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Paulo Afonso: A democracia é um dever e faço por estar ativo no presente, não no futuro

Paulo Afonso: A democracia é um dever e faço por estar ativo no presente

Fez estágios nos EUA e em Espanha, onde encontrou realidades muito diferentes. No regresso, Paulo Afonso não tem dúvidas: o prognóstico da Medicina Veterinária no nosso país é grave. O elevado número de universidades de Medicina Veterinária, o número de veterinários que cresceu quase 150% de 1998 para 2014 e a proliferação de CAMV sem critério de lógica de mercado são algumas das situações que contribuem para este diagnóstico numa profissão que considera “cada vez mais precária”.

Em 2012 apresentou no Parlamento Europeu, a convite dos eurodeputados, a proposta “Animais de Companhia: Reconhecimento Europeu” integrado no documento “Ideais, perspetivas e soluções jovens para a Europa”. Em que consistiu esta proposta?

Em primeiro plano esse documento analisava o conceito de animais de companhia, atribuindo ao ser humano a responsabilidade da sua sobrevivência. Considerava que o Homem, ao ter domesticado estas espécies, foi o protagonista da sua clara dependência nos seres humanos para subsistir e da sua perda de instintos de sobrevivência. Concluía portanto que existe uma obrigação histórica de lhes proporcionar igual direito à vida, mais que considera-los meras posses materiais. Num segundo ponto decorria sobre as diferentes perspetivas dos direitos dos animais, no contexto europeu, as responsabilidades do detentor em termos de bem-estar e saúde e a evolução da regulamentação comunitária nesta matéria, assim como destacava algumas diferenças e lacunas, nomeadamente no que se referia a maus tratos animais. Por fim terminava com a proposta de algumas medidas que visavam essencialmente uniformizar, ao nível da União Europeia, a responsabilização e os deveres dos detentores, os direitos dos animais (um tribunal europeu dos direitos dos animais), a fiscalização e as sanções, a generalização do acesso a cuidados médico-veterinários (rede europeia de cuidados médico-veterinários, dedução fiscal) e ações concertadas a nível europeu para a problemática dos animais errantes.

 

Como surgiu a ideia de desenvolver este documento?

Surgiu no seio do grupo que foi convidado a visitar o Parlamento Europeu, cada um na sua área de formação, ou noutra em que se sentisse à vontade para dar o seu contributo.

 

Porque escolheu a profissão de médico veterinário? Era um sonho?

Na altura foi um pouco complicado decidir. Tinha a certeza que queria trabalhar na área da saúde. No entanto precisava de um critério decisor para eleger uma profissão. A conciliação desta atividade com o gosto que sempre tive por animais levou a que, após alguma reflexão, considerasse a Medicina Veterinária como a profissão que me daria mais satisfação no futuro.

 

O que achou do curso? Correspondeu às expectativas?

O curso é muito longo. Não que não seja necessário, mas é demasiado maçudo e teórico. Há conteúdos que são totalmente desnecessários e outros que ficam por abordar. Mas a principal falha é a diminuta componente prática, seja pelo significativo excesso de alunos ou pela falta de casuística. Posso dizer que ficou aquém das expectativas.

 

Foi importante para a sua carreira ter sido coordenador do Departamento de Educação Médico-Veterinária da ANEMVet e membro da direção da AEMV_UTAD (2010/2011)?

Sempre considerei que a democracia, mais que um direito é um dever, pelo que desde cedo me interessei e procurei ser um cidadão ativo. O associativismo foi apenas mais uma forma de cumprir esse preceito. A principal repercussão desses cargos associativos é pessoal, um associativo cria competências várias que lhe são exigidas no contexto de associação, seja organização de eventos, trabalhar em equipa, sob stresse, cumprir prazos, saber ouvir e fazer-se ouvir, conciliar diferentes perspetivas para alcançar objetivos comuns, entre muitos outros. Mas a principal satisfação no associativismo é a representação dos associados, dando-lhes voz nas reivindicações e opiniões. É gratificante obter mais e melhor para aqueles que representamos.

Hoje em dia os alunos estão algo desligados da vida associativa. Concorda? O que têm a ganhar em ter uma vida associativa mais ativa?

A minha experiência associativa leva-me a discordar. Assim como há cidadãos ativos, interessados por aquilo que lhes diz respeito e cidadãos passivos, alheados completamente da vida em sociedade, o mesmo acontece com as associações e seus associados.

Também foi embaixador da WikiVet (2011-2013). Em que consistiu este projeto?

A WikiVet é um projeto internacional que começou em 2007 em Cambridge e corresponde em larga medida à Wikipédia, com uma grande diferença: o conteúdo é exclusivamente sobre Medicina Veterinária e é revisto por especialistas. Quando aceitei ser embaixador deste projeto, o que se pretendia era a divulgação da WikiVet junto da comunidade veterinária, bem como iniciar a presença da minha universidade na WikiVet, dois objetivos que penso terem sido cumpridos e que corresponderam a uma primeira fase neste projeto. Neste momento tenho estabelecido alguns contactos com a atual direção da associação de estudantes para que alguém assegure a continuidade neste projeto, uma vez que a anterior direção não encontrou nos seus quadros qualquer interesse e/ou disponibilidade.

Realizou estágios em Espanha e EUA. Como classifica essas experiências?

Muito enriquecedoras.

As realidades são muito diferentes de Portugal?

Em relação aos Estados Unidos da América a diferença é abismal devido à própria consciência da população. Há abertura para um cuidado veterinário mais adequado, até pelo próprio sistema de seguros que está montado. Pratica-se uma verdadeira medicina veterinária. Já em relação a Espanha a diferença não é tão notória. Esta diferença prende-se essencialmente com a consciência e abertura da sociedade para a necessidade dos cuidados médico-veterinários.

O que aprendeu?

Adquiri essencialmente competências no âmbito profissional, vi outras formas de estar na profissão e de atuar quer para com os pares, quer para com a população em geral. Mas essencialmente aprendi que ser Médico Veterinário exige dedicação e disponibilidade, absorve a maioria do nosso tempo, mesmo aquele que consideramos livre e pessoal.

Quais os seus projetos para o futuro?

Não penso muito no futuro, idealizo muitas vezes onde gostaria de estar daqui a 10, 20, 30 anos, mas não encaro esses pensamentos como projetos. No entanto, no presente e à medida que vão surgindo agarro com extrema dedicação os projetos em que participo. Como disse anteriormente, acho que mais que um direito, a democracia é um dever e faço por estar ativo no presente, não no futuro.

Como vê a medicina veterinária em Portugal?

Infelizmente o prognóstico é grave. Há demasiadas universidades (somos o 5.º país com mais universidades da Europa, somos o 12.º mais populoso e somos o 2.º país com a maior oferta educativa de medicina veterinária por habitantes), temos estudantes a mais (mais de metade do Reino Unido que tem seis vezes a nossa população), temos demasiados veterinários (temos um rácio de 4.6 veterinários para 10.000 habitantes, muito superior ao da França ou do Reino Unido, 2.5 e 3.0 respetivamente, países com seis vezes mais população e com uma abertura da sociedade para os cuidados médico-veterinários muito mais enraizados). Entre 1998 e 2014 passamos de 2375 para 5903 veterinários, um aumento de quase 150%. Nos próximos dez anos formar-se-ão aproximadamente 4800 veterinários, o que significará a duplicação da população veterinária portuguesa face à atual. A abertura desmedida de CAMV’s que temos presenciado, sem qualquer critério de lógica de mercado, harmonizando procura e oferta, condição a que obedece por exemplo a abertura de farmácias, leva a situações de concorrência prejudicial, que resultam na incapacidade de subsistir dos velhos e novos CAMV’s. Assistimos cada vez mais à usurpação de funções médico-veterinárias por outras atividades profissionais, aqui a não publicação do ato médico veterinário prejudica e legitima essas usurpações. E é deveras preocupante. A falta de reconhecimento social é gravosa, quando somos um pilar no assegurar da saúde pública e aqui acrescento que é ultrajante sermos dos poucos países a nível europeu em que a Medicina Veterinária não é parte do Ministério da Saúde, quando praticamos medicina, promovemos a saúde em toda linha de ação e em todas as vertentes da Medicina Veterinária. Poderia alongar-me muito mais, mas resumidamente penso serem estes os principais sinais que contribuem para o meu prognóstico grave e para uma profissão cada vez mais precária.

Acha que os veterinários deviam ‘preocupar-se’ em informar a sociedade sobre a importância do seu trabalho?

Para mim é fundamental e urgente trabalhar a imagem da Medicina Veterinária na sociedade! É algo que deve partir de todos nós no dia-a-dia, devemos unir-nos para projetar a classe. Obviamente que é preciso algum marketing comercial associando-o a marketing social, porque a nossa função e importância na sociedade passam despercebidas para a maioria dos portugueses. Ações de divulgação são prementes! As redes sociais podem ser usadas beneficamente nesse sentido, não descurando a rádio e televisão, onde seria relevante uma presença frequente da classe e o assinalar de dias importantes com mensagens sobre a profissão. As escolas podem constituir uma pilar com efeitos a longo prazo, uma vez que os atuais alunos serão os proprietários do futuro. Precisamos de dizer que existimos e mostrar às pessoas aquilo que todos os médicos veterinários sabem: a sociedade sem nós não aguentaria muito tempo.

O que gostaria de mudar na veterinária em Portugal?

Gostaria de criar mecanismos que contribuíssem para uma Medicina Veterinária mais sustentável em Portugal. Com esses contribuir para o fim da precariedade da e na profissão e tornar os investimentos seguros, impossibilitando a abertura de CAMV’s sem estudos de mercado que atestassem a sua necessidade.

Como vê a saída de jovens veterinários para o estrangeiro por não conseguirem encontrar trabalho em Portugal?

É sempre de lamentar que seja necessário sair do país, deixando família e amigos, para dar os primeiros passos no mercado de trabalho ou encontrar uma remuneração que assegure autonomia financeira. Considero também absurdo o despesismo que ocorre na formação dum número de veterinários excessivo, situação semelhante ao que acontece por exemplo na enfermagem. Estamos a investir para exportar a custo zero. Estamos a gastar erário sem necessidade. Esse investimento público, pago por todos os portugueses, poderia ser canalizado para criar melhores condições a um outro número, necessariamente menor e que correspondesse às reais necessidades do país em termos de médicos veterinários.

Muitos veterinários procuram uma especialização no estrangeiro para se diferenciar face à concorrência. O que acha da inexistência de especialidades em Portugal?

Os documentos legais relativos ao reconhecimento das qualificações profissionais que engloba entre outros a medicina veterinária não reconhecem qualquer especialidade médico-veterinária, no contexto europeu ou nacional. Houve no entanto, em 2001, a iniciativa por parte da OMV com a criação de três colégios de especialidade, de tentar lançar um elemento diferenciador e reconhecedor da dedicação e do mérito dos profissionais existentes, contudo com repercussão praticamente nula. Existem por outro lado os colégios europeus de especialidade sobre a alçada do EBVS que têm sido acolhidos com maior ou menor expressividade pelos Estados-membros, com alguns deles a abandonar os seus colégios nacionais em favorecimento dos europeus como é o exemplo do Reino Unido. Considerando o contexto de integração europeia em que nos encontramos e do qual não podemos alhear-nos penso que a especialização passará pela transposição para o âmbito nacional do que já existe a nível europeu e não pela criação de um obstáculo nacionalista que atrase essa inevitável uniformização europeia. Independentemente do modelo de especialização que venha a ser adotado é preciso batalhar pelo seu reconhecimento legal. Mais importante ainda será aferir se a sociedade portuguesa estará disposta a valorizar e remunerar justamente o esforço desses colegas, até porque o que se tem verificado é que aqueles que optam por especializar-se, para deterem um elemento diferenciador face aos demais, acabam por não encontrar abertura nacional para regressar optando por ficar no estrangeiro onde a sua necessidade, reconhecimento e remuneração são muito superiores.

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