O tema das colónias de gatos esteve em destaque no encontro organizado pela Egas Moniz School of Health & Science, sobre a abordagem de “Uma Só Saúde”. Representam um perigo? Como diminuir os riscos para as populações felinas e humanas? Podem ajudar a melhorar o ambiente? As médicas veterinárias Inês Cunha Machado e Inês Oliveira procuraram responder a estas perguntas.
Como se deve olhar para as colónias de gatos numa perspetiva de “Uma Só Saúde”?
Esta foi a pergunta chapéu que guiou as conferências de Inês Cunha Machado e de Inês Oliveira no encontro Egas Moniz Scientific Days organizado pela Egas Moniz School of Health & Science nas instalações da universidade, de 25 a 29 de novembro, em Almada.
A pertinência da pergunta ficou patente na intervenção de Inês Cunha Machado, responsável pelo departamento de doenças infeciosas no Grupo Hospital do Gato, que começou por lembrar como a saúde humana, a saúde animal e a saúde ambiental estão ligadas neste conceito de “Uma Só Saúde” e “as colónias de gatos são o perfeito exemplo desse princípio, pois podemos ter colónias de gatos que estão em zonas urbanas, têm contactos com humanos, mas continuam a manter o contacto com a vida selvagem”.
Nesse sentido, é comum que nas zonas urbanas esses animais fiquem expostos a agentes que predominantemente afetam os humanos. Assim como as pessoas, os animais correm o risco de serem expostos aos vários agentes da vida selvagem devido ao contacto com estes felinos. “Por isso, consideramos que temos riscos zoonóticos diretos e indiretos e os gatos destas colónias podem ser reservatórios de algumas doenças infeciosas para os humanos e para a vida selvagem”, explicou a médica veterinária.
“Quando não conseguimos controlar a população das colónias, podemos ter uma taxa elevada de animais doentes, por exemplo animais positivos para retrovírus, e esses animais imunocomprometidos podem disseminar doenças infeciosas, não só a outros gatos, mesmo com tutor, mas também a populações mais fragilizadas imunologicamente nos humanos, como os idosos, as crianças ou as mulheres grávidas.” – Inês Cunha Machado, Grupo Hospital do Gato
O nível de risco a que ambas as populações – felinos e humanos – estão sujeitas está diretamente relacionado com a densidade populacional das colónias. Se estas possuírem um elevado número de indivíduos, “mais elevado será o risco de disseminação de algumas doenças causadas, por exemplo, por agentes respiratórios, que são muito mais comuns quando temos sobrepopulação” nestas colónias. Afinal, acrescentou Inês Cunha Machado, “quando não conseguimos controlar a população das colónias, podemos ter uma taxa elevada de animais doentes, por exemplo, animais positivos para retrovírus, e esses animais imunocomprometidos podem disseminar doenças infeciosas, não só a outros gatos, mesmo com tutor, mas também a populações mais fragilizadas imunologicamente nos humanos, como os idosos, as crianças ou as mulheres grávidas” devido à interação que estes podem manter com esses animais. E não se pense que tal pode acontecer apenas com interações muito próximas que resultem em dentadas, arranhadelas ou contacto com os fluidos dos animais, também pode acontecer através do vestuário ou do calçado.
Onde espreita o perigo?
Segundo explicou à assistência, composta maioritariamente por alunos do mestrado de Medicina Veterinária da Egas Moniz School of Health & Science, são vários os agentes que causam preocupação à médica veterinária que se dedica às doenças infeciosas nos felinos.
No grupo das bactérias, Inês Cunha Machado começou por nomear a bartonella henselae, responsável pela doença da arranhadura nos felinos que, segundo os estudos, tem uma prevalência de 8,53% na Europa. Podendo ser transmissível a humanos por contacto com as feridas dos felinos, é fundamental que quem tem contacto direto com animais de rua higienize muito bem as mãos e qualquer ferida que possa ter exposta nesse momento de interação.
Outro agente que preocupa a médica veterinária é a pasteurela multocida, usualmente presente no sistema respiratório e nas feridas dos felinos. A estratégia para evitar a transmissão a humanos passa também por evitar o contacto com feridas infetadas e abcessos nos quais se observem ruturas e proceder à correta higienização das mãos após qualquer contacto com animais de colónias.
A salmonella, o agente responsável por gastroenterites tanto em felinos, como em humanos, também apresenta um risco considerável de transmissibilidade e as medidas de prevenção passam, mais uma vez, pela aposta na correta e frequente higienização das mãos.
No grupo dos parasitas, a oradora nomeou dois mais problemáticos: o toxocara cati, particularmente comum em colónias, e o giardia spp. Ambos representam um risco considerável para a saúde de pessoas imunocomprometidas e das crianças.
Ainda no campo dos parasitas, Inês Cunha Machado tocou num ponto que ainda apresenta alguns mitos entre a população. O parasita toxoplasma gondii tem particular má fama, sobretudo entre as mulheres que pensam engravidar ou estão grávidas, mas “como a maioria dos veterinários sabe, o contacto direto com gatos comporta um risco muito, muito baixo [para os humanos]”. O contágio acontece, sobretudo, através da alimentação, todavia, recordou, “também sabemos que os gatos são necessários para que o ciclo do parasita ocorra e os gatos que vivem em colónias desempenam um papel importante na manutenção dos oocistos infetados no ecossistema e podem desempenhar um papel importante a infetar outros animais, como roedores, por exemplo”.
Sobre os vírus, Inês Cunha Machado lembrou que os felinos não são um grupo considerado de risco para a infeção por influenza. Ainda assim, de facto podem ser afetados por este vírus causador de doença respiratória se tiverem por atividade caçar e comer pássaros, o que pode ser um comportamento dos gatos que formam as colónias.
O cenário já é diferente relativamente à infeção por SARS-CoV-2, que esteve na base da recente pandemia Covid-19. Efetivamente, a via de transmissão mais comum deste agente até é de humanos para gatos, sendo que a via de transmissão inversa, ou seja, de gatos para pessoas, é mais limitada. Ainda assim, Inês Cunha Machado considera que “é muito importante a monitorização das colónias para aspetos de vigilância [de saúde pública] porque podemos, potencialmente, descobrir algum surto de doença respiratória [antes de afetar os humanos] e podemos aproveitar os programas CED [Capturar-Esterilizar-Devolver] para diagnosticar estes agentes respiratórios”.
Aliás, os programas CED são, na perspetiva da médica veterinária, uma ferramenta fundamental na estratégia de “Uma Só Saúde”, pois através destes programas poderá ser possível “controlar o número de indivíduos das colónias e podemos aproveitar essa oportunidade para fazer a monitorização de saúde, a vacinação e a desparasitação” dos animais contribuindo assim para diminuir os riscos de transmissão de agentes infeciosos entre os animais e dos animais para os humanos.
“O nosso objetivo principal é reduzir o número de gatos na rua, promover adoções dos gatos sociáveis, melhorar a saúde e o bem-estar dos que permanecem na rua e diminuir o número de ninhadas que ficam doentes e morrem.” – Inês Oliveira, CRO de Almada
Como implementar um programa CED
Foi precisamente para falar dos programas CED que Inês Oliveira esteve presente no encontro. Segundo a médica veterinária, que trabalha no Centro de Recolha Oficial (CRO) de Almada, existem, neste momento, mais de 600 colónias de gatos identificadas no concelho e o serviço camarário, em conjunto com clínicas parceiras, realiza por ano mais de mil cirurgias de esterilização por ano e promove cerca de 360 adoções. “O nosso objetivo principal é reduzir o número de gatos na rua, promover adoções dos gatos sociáveis, melhorar a saúde e o bem-estar dos que permanecem na rua e diminuir o número de ninhadas que ficam doentes e morrem”, frisou a oradora.
A implementação de um programa CED pode ser a estratégia indicada para alcançar esses desígnios, mas apresenta um longo caminho a percorrer com alguns desafios pelo percurso.
A ideia dos programas CED é ter voluntários que acompanham as colónias, limpam os locais por onde os animais transitam, mantendo o espaço livre de restos de comida, monitorizando os elementos que pertencem ao grupo e vigiando a entrada de novos elementos.
Uma das características das colónias continua a ser a sobre população, já que os animais têm “um ciclo reprodutivo frequente, têm muitas ninhadas por ano e, se não for controlada, a colónia pode crescer muito rapidamente”. Ainda assim, apesar da elevada taxa de reprodução, as colónias têm igualmente uma taxa de mortalidade bastante alta e, concomitantemente, uma reduzida esperança média de vida por animal, pois estes “têm uma fraca condição física, devido à pouca quantidade de comida e à fraca qualidade da alimentação, estão mais expostos a infeções e ao desenvolvimento de tumores e, não raras vezes, estão envolvidos em acidentes”, elaborou a oradora.
Outro ponto que Inês Oliveira nomeou foi o impacto ambiental e social das colónias, sobretudo durante a época de reprodução pelas vocalizações, mas também, por exemplo, por haver animais que vão remexer no lixo dos caixotes.
Um programa CED – já adotado por várias autarquias, incluindo a de Almada – implica ir capturando os animais das colónias, esterilizar e aproveitar essa ida ao CRO ou à clínica parceira para vacinar, desparasitar o animal, colocar o microchip e realizar procedimentos médicos básicos – algumas cirurgias, amputações – para melhorar a saúde do animal. Depois é realizado um corte na orelha esquerda, para sinalizar que é um animal esterilizado, e este é devolvido à mesma colónia de felinos de onde foi recolhido para impedir que outros felinos ocupem esse espaço e garantir o equilíbrio dessa colónia.
Em todo este processo, referiu Inês Oliveira, “as associações de proteção animal e os voluntários têm um papel importante, pois são eles que fazem a captura, cuidam na recuperação do animal e fazem a devolução à colónia. Além disso, identificam animais que podem ir para adoção e os que estão doentes e precisam de tratamento médico”.
Em todo este caminho, os benefícios observados pela implementação destes programas são muitos e para todas as partes que englobam o conceito “Uma Só Saúde”: felinos, humanos e ambiente. Os programas CED conseguem diminuir os nascimentos de animais nas colónias e, pelos cuidados médico-veterinários prestados, reduzir o risco de transmissão de doenças tanto entre animais, como dos animais aos humanos que com eles contactam. “Observamos uma melhoria na saúde dos animais e a redução da transmissão de doenças porque identificamos e tratamos os animais que estão doentes antes de regressarem [à colónia], impedindo, assim, a transmissibilidade de doenças”, explicou a médica veterinária, que acrescentou: “Ao realizar a desparasitação reduzimos o desconforto dos animais e vamos prevenir as doenças secundárias, como a anemia e os problemas digestivos e ao esterilizarmos reduzimos o risco de doenças reprodutivas, como infeções ou tumores, e diminuímos os comportamentos agressivos”.
O ambiente também recolhe benefícios deste tipo de programas, pela redução de agentes infeciosos em circulação e também pela diminuição do ruído durante a época de reprodução.
Inês Oliveira enalteceu ainda o trabalho que os programas CED possibilitam na educação da população para a adoção consciente. As ações de formação e esclarecimento realizadas pelo CRO de Almada, sobretudo junto dos mais novos, sublinham sempre a importância da tomada de decisão consciente, a responsabilidade que implica ter um animal e os custos associados a uma relação que pode durar anos ou mesmo décadas, no caso dos felinos. Desta forma, a médica veterinária está convencida de que será possível “reduzir o abandono futuro”, concluiu.