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Médicos Veterinários

Brasil: “A gestão veterinária é a base para que a transformação possa ser escalável e sustentável”

Brasil: “A gestão veterinária é a base para que a transformação possa ser escalável e sustentável"

O Brasil enfrenta atualmente um problema de excesso de profissionais. O médico veterinário brasileiro Sérgio Lobato, em entrevista à VETERINÁRIA ATUAL, desenha um retrato da situação profissional no país. O também especialista em gestão e marketing, área a que se dedica há 20 anos, explica ainda como a visão do mercado veterinário tem se alterado em relação a este universo.

Formou-se em Medicina Veterinária pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro em 1992. O gosto pelo marketing e pela gestão já se sentia nessa altura ou foi se desenvolvendo após iniciar a prática clínica?

 

Em 1992 ainda não se falava do universo da gestão e marketing da mesma forma que o vivemos atualmente. O assunto era muito novo e estava muito direcionado apenas a publicidade e vendas, quando temos um universo muito maior. Eu nunca me tinha imaginado a atuar nesta área em que já conto com 30 anos de formação, completando 20 anos dedicados exclusivamente à gestão técnica e inovação.

Não sabia exatamente o que era, mas achava que estávamos a ser enganados na universidade, pois sentia que faltava algo na nossa formação. Foi esse inconformismo, essa sensação de falta e ausência, que me levou a entender o porquê de desde a faculdade eu ser tido como um “estranho no ninho”.

 

A vida foi colocando-me em situações nas quais eu era simplesmente levado a desafios profissionais. Qual o resultado disso? Eu pensava comigo mesmo: “Preciso aprender sobre isso!”; “Onde vou estudar esse tema?”.

Posso dizer que existe diferença cultural [entre Portugal e Brasil] expressa na relação cliente-paciente-veterinário, e que me faz querer aprender mais e mais sobre as interações que são realizadas nos dois países, área quase que obrigatória a um bom gestor técnico.

 

Aos poucos fui fazendo cursos de extensão, workshops, cursos de verão e depois os cursos de pós-graduação e o último que fiz foi o MBA em Gestão de Estabelecimentos de Saúde.

 

Como não existia nada na medicina veterinária nesse segmento, toda a minha formação foi feita nas melhores faculdades da área humana. Decidi durante esses anos tornar-me um intérprete do universo da gestão para o universo da medicina veterinária.

Há 20 anos formou-se na área de Marketing e Estratégia Promocional. Desde aí tem desenvolvido estratégias promocionais, treinado equipas, desenvolvido palestras e workshops. Sente que o setor veterinário está cada vez mais desperto para a necessidade de apostar na vertente não clínica?

Sim. Nesses 20 anos eu tive a honra e a sorte de ver a transformação do mercado pet e do mercado veterinário no Brasil. Posso afirmar que existiu uma transformação em ondas, com altos e baixos no mercado veterinário principalmente, pois ele é naturalmente mais refratário à mudança e à inovação.  Quando comecei a dar palestras, ninguém aparecia, a sala ficava vazia… atualmente eu tenho uma fila à espera para entrar na minha sala nos congressos e os eventos são sempre muito procurados.

O desafio é sempre orientar e explicar ao colega médico veterinário que a gestão não pode sozinha solucionar os problemas da medicina veterinária, mas é a base para que, dentro das suas inúmeras especialidades e áreas de atuação, os projetos de transformação possam ser escaláveis e sustentáveis.

As preocupações dos profissionais veterinários, a nível de gestão e marketing, têm evoluído desde que iniciou o seu percurso ou no balanço geral mantiveram-se as mesmas, só que agora mais agudizadas?

O grande problema é que a classe médica veterinária é muito imediatista e superficial quando se trata de um assunto off-veterinária e, aliado ao tradicional comportamento humano de cultivar um certo pré-conceito ao novo, torna-se um desafio apresentar o marketing na sua plenitude.

Do desconhecimento, passando pelo sentimento refratário e de negação, pela aproximação inicial e superficial, os médicos veterinários começaram a procurar, nos últimos anos, respostas e apoio no universo da gestão. Mas, infelizmente, de forma ainda muito reativa e, em especial, na minha área de especialização, a gestão técnica, é importante que os colegas entendam que ela é a medicina preventiva da medicina veterinária. Aos poucos os colegas começam a compreender essa questão!

Com as redes sociais a assumirem um papel vital na promoção da atividade clínica, sente que os profissionais têm dado mais importância ao marketing que à gestão ou a atenção é equilibrada?

Infelizmente, eles estão a expor as suas mazelas, os seus erros, e as suas inconsistências profissionais nas redes sociais: promovem de forma errada os seus serviços veterinários, não sabem usar a comunicação adequada ao público-alvo correto, erram nas normas técnicas e expõem estabelecimentos e técnicas fora das normas corretas.

O desafio é sempre orientar e explicar ao colega médico veterinário que a gestão não pode solucionar sozinha os problemas da medicina veterinária, mas é a base para que, dentro das suas inúmeras especialidades e áreas de atuação, os projetos de transformação possam ser escaláveis e sustentáveis.

É necessário um olhar mais profissional para essa ferramenta tão importante e usá-la de forma estratégica e ética ao mesmo tempo.

O  estudo “Demografia da Medicina Veterinária do Brasil 2022” alertou para o problema de excesso de profissionais no país. Este é o principal problema que afeta o país ou considera existirem outros mais urgentes?

O excesso de profissionais é um problema, porque a grande maioria dos estudantes inicia os seus estudos com o objetivo de exercer clínica médica de pequenos animais, área que está saturada.  Outras áreas estão com uma deficiência de profissionais, como, por exemplo, as áreas da gestão técnica, à qual me dedico, nos cargos de diretores técnicos e diretores clínicos. Isto sem falar noutras áreas críticas para o Brasil como a conservação e o agronegócio.

A falta de uma legislação única é um desafio também. Possuímos mais de dez esferas de fiscalização que atuam na medicina veterinária e, muitas vezes, com ferramentas regulatórias totalmente contraditórias, que causam uma enorme pressão nos profissionais, deixando-os totalmente perdidos.

Além disso, existe o facto de o ensino ter-se tornado num negócio onde muitos grupos educacionais têm poder económico e pertencem a políticos brasileiros que pressionam e conseguem que cursos sejam abertos sem a criação de um hospital escola, por exemplo. Como se pode formar médicos veterinários sem espaço para aulas práticas?

De que maneira esses problemas poderiam ser resolvidos?

A reposição do exame de ordem está a ser discutida no Brasil como uma tentativa de regular a qualidade dos profissionais que entram aos milhares no mercado brasileiro. Porém é necessário, no meu ponto de vista como médico veterinário, como analista e consultor, e como presidente da Associação Brasileira de Gestão Técnica em Medicina Veterinária, um conjunto de ações paralelas como:

  • Estudo sistemático e profundo do curriculum mínimo de formação médico-veterinária;
  • Fiscalização intensiva da qualidade do ensino nas centenas de faculdades espalhadas pelo Brasil, com punições como a interdição dos cursos que não atinjam padrões mínimos;
  • Criação de protocolos mínimos de disciplinas e conteúdos programáticos;
  • Lobby político forte para que existe uma redução e coesão das esferas de fiscalização que nem sequer nos reconhecem como profissionais de saúde;
  • Criação de ferramentas de fiscalização que realmente sejam adequadas ao universo veterinário em todas as suas áreas.

Na sua visão, existem mais semelhanças ou diferenças entre Portugal e Brasil no setor veterinário? Como é que tal se reflete na abordagem que toma nas suas intervenções em Portugal?

Nos últimos anos tive a oportunidade de poder estar em Portugal e ver como os colegas trabalham nos estabelecimentos veterinários, conversar com eles, ouvir as suas jornadas em palestras e eventos para os quais tive a honra de ter sido convidado, e, posso dizer que temos muitas similaridades e muitas diferenças também.

Tecnicamente somos dedicados à aprendizagem e focados no bem-estar animal. Posso dizer que existe diferença cultural expressa na relação cliente-paciente-veterinário, e que me faz querer aprender mais e mais sobre as interações que são realizadas nos dois países, área quase que obrigatória a um bom gestor técnico.

Outra diferença é que, tendo menos esferas regulatórias a atuar como forças limitantes no ato médico-veterinário, temos diferenças nos formatos e fluxos dos nossos CAMV, especificamente nas instalações técnicas. É-me fascinante, porque procuro entender os diferentes aspetos dessas diferenças como, por exemplo, protocolos de atendimento e questões de biossegurança.

 

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