A Lei que, em 2014, criminalizou os maus-tratos a animais está a ser apreciada no Tribunal Constitucional quanto à constitucionalidade. Rute Oliveira Serôdio, advogada na PRA-Raposo, Sá Miranda & Associados, explica em entrevista à VETERINÁRIA ATUAL, o que está em causa neste processo e deixa um apelo: independentemente da posição do Tribunal Constitucional, os maus-tratos a animais devem continuar a ser denunciados.
O que está em causa no pedido feito pelo Ministério Público para avaliação da constitucionalidade da Lei que criminaliza os maus-tratos a animais?
Na sequência de sucessivas decisões do Tribunal Constitucional a declarar a inconstitucionalidade de situações concretas – relativas a casos concretos em que tinha havido a acusação, ou a condenação, pelos crimes previstos contra os animais de companhia – a Procuradoria-Geral da República, ou seja, o Ministério Público teve, por estatuto, de pedir a avaliação da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma que criminaliza os maus-tratos a animais.
Neste momento, estamos no âmbito de uma fiscalização abstrata [da Lei], sendo que até agora o que tinha sido feito era a apreciação de casos concretos que davam lugar à chamada fiscalização concreta.
Este pedido é para que o Tribunal Constitucional tome uma posição e declare a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade das normas dos Artigos 387º, 388º – e o 388º A que prevê as penas acessórias – e o 389º do Código Penal, que regulam os crimes de morte, maus-tratos e abandono de animais de companhia.
E, concretamente, o que legislam esses artigos?
Em 2014 tivemos pela primeira vez [com a publicação destes articulados] a tipificação como crime da morte, dos maus-tratos e do abandono de animais de companhia. Antes [desta Lei] estes atos não configuravam um crime, mas uma contraordenação. Temos uma Lei, já de 1995, que previa que quem causasse maus-tratos a animais incorria numa contraordenação que tinha um valor de coima entre os 2000 e os 7500 euros.
“Esta é uma discussão que vai ser importante e interessante no sentido de dizer se sim, entendemos que o bem jurídico existe, esta protegido na Constituição, ainda que indiretamente por força de o Estado ter obrigações de criar um ambiente mais solidário, ou não e [a Lei] é inconstitucional.”
A meu ver, demos um passo civilizacional bastante grande no sentido de criminalizar estas condutas passando a prever a aplicação de uma pena de multa de 60 a 240 dias ou uma pena de prisão de seis meses a dois anos quem, sem motivo legítimo, matar um animal de companhia.
Pode haver um agravamento destas penas em um terço do limite máximo se a morte for causada em circunstâncias que revelem uma especial censurabilidade, como naquele caso em que um cão foi arrastado por um carro.
A moldura penal foi agravada em 2020 e quem abandonar animais de companhia ou colocar em perigo a sua alimentação e prestação de cuidados também pode ser condenado a uma pena de prisão de seis meses a um ano ou a uma multa de 60 a 120 dias.
E há penas acessórias, nomeadamente quem for condenado por algum destes crimes, além da multa e da pena de prisão, pode ficar privado de ter animais de companhia até ao período máximo de seis anos, ficar proibido de participar em feiras e mercados [de adoção de animais].
No caso de se tratar de estabelecimentos pode haver o encerramento ou fiscalização.
E por que motivo esse quadro legal tem levantado dúvidas relativamente à constitucionalidade da Lei?
Os tribunais têm, na sua atividade normal, aplicado a Lei. O mais recente caso em concreto, referente a este último acórdão do Tribunal Constitucional – que, em setembro de 2022, voltou a julgar inconstitucional a norma que tipifica o crime de maus-tratos a animais de companhia – diz respeito à apreciação de um caso de um Tribunal em Braga. Nesse caso, o Ministério Público acusou uma pessoa de um crime de maus-tratos a animais de companhia e o juiz decidiu rejeitar a acusação porque entendeu que os factos imputados não eram suscetíveis de preencher a previsão de qualquer norma incriminadora. Ou seja, aquilo de que a pessoa era acusada não era considerado pelo juiz como crime e suscitava a questão da constitucionalidade da norma.
Foi na apreciação dessa decisão do juiz de Braga que houve, então, o acórdão mais recente do Tribunal Constitucional, o que fez com que tivesse havido três acórdãos consecutivos [sobre casos concretos] a pôr em causa estes crimes. Logo, o Ministério Público teve de avançar para o pedido da apreciação [abstrata] da constitucionalidade com força obrigatória geral e o plenário dos juízes conselheiros pode declarar a norma constitucional ou inconstitucional. E os juízes conselheiros não têm estado todos de acordo.
A Constituição prevê uma série de princípios, regras e valores. No artigo 27.º determina que todos [os cidadãos] têm direito à liberdade e à segurança e há outro artigo conjugado com este, o artigo 18.º, que diz que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias do cidadão nos casos expressamente previstos na Constituição e que estas restrições se devem limitar ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
O problema é que os animais não têm previsão legal na Constituição. Se estamos a condenar alguém por ter praticado um crime contra um animal de companhia estamos a restringir um direito e uma liberdade de uma pessoa que vai ser condenada por uma conduta que não tem previsão [na Constituição].
A divergência que há entre os juízes conselheiros, e também entre os juízes ordinários [dos tribunais de 1ª instância], é que há quem entenda que o título legal destes crimes não tem uma precisão e uma densidade suficiente que permita às pessoas adequar o seu comportamento ao tipo de crime que está revisto. Ou seja, deveria ter sido definido de uma forma mais concreta para as pessoas perceberem, por exemplo, o que é considerado um animal de companhia, o que é a dor, o que é o sofrimento, que condutas estão previstas na Lei.
Contudo, alguns juízes conselheiros entendem que se pode fazer uma interpretação atualista da Constituição e que a aplicação [da Lei existente] e a existência deste crime não é inconstitucional porque partem do princípio que conseguimos – fazendo uma interpretação que não é direta, uma vez que a Constituição não fala sobre os animais – chegar lá de uma forma indireta, pois o Artigo 1.º da Constituição diz que é função do Estado construir uma sociedade justa e solidária.
Mas esse é um conceito muito lato que também poderia ser transposto para, por exemplo, animais de produção?
Também há uma norma no Código Penal, o Artigo 389.º, que tem o conceito de animal de companhia. Entende-se que é qualquer animal que seja detido, ou destinado a ser detido por humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia. E ainda se prevê que são considerados animais de companhia para estes feitos, aqueles que estão registados no sistema de informação de animais de companhia, mesmo que se encontrem em estado de abandono ou de errância.
Alguns juízes conselheiros dizem que podemos fazer uma interpretação atualista da Constituição e que esta tem de ser lida à luz do conhecimento atual, pois hoje sabemos muito mais sobre o sofrimento animal do que sabíamos quando a Constituição foi feita. Referem-se ao facto de podermos considerar que a sociedade justa e solidária [no Artigo 1.º] integra a forma como tratamos os animais.
Na avaliação concreta dos casos que chegaram ao Tribunal Constitucional os juízes conselheiros têm-se inclinado para a inconstitucionalidade da Lei. Considera que nesta fiscalização abstrata haverá o mesmo entendimento? Mesmo com alguns juízes conselheiros a defenderem uma interpretação atualista da Constituição?
É necessário saber se esta proteção do bem-estar animal tem ou não assento na Constituição. Se estivesse, como está há 20 anos [escrito] na Constituição alemã e mais recentemente na italiana [ver caixa], não teríamos dúvidas e estas questões não se colocavam.
Nos acórdãos de fiscalização concreta tem acontecido alguns juízes conselheiros votarem vencidos, ou seja, dentro da secção [que analisa o pedido], se não concordarem [com a posição da maioria] podem votar vencido.
Esta é uma discussão que vai ser importante e interessante no sentido de dizer se sim, entendemos que o bem jurídico existe, está protegido na Constituição ainda que indiretamente, por força de o Estado ter obrigações de criar um ambiente mais solidário, ou não e [a Lei] é inconstitucional.
O que acontece a seguir se a Lei for considerada inconstitucional?
Vai depender do que for a declaração de inconstitucionalidade. Se [os juízes conselheiros] entenderem que [o bem-estar animal] é um bem jurídico que não está protegido na Constituição podemos vir a ter uma revisão da Constituição para que esta passe a integrar esse bem jurídico, à semelhança do que acontece noutros países.
Se declaração de inconstitucionalidade for no sentido de reconhecer que o bem jurídico está previsto na Constituição, mas declarar que a redação dos Artigos 387.º e 388.º do Código Penal não está suficientemente determinada …
Nesse caso, a legislação volta à Assembleia da República para revisão?
Se for esse o caso, entraremos num processo de revisão das normas incriminadoras no sentido de trazer mais certeza e mais clareza para que as pessoas possam adequar a sua conduta de acordo com aquilo que é a previsão da norma.
Muitos dos casos conhecidos resultaram da denúncia de veterinários municipais ou dos centros de atendimento médico-veterinário. Perante a possibilidade de inconstitucionalidade da Lei em vigor, estes podem pensar que não vale a pena a denúncia porque o acusado não vai ser condenado criminalmente?
Mesmo que a Lei venha a ser declarada inconstitucional, a conduta não passa a ser aceitável. Os maus-tratos a animais não passam a ser admitidos ainda que o Tribunal Constitucional venha a declarar a sua inconstitucionalidade. O que pode ser declarado [inconstitucional] é o crime, a conduta deve continuar a ser denunciada porque os maus-tratos e o abandono já eram uma contraordenação.
As denuncias devem continuar a ser feitas, não devem desmoralizar mesmo que venha a ser considerado que não é um crime. Está mais do que provado que os animais têm capacidade de sofrimento, são seres sencientes e, por isso, devem ser protegidos.
Não é só o crime que protege os animais. O crime veio dizer que aquelas condutas são especialmente gravosas ao ponto de serem consideradas crime. Mas também temos convenções europeias para a proteção dos animais de companhia, que Portugal assinou em 1987, nas quais se entende que os animais de companhia são seres vivos capazes de sentir dor e de sofrer.
Podia ser aproveitado o momento em que se está a iniciar o processo de revisão constitucional para incluir o bem-estar animal na Constituição?
Sem dúvida que, ao introduzir o bem jurídico, primeiro reconhecemos que não estava lá e depois fechamos as portas a qualquer dúvida na interpretação dos tribunais que julgam estes processos possam ter. Pode haver uma certeza maior se houver uma alteração constitucional que venha expressamente a acolher o bem jurídico da proteção dos animais.
“Já há uma série de constituições que vieram a acolher as questões do bem-estar animal”
Qual é o cenário internacional em termos de direito animal? Existem países que alteraram as constituições para incluir esta abordagem criminal dos maus-tratos a animais?
Em regra, tem vindo a ser acolhido nas constituições. Em 2002, a Constituição federal alemã passou a prever expressamente que o Estado tem de proteger os fundamentos naturais da vida e dos animais através de legislação e de acordo com a Lei e o direito.
A Constituição italiana também acolheu recentemente a tutela do ambiente e os modos e as formas da tutela dos animais, a Constituição da Suíça também prevê a legislação sobre o material genético e reprodutivo dos animais e a dignidade dos seres vivos e também no Brasil a Constituição prevê as matérias de maus-tratos a animais.
Já há uma série de constituições que vieram a acolher as questões do bem-estar animal.