pessoas que dizem valer sempre a pena investir na educação e eu tenho também essa filosofia. Acho que a educação é sempre algo em que vale a pena investir, portanto, não sinto, de todo, que tenha sido dinheiro perdido. Mesmo imaginando que não conseguiria passar no exame final e não conseguia obter o título de especialista, mesmo assim teria valido a pena todas as oportunidades que tive, todos esses estágios feitos lá fora. Tudo isso foi um enriquecimento, um investimento que fiz na minha educação, e acho que foi uma mais-valia”.
Medicina Interna: um olhar para o animal no seu todo
Foi quando começou a trabalhar no Hospital Escolar da FMV-UL que Maria Joana Dias passou a olhar para a especialização em medicina veterinária com mais atenção. Num primeiro momento, a área da Cirurgia era a que colhia a preferência da jovem, mas, com a prática clínica, rapidamente percebeu que “a Medicina Interna era a área que mais me estimulava”. Isto porque a especialidade engloba várias disciplinas do conhecimento médico veterinário, não se centrando apenas num órgão ou sistema dos animais de companhia, como ocorre, por exemplo, na Cardiologia ou na Neurologia. “Nós, olhamos para o animal como um todo e procuramos interligar as diferentes disciplinas com o objetivo de ajudar o animal em causa da melhor forma possível”, acrescentou a médica veterinária.
Escolhida a área de interesse, antes de fazer a residência na especialidade, Maria Joana Dias fez o internato na área, também sob a orientação de Rodolfo de Oliveira Leal, para, então, ver se desejava iniciar o percurso da formação europeia, com toda a exigência que está associada a esta opção. Não só pelo gosto da especialização, mas também pela características individuais, que crê serem muito comuns a quem procura a especialização pelos colégios EBVS – gostar muito do estudo, dedicação exaustiva aos casos clínicos, interesse pelo detalhe no diagnóstico e acompanhamento – decidiu trabalhar para obter o título europeu, o que acabou por incluir “anos e anos de um investimento pessoal”, pois acredita que, efetivamente, a formação pelos colégios europeus de especialidade “é a melhor forma que a pessoa tem para aprender sobre determinada disciplina”.
O que ambos os especialistas ouvidos pela VETERINÁRIA ATUAL frisaram em conjunto é que todos os profissionais têm lugar na medicina veterinária, sejam os chamados médicos generalistas ou os especialistas europeus. “A especialização pelos colégios europeus faz parte da evolução da profissão veterinária, mas acho que não devemos descurar o papel dos médicos veterinários generalistas que são preponderantes, sobretudo na ação mais profilática. A especialização vai complementar a nossa oferta para uma melhor abordagem individual dos casos, mas tem de partir sempre de um trabalho em conjunto com os médicos veterinários generalistas”, explica Rodolfo Oliveira Leal.
Questionado sobre o papel dos especialistas europeus nacionais no processo que a Ordem dos Médicos Veterinários (OMV), em particular o bastonário Pedro Fabrica, já encetou para debater a criação dos colégios de especialidade no seio do órgão regulador da profissão, Rodolfo Oliveira Leal considera que se está “a misturar um pouco os conceitos, porque uma coisa é a especialidade obtida através dos colégios europeus, outra são os títulos da Ordem nacional”. Na perspetiva do médico veterinário, a OMV poderá legitimar de forma oficial “pessoas reconhecidas em determinada área, porque elas existem, mas isso na tem nada a ver com os standards do colégio europeu e com as especialidades europeias”, argumenta, lembrando que na formação estipulada pelo EBVS estão em causa anos dedicados a uma residência certificada a nível internacional e a passagem em exames internacionais de alto standard até à obtenção do título europeu.
Residências em Portugal são aposta crescente
Seja por exigência do mercado – com tutores cada vez mais apostados em prestar os melhores cuidados aos animais de companhia e produtores preocupados com o equilíbrio entre o bem-estar animal e o aumento de produção – ou por vontade de valorização pessoal, a opção pela especialização europeia com selo dos colégios do EBVS tem vindo a aumentar entre os médicos veterinários portugueses.
E se até há poucos anos essa opção exigia, como aconteceu com Rodolfo Oliveira Leal, que o formando passasse uns anos – entre três e cinco, dependendo da especialidade – fora do País, hoje já começam a surgir opções de residência em território nacional.
O primeiro anúncio foi feito em 2019, precisamente, o da abertura da residência em Medicina Interna de Animais de Companhia na FMV-UL que formou Maria Joana Dias e que, através de uma parceria com o grupo IVC Evidensia, tem agora outra residente em formação.
Em 2021, a FMV-UL deu início à residência alternativa em Bem-Estar Animal, cujo programa, aprovado pelo European College of Animal Welfare and Behavioural Medicine (ECAWBM), está a ser coordenado por Manuel Sant’Ana, investigador do Laboratório de Comportamento e Bem-Estar Animal do CIISA e especialista europeu em Bem-Estar Animal, com a co-orientação de Martin Whiting, vice-presidente do Conselho Disciplinar do Royal Colege of Veterinary Surgeons (RCVS) no Reino Unido.
No ano seguinte, a FMV-UL anunciou a aprovação do primeiro programa de residência da especialidade de Cirurgia Veterinária pelo European College of Veterinary Surgeons (ECVS), que é orientado em conjunto por Luís Lamas e Niklas Drumm, numa parceria entre a faculdade e um dos hospitais veterinários mais bem equipados da Alemanha. Também em 2022, a FMV-UL foi reconhecida como approved training centre pelo European College of Bovine Health Management (ECBHM) e noticiou que estaria para breve a abertura da candidatura para uma primeira residência, cuja a supervisão estará a cargo dos dois especialistas europeus da casa no âmbito da saúde bovina, George Stilwell e Ricardo Bexiga.
Mais recentemente, a instituição universitária de Lisboa noticiou a abertura de vaga para a frequência da residência na área da patologia veterinária, aprovada pelo European College of Veterinary Pathologists (ECVP), a iniciar em maio deste ano.
A norte, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, a especialista europeia em microbiologia veterinária Patrícia Poeta, coordena desde 2021 a residência da especialidade com a chancela do European College of Veterinary Microbiology (ECVM).