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Médicos Veterinários

Cuidados paliativos na medicina veterinária: O estado da arte de cuidar

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Portugal não está muito atrás de outros países desenvolvidos nesta matéria, de acordo com os entrevistados pela VETERINÁRIA ATUAL, mas os papéis entre os vários profissionais de saúde, as boas práticas e comunicação têm de ser claros, bem-ensinados e estruturados.

Nos últimos anos, a opinião pública em relação ao bem-estar e direitos dos animais mudou e o que acontece no final de vida dos animais faz parte desta mudança. De acordo com dados incluídos nas orientações internacionais da International Association for Animal Hospice and Palliative Care, uma associação que se dedica a apoiar animais com doenças crónicas e seus cuidadores, 30% dos tutores sentem o luto pela perda do companheiro e 50% duvidam ter tomado a decisão certa quando têm de lidar com a decisão de aplicar a eutanásia ao seu animal.

 

O bom desempenho e a comunicação sem juízos pelos médicos veterinários que prestam cuidados paliativos é um serviço essencial, e a opinião de um tutor acerca da medicina veterinária dada durante este processo pode ser criticamente influenciada por esta experiência.

Mas como está Portugal neste tópico? Felisbina Queiroga, professora associada com agregação da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) e membro da Assembleia-Geral da Ordem dos Médicos Veterinários, explica que a área existe em Portugal para animais de companhia “ao nível do que se observa em outros países desenvolvidos”, com profissionais “muito bem preparados” e que são “uma classe que procura sempre atualizar-se”.

 

Quando pensa no que já se passa noutros países, mas não em Portugal, a investigadora destaca a radioterapia. “Seria muito útil podermos contar com essa arma terapêutica, principalmente para tratamento de tumores intracranianos e outros tipos de tumores não operáveis.”

Por seu lado, Joaquim Henriques, médico veterinário e diretor clínico do OneVet – Hospital Veterinário de Berna, em Lisboa, explica que “o termo cuidado paliativo para animais abrange uma grande realidade”, presente no tratamento de várias doenças, “inclusive mentais, como a demência, e todas as outras doenças crónicas como a insuficiência renal, cardíaca”.

 

Em Portugal, o também investigador na área de oncologia, salienta que já se fazem “muitos cuidados paliativos, ao tratar doentes crónicos com doenças não curáveis”, mas que, ao contrário de nações como os Estados Unidos, Portugal ainda não tem instituições dedicadas exclusivamente a estes cuidados.

João Ribeiro, médico veterinário que trabalha na área da neurologia e diretor clínico da Referência Veterinária, ressalva que na realidade veterinária “temos também situações clínicas que não recebem o diagnóstico e/ou tratamento mais recomendado por decisão/incapacidade dos detentores, o que deixa o médico limitado nas opções terapêuticas”.

 

No caso deste profissional, que se dedica em exclusivo à prática de cuidados neurológicos, em que muitas vezes situações paliativas acontecem, são prestados elementos importantes dos cuidados paliativos, como o maneio da dor e ajudas físicas, em várias doenças. Tomando como exemplo os casos de hérnia discal, o cuidado disponibilizado é paliativo, para uma melhor qualidade de vida “apesar do problema, mais uma vez com maneio da dor, edema (em casos de compressão crónica) e modalidades físicas adjuvantes, para manutenção da mobilidade possível e alguma competência vesical/fecal”, explica. “Algumas doenças neurológicas podem melhorar espontaneamente, sendo o tratamento paliativo utilizado para minimizar sofrimento ou complicações enquanto se aguardam as melhoras.”

Nos fatores socioeconómicos, Felisbina Queiroga assinala que “um dos aspetos que tem tendência a crescer no nosso País são os seguros de saúde de reembolso para os animais de companhia”. E explica diferentes realidades: “Em outros países essa prática está muito difundida e com isso ultrapassa-se a limitação de fazer alguns tipos de tratamento por dificuldades financeiras por parte dos tutores. Nos cuidados paliativos isso é particularmente importante, pois, idealmente, estes animais são tratados em ambulatório e por longos períodos. Portanto, quanto mais sucesso tivermos no tratamento, mais tempo vive o animal e mais tempo dura o tratamento, o que pode implicar custos monetários elevados”, nota.

“Por norma são animais com esperanças médias de vida curtas e temos de preparar o tutor para a perda. Não é fácil, mas devemos procurar sempre ser verdadeiros e empáticos”, Felisbina Queiroga, investigadora e professora na UTAD

Quanto à legislação, a professora e investigadora assinala que os médicos veterinários são profissionais de saúde. “Seria muito importante que o IVA dos atos clínicos de médicos veterinários fosse reduzido para 6%”, defende. Um fator que não descura é a importância da opinião pública nesta matéria: “Quem faz as leis e tem possibilidade de as mudar são os políticos e os políticos são eleitos com os votos dos cidadãos. Uma sociedade informada é uma sociedade com maior poder de intervenção. A Ordem dos Médicos Veterinários, como o apoio de associações, como a Associação Portuguesa dos Médicos Veterinários Especialistas em Animais de Companhia, tem realizado diligências no sentido da alteração do IVA para 6%, como referi anteriormente. Esperemos que haja vontade política para isso.”

Já na vertente da investigação, defende que “vai haver sempre necessidade de investigação na área dos cuidados paliativos”. Até, porque, frisa, são necessárias novas alternativas. “Vou aqui abordar o campo da oncologia. Precisamos de novos tratamentos. Para isso necessitamos de realizar investigação que identifique novos alvos moleculares com potencial de alvos terapêuticos. Para isso precisamos de apoio financeiro. O financiamento é sempre o fator limitante dos investigadores. Aqui deixo um desafio às empresas.” Aos profissionais, deixa o comentário de que “devem procurar fazer parte das associações científicas do setor e aproveitar todas as opções de formação e atualização que puderem realizar”.

Na perspetiva de João Ribeiro, os detentores de animais em Portugal continuam a ter dificuldades em pagar alguns tratamentos. “Continuamos a ter algumas diferenças na capacidade dos clientes para custear determinados níveis de cuidados paliativos e esta é uma limitação, que tem vindo a ser minimizada nos últimos anos, tanto na aquisição de equipamentos pelos CAMV como no nível de preparação dos profissionais, mas ainda é difícil atrair os mais qualificados para o nosso mercado.”

O investigador Joaquim Henriques explica que o obstáculo para a criação de uma estrutura mais organizada em Portugal é que “há uma diluição muito grande, o que dificulta a situação de referência, e o facto de que muitos cuidados são primários”. Quanto aos seguros, é da opinião de que estes ainda não cobrem volumes que se justifiquem. “Acredito que isto tire em poucos meses o plafond”, destaca. Além disso, aponta, a educação para os cuidados paliativos ainda precisa de ser melhorada. “Ainda há a perceção de que implicam sofrimento e morte, o que não tem de ser verdade.”

O médico veterinário Joaquim Henriques explica que “o termo cuidado paliativo para animais abrange uma grande realidade”, presente no tratamento de várias doenças, “inclusive mentais, como a demência, e todas as outras doenças crónicas como a insuficiência renal, cardíaca”

O que o médico veterinário defende é a criação de um plano que envolva o tutor e cujo acompanhamento seja feito “até mesmo depois da morte [do animal]”. Referindo-se aos casos em que pode haver uma situação de luto por um animal, Joaquim Henriques aponta a impreparação: “Eu diria que mais do que uma sociedade que não está preparada, a sensibilização para a veterinária não está feita.”

O diretor clínico refere também que a medicina veterinária pode ter como referência a humana e evoluir a partir daí. “Conhecemos os cuidados paliativos humanos. Eu gostaria que Portugal, na veterinária, não se precipitasse. Primeiro, é preciso regulamentar a profissão e criar estruturas, com pessoas diferenciadas. Aquilo que já fazemos são projetos beta”, analisa.

Como proceder, de acordo com as orientações internacionais

A International Association for Animal Hospice and Palliative Care considera que o final de vida é o quarto estado da existência de um paciente animal. Para identificar a necessidade de cuidados paliativos, os critérios são a existência de doença terminal, degenerativa, crónica, ou não diagnosticada, geriátrica e terminal.

Há cinco categorias que podem ser aplicadas na tomada de decisão: a primeira é que a doença limita a vida do paciente, a segunda é a decisão de não continuar o diagnóstico ou tratamento para a cura do animal. A terceira é o insucesso do tratamento curativo. A quarta é a confirmação de sinais de que a doença é crónica ou interfere com a rotina e qualidade de vida. A quinta é a confirmação de que a doença progrediu com complicações para o bem-estar.

Se o paciente preenche os critérios, os profissionais de saúde devem educar o tutor sobre a doença, para que este possa lidar com o tratamento da melhor forma. É aqui que entra uma das competências mais importantes para o bom desempenho deste papel.

“Continuamos a ter algumas diferenças na capacidade dos clientes para custear determinados níveis de cuidados paliativos e esta é uma limitação” – João Ribeiro, médico veterinário

A comunicação com o tutor

Para Felisbina Queiroga, esta é “fundamental” quando se trata de um animal que está a receber cuidados paliativos. “Por norma são animais com esperanças médias de vida curtas e temos de preparar o tutor para a perda. Não é fácil, mas devemos procurar sempre ser verdadeiros e empáticos.”

A investigadora e professora defende que é preciso compreender o vínculo entre tutor e paciente, as expetativas e os aspetos clínicos da doença de cada caso, para se ser capaz de incutir confiança. “Cada vez mais temos tutores muito bem informados, mesmo quando não são da área da saúde. Temos de mostrar confiança nas opções que apresentamos e essas opções têm de estar muito bem fundamentadas cientificamente.”

O médico veterinário deve dar uma explicação sobre a trajetória da doença com diagnóstico e opções, intervenções para o conforto e um prognóstico realista. O dono do animal deve entender todos estes fatores, e as decisões só devem ser tomadas depois de o demonstrar. Também devem ser consideradas as necessidades, crenças e objetivos dos familiares.

Sobre este tema, Joaquim Henriques recorda: “Quando dei aulas na universidade, as capacidades de comunicação eram uma disciplina, que é extremamente importante. Os cuidados paliativos são uma medicina de comunicação e afeto, da ciência baseada na evidência também. No contacto com os estagiários, percebo que não é uma área muito desenvolvida.”

A melhor altura para preparar este tratamento com o tutor pode não ser quando se dá o diagnóstico e prognóstico. Dependendo da relação afetiva entre o paciente e cliente, este poderá ou não ter uma resposta emocional. Os profissionais de saúde devem por isso considerar uma próxima consulta para discutir opções.

O tratamento deve ser personalizado, apresentado com detalhe e sem recursos a terminologia científica. As implicações logísticas devem ser também explicadas. E deve ficar tudo escrito no registo médico.

João Ribeiro defende também que “a medicina paliativa é um instrumento complementar, não um substituto”. E explica: “Prescrever tratamento ‘paliativo’ sem um esforço competente para obter um diagnóstico é errado, pode privar um paciente de tratamentos mais adequados do que o quadro neurológico aparenta e pode ser perigoso. A abordagem clínica e os tratamentos são diferentes e os de uns podem agravar os outros.”

A conversa

De acordo com a International Association for Animal Hospice and Palliative Care e a sua publicação End of Life Toolkit, é razoável que o profissional de saúde se oriente e prepare para a conversa a ter com o tutor seguindo as cinco fases do luto (negação, acordo, fúria, tristeza e aceitação). Se não se sentem preparados, os profissionais devem pedir e receber formação, pois vão ser educadores, apoiantes, facilitadores e referências quanto aos recursos e passos a seguir. Devem respeitar limites, dar expetativas realistas, respeitar sentimentos, comunicar aberta e honestamente, manter a confidencialidade e dar apoios. No discurso, devem ainda evitar frases cliché.

Estar lá para o cuidador

Implementar cuidados em casa quando possível é outro fator importante. O profissional de saúde deve instruir o tutor nas técnicas necessárias. O ambiente caseiro do paciente deve ser também avaliado. O enriquecimento e as adaptações podem incluir modificações ou melhorias de acessos. Os tutores devem por isso ser orientados em como apoiar fisicamente os pacientes. O uso de ferramentas em vídeo pode ser uma boa opção.

Geralmente, o tutor tem mais questões ou hesitações quando assume o papel de cuidador. Responder com sucesso a esta fase pode fazer a diferença.

As vertentes a ter em atenção devem ser o controlo da dor, a gestão dos sinais clínicos, a higiene, nutrição, mobilidade, segurança, conforto e no ambiente. O bem-estar social é o contacto com a família, o evitar do isolamento, interação apropriada com outros animais, estímulos mentais, e no bem-estar emocional, há o preservar da dignidade, redução do stresse, preservar o lugar do animal no grupo e manter a vontade de viver.

Os problemas que podem surgir são as deslocações da clínica a casa, as responsabilidades, as modificações no ambiente, a segurança e higiene dos tutores. Por isso, há que verificar periodicamente o sucesso dos cuidados.

A decisão da eutanásia deve ser feita com o tutor e a equipa deve fazer um contacto no seguimento da prática. Pode ser um cartão, um telefonema, ou mesmo a indicação de um apoio psicológico.

O veterinário também deve explicar de forma clara o que vai acontecer ao corpo do animal, com abertura para perguntas. Outras medidas podem incluir passos para honrar a memória do paciente. Pode sugerir doar os pertences, um serviço religioso, dar um item in memoriam (uma pegada em gesso, por exemplo), escrever uma carta, plantar uma árvore, emoldurar uma fotografia, ou para quem tem posses, criar uma peça de joalharia a partir das cinzas.

O impacto no profissional pode ser pesado. Um efeito secundário muito mencionado é a dessensibilização, a que podemos chamar de “fadiga de compaixão”, por isso os colaboradores devem saber lidar com os sintomas. O profissional deve aceitar e verbalizar as emoções, ter ajuda terapêutica, e treinar técnicas para lidar com os sintomas no trabalho.

Os diferentes papéis

Médicos veterinários – desenvolver os protocolos médicos e educativos para o pessoal, orientar a formação para os técnicos e tutores. Desenvolver um plano de cuidados à medida dos pacientes e o plano de comunicação para os tutores. Vigiar o cuidado do paciente.

Auxiliares – Implementar protocolos médicos e educativos para os profissionais de saúde. Criar a rede de profissionais de saúde para apoiar os mesmos e os tutores do paciente, como psicólogos, padres, voluntários. Faz as marcações dos cuidados paliativos e trabalha com os veterinários na gestão de tratamento. Estar atento aos sinais de cansaço do próprio, dos profissionais e tutores.

Técnicos – Dar apoios a pacientes a tutores. Participar e/ou liderar visitas às casas dos doentes, ajudar nas mudanças do ambiente para o paciente, gerir os sinais clínicos na casa sob a supervisão do médico veterinário. Cuidar dos banhos, escovagens, e dos estímulos dos pacientes. Dar a folga ao tutor nos cuidados ao paciente. Supervisionar e gerir os materiais para o tratamento.

Pessoal administrativo – Marcar os cuidados do tratamento em termos de horário. Alertar os profissionais para uma marcação de eutanásia. Criar um ambiente de compaixão para o tutor e paciente à chegada ao centro de medicina veterinária. Garantir toda a comunicação depois da conclusão do tratamento.

 

A evolução dos cuidados paliativos no Ocidente

De acordo com a revisão de literatura realizada pela investigadora e médica veterinária norte-americana Katherine Goldberg, fundadora da clínica Whole Animal — Veterinary Geriatrics & Palliative Care Services, as referências académicas aos cuidados paliativos veterinários começaram no início dos anos 2000, em 2003, com um programa da Universidade do Colorado, instituição que se tornou referência no tema. Neste estudo, o autor Dickinson sublinhou a importância de maior instrução nesta área para os estudantes.

O ensino em cuidados paliativos expandiu-se, depois de estudos anteriores terem exposto a falta de formação na área e a preocupação que esta provocava nos profissionais: muitos não se sentiam confiantes perante a aplicação da eutanásia e o contacto com os donos dos animais em casos terminais. Dickinson chama a atenção para um aspeto relevante — falar do assunto durante a formação médico-veterinária não equivale por si só a formação.

Quando questionada sobre o ensino de cuidados paliativos veterinários em Portugal, Felisbina Queiroga sublinha que o assunto não é ignorado. “Como exemplo posso adiantar que nas unidades curriculares que leciono (Medicina Interna e Geriatria e Oncologia), os alunos aprendem a importância de saber avaliar a qualidade de vida dos pacientes e a importância de os tratar, quer com fins curativos como paliativos”.

Já a enfermagem veterinária tem alguma literatura, com a conclusão de que os enfermeiros desempenham um papel fulcral, mas sub-representado. Joaquim Henriques considera que “são pessoas fantásticas que têm o seu papel”. Quanto à organização do papel de cada profissional de saúde, reconhece que há a necessidade de regulamentação.

Fora da revisão de pares, assinala Katherine Goldberg, há cartas, notícias, comentários, carreiras e conferências que acentuam a importância e a defesa da integração da área.

*Artigo publicado originalmente na edição de setembro de 2020 da VETERINÁRIA ATUAL.

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