A farmacologia define-se como o estudo das propriedades dos fármacos e todos os aspetos da sua interação com organismos vivos. Tal inclui qualquer agente químico (excetuando alimentos) utilizado no tratamento, cura, prevenção ou diagnóstico da doença, bem como o controlo dos processos fisiológicos. Enquanto ciência, a farmacologia transpõe conhecimentos e métodos de outras disciplinas clínicas e não clínicas, incluindo química, bioquímica, biologia, fisiologia, patologia, toxicologia e medicina. Inclui também o estudo das várias fontes de substâncias farmacologicamente ativas (farmacognosia), magnitude de efeito e período de tempo até ao efeito farmacológico observado no contexto da farmacodinâmica, relação entre doses administradas, concentrações dos fármacos observadas nos fluidos biológicos ou tecidos e tempo no contexto da farmacocinética (PK), uso no tratamento das doenças (terapêutica), e efeitos tóxicos (toxicologia).1 Já a farmacologia clinica veterinária, é um subgrupo daquilo que a farmacologia compreende, devotando-se ao estudo dos efeitos clínicos dos fármacos em animais com o objetivo de otimizar as posologias terapêuticas, sendo assim mandatório o conhecimento das propriedades farmacodinâmicas (PD) e farmacocinéticas dos fármacos e dos seus efeitos tóxicos. 1
Uma curta história da farmacologia veterinária
Em 1761, o francês Bourgelat criou a primeira escola veterinária moderna, publicando a Materia Medica veterinária quatro anos depois. A Materia Medica descreve as fontes e propriedades das substâncias ou das suas misturas utilizadas como “remédios” no tratamento de doenças. Na verdade, a farmacologia veterinária e a sua aplicação clínica suplantaram a Materia Medica, a qual terá sido gradualmente abandonada na sequência das revoluções Pasteuriana e farmacológica da segunda metade do século XIX. A falta de conhecimento patofisiológico que justificaria o uso racional de determinados fármacos, motivou a não utilização de algumas substâncias ou mesmo a sua má utilização. Adicionalmente, não era compreendido o conceito moderno de dose, nomeadamente as diferenças inter-espécies, co-existindo também dogmas que suportavam falsas indicações, tal como era o caso da não identificação da dor como sintoma a ser tratado, bem como o entendimento da infeção enquanto sintoma que envolveria o excesso de atividade do sangue, a ser, portanto, abordado por sangramento e purga. Em 1953, Meyer Jones, o pai da farmacologia e terapêutica veterinária da era moderna, publicou a primeira edição do clássico “Veterinary Pharmacology and Therapeutics”. Após 1975, deu-se uma expansão de conhecimentos, conduzindo à introdução de novas substâncias para uso veterinário.2
Navegando pela farmacologia
A farmacologia clínica no contexto veterinário foca-se na utilização otimizada das substâncias em doentes veterinários, maximizando os seus benefícios terapêuticos e profiláticos, e minimizando as consequências adversas do uso das mesmas. A farmacologia clínica veterinária integra portanto a patofisiologia juntamente com conceitos fundamentais de farmacologia de forma a fornecer uma base racional para a farmacoterapia em doentes animais. 1
Abordando o desenvolvimento de fármacos e as etapas subsequentes da sua investigação, é sabido que a demonstração da eficácia de uma substância compreende diversas fases, nomeadamente 1) a descrição do mecanismo de ação; 2) a determinação da dose e intervalos posológicos; 3) ensaios de confirmação da dose; e 4) quando aplicável, ensaios clínicos. O conhecimento da ação farmacológica de um fármaco é completamente inútil a não ser que exista um conhecimento básico da fisiologia e patofisiologia relevante do sistema ou tecido que possa afetar negativamente a saúde ou bem-estar do doente.1 Existem métodos para conduzir estudos de eficácia clinica para doenças infeciosas e não infeciosas, e que podem incluir estudos num modelo de doença ou em modelos alternativos para avaliar a resposta ao agente terapêutico, diferindo na escolha do endpoint clinico, que é crítica e determina o desenho do estudo. No caso dos antibacterianos e anti-helmínticos, é relativamente fácil identificar endpoints de eficácia, neste caso associados à resposta clínica e bacteriológica através de métodos de diagnóstico clínicos, bacteriológicos e post-mortem adequados, à taxa de mortalidade, à redução da contagem de parasitas, à diminuição da temperatura, etc. Em oposição, a identificação de endpoints de eficácia de compostos não-antibacterianos é mais difícil de determinar. Assim, a farmacologia veterinária fornece também suporte na identificação dos endpoints adequados, de forma que estes sejam mais quantitativos, reprodutíveis e representativos da situação clinica. 1
Dependendo do objetivo do estudo, este pode ser classificado como confirmatório, exploratório ou composto, os primeiros dos quais constituem estudos de determinação ou confirmação de dose. No caso dos antimicrobianos, a dose, intervalo posológico e o número de administrações do produto dever ser sempre justificada considerando a relação PK/PD, se estabelecida, bem como a gravidade da doença. Se a relação PK/PD se encontrar bem estabelecida através de modelos validados, podem ser omitidos os estudos de determinação de dose e avaliada a eficácia de regimes terapêuticos num ensaio clínico. Contudo, para ser aceitável, a escolha do parâmetro PK/PD considerado como o melhor preditor de eficácia, deve ser prospectivamente justificada por dados independentes. Por fim, a realização de testes toxicológicos de novas substâncias com o objetivo de conhecer potenciais efeitos indesejáveis dentro e acima da margem terapêutica constitui um pré-requisito para os estudos clínicos.1
Continuando a viajar pelos mares felizmente já navegados da farmacologia, a farmacocinética constitui o estudo das características da exposição e tempo de exposição ao fármaco nos indivíduos e populações, compreendendo as etapas da absorção, distribuição, metabolismo e excreção (ADME). Deste modo, a PK assume a forma de uma descrição matemática das alterações temporais nas concentrações dos fármacos no organismo, o que acaba por proporcionar uma base experimental para os regimes terapêuticos nas variadas espécies animais. A PK está também na base de outros importantes conceitos, tais como a bioequivalência e a toxicocinética, não sendo os mesmos abordados no presente texto. Um modelo PK/PD permitirá então obter informação relevante acerca da farmacocinética e do efeito farmacológico, o que tem implicações na eficácia e segurança do fármaco. Esta modelação vai constituir uma ferramenta para ajudar a selecionar um regime de dose adequado a um estudo clínico confirmatório, integrando o modelo PK com o modelo PD e com um modelo estatístico. Pegando novamente no exemplo do antimicrobiano, este deve ter seletividade PK e PD, distribuir-se no locus do patogénio-alvo, e não ter impacto na microbiota comensal do trato gastrointestinal do animal tratado ou nos ecossistemas ambientais. Há diferenças inter-espécies relativamente à transformação e excreção, consequentemente tendo diferentes semividas. Adicionalmente, também a via de administração pode resultar em diferentes taxas de absorção com possíveis diferenças na distribuição aos tecidos e natureza dos resíduos. Uma vez que os medicamentos veterinários são utilizados numa vasta diversidade de espécies, raças, idades, sexos e status patofisiológico, a variância biológica deve ser alvo de maior atenção, quer no desenvolvimento de novos compostos, quer na sua utilização clínica. 1
A emergência da farmacogenómica
Acredita-se que terá sido Pitágoras quem primeiramente reportou que uma reação subsequente à ingestão de favas (Vica fava), conhecida como favismo ou anemia hemolítica aguda, estava associada apenas a determinados indivíduos. Na era científica moderna, Sir Archibald Garrod reconheceu aspetos hereditários do metabolismo das substâncias, como a descrição da alcaptonúria, descrita no seu livro “Inborn Errors of Metabolism”, publicado em 1923. Também nos anos 20 foi reportado que a pamaquina, um anti-malárico, induzia anemia hemolítica aguda, primariamente em Afro-Americanos, os quais teriam uma maior suscetibilidade em comparação com Europeus. Determinou-se também que o favismo estaria relacionado com a deficiência de glucose-6-fosfato desidrogenase (G6PD), alterando o metabolismo dos eritrócitos. Em 1957, Motulsky teorizou que estas reações teriam por base características genéticas, tendo sido cunhado por Vogel o termo “Pharmakogenetik” nesse mesmo ano.3
A genética, bem como a farmacogenómica, foram revolucionadas pelo Human Genome Project, sequenciado em 2001 para humanos, tendo sido publicados trabalhos acerca dos genomas do cão e do gato em 2005 e 2007, respetivamente. 3 A genómica inclui a transcriptómica, proteómica e metabolómica, descrevendo a formação de ARN mensageiro (ARNm), proteínas e metabolitos, contribuindo para o conhecimento da farmacologia comparativa e da toxicologia. O seu desenvolvimento permite esclarecer a bioatividade e os mecanismos de toxicidade em modelos in vitro e in vivo, bem como contribuir para o desenvolvimento de novos biomarcadores de efeito ou de exposição. As análises “Omics” estão a ser aceites como partes metodológicas essenciais dos sistemas ou da biologia integrativa, permitindo uma análise compreensiva dos sistemas biológicos de diferentes espécies animais. A determinação dos níveis de expressão de múltiplos transcriptomas, proteínas e metabolitos é agora exequível e a genómica pode ser utilizada para identificar novos alvos, uma vez que é agora possível analisar alterações na transcrição de mais de 20.000 genes em vários tipos de células e tecidos.1
Por menos onerosas palavras, a farmacogenómica permite o desenvolvimento de novos fármacos com base no genoma e de técnicas que estudem as respostas aos mesmos, donde se torna possível individualizar a terapêutica com base no conhecimento combinado de um individuo, o que se encontra intimamente relacionado com o conceito de medicina personalizada. No ser humano, reconhece-se a diferença inter-individual na resposta à terapêutica, a qual pode atualmente ser atribuída ao genótipo individual. No contexto da veterinária, a aplicação da farmacogenómica à prescrição clínica tem sido limitada, contudo seria benéfica a sua aplicação na prescrição veterinária, bem como o reconhecimento do potencial para reações adversas nos animais, raças e indivíduos. 3 As diferenças na resposta a fármacos em animais de companhia começaram a ser alvo de atenção em 1981, quando a ivermectina foi comercializada para uso em animais de quinta para parasitas internos e externos, cuja efetividade levou ao seu uso off-label em cães. Em 1983 a toxicidade da ivermectina foi reportada em cães, nomeadamente da raça Collie e de pastoreio, o que motivou a que, em 1987, ao ser aprovado um produto à base de ivermectina como profilático de dirofilariose, fossem realizados testes específicos para assegurar a segurança da dose selecionada nas raças ditas “sensíveis”. 3 Ademais, a domesticação e uso de animais pelo Homem para fim específico foi conduzindo à reprodução seletiva com base em determinadas características fenotípicas favoráveis ao objetivo preconizado para o animal. A divergência evolutiva subsequente será mais dramática no cão doméstico, ao passo que o gato doméstico terá uma maior semelhança fenotípica relativamente ao seu ancestral. 3
As variantes genéticas emergem a partir dos “single nucleotide polymorphisms” (SNP) ou como resultado das inserções ou deleções nas sequências genéticas, os quais podem ter efeitos significativos caso ocorram nas regiões codificantes dos genes. 3 Sabe-se também que o metabolismo dos fármacos é essencialmente caracterizado por duas fases: fase I, primariamente por enzimas microssomais hepáticas do citocromo P450 (CYP P450), e fase II, que geralmente envolve a conjugação. O processo é complexo, envolvendo uma ampla diversidade de enzimas e genes. Existem similaridades entre a CYP canina e a humana, por exemplo, identificando-se genes ortólogos (genes provenientes de genes ancestrais comuns derivados de especiação), como por exemplo, a CYP2D15 canina vs. CYP2D6 humana vs. CYP2D50 em equinos, embora no caso da primeira não tenham sido identificados polimorfismos que afetem o metabolismo de fármacos em cães. No CYP2B11 canino, ortólogo do CYP2B6 humano e encontrado no Labrador Retriever, Collie, Cimarron Uruguaio, Galgo Inglês, Galgo Escocês e Welsh Corgi, podem ser identificados alguns polimorfismos com significado clínico, condicionando, por exemplo, uma diminuição do metabolismo do propofol em galgos comparativamente a cães de raça não definida. Outros substratos da CYP2B11 incluem atipamezol, diclofenac, cetamina, medetomidina, midazolam e temazepam, contudo a tradução terapêutica dos seus polimorfismos requer mais estudos. As diferenças na farmacocinética podem também envolver transportadores, como por exemplo, a glicoproteína-P, codificada pelo gene ABCB-1, cuja perda de função está associada a neurotoxicidade (ivermectina), além de ter como substratos diversos outros agentes, nomeadamente antineoplásicos, opiáceos, hormonas esteroides, digoxina e quinidina, que serão afetados na sequência de alterações de função da proteína. Também a farmacodinâmica pode refletir alterações genéticas nos níveis de expressão dos alvos terapêuticos: um exemplo é o polimorfismo do recetor de oxitocina OXTR, que tem um papel importante nas interações humano-animal, tendo os cães homozigóticos com o genótipo “AA” um aumento do comportamento social em relação aos humanos em resposta à oxitocina intranasal, observando-se o oposto em cães com genótipo “GG”; outro exemplo são os polimorfismos da fosfodiasterase-5A canina, que pode condicionar uma variabilidade de resposta ao sildenafil. 3
Em suma, os conhecimentos na farmacologia veterinária têm evoluído ao longo dos tempos subsequentemente aos avanços na farmacologia humana e suplantando cada vez mais aquele que seria o conceito redutor da Materia Medica. Reconhecem-se, contudo, diversas limitações ao nível destes mesmos avanços, mas também da disponibilidade de dados e das condicionantes regulamentares. Apesar disso, o conhecimento cumulativo da farmacologia no seio das ciências (clínicas e não clínicas) que a alicerçam, constitui uma importante ferramenta para uso clínico, sendo fundamental a qualquer clínico veterinário de forma a otimizar os benefícios e mitigar os riscos. Por fim, a não esquecer que uma discussão sobre a farmacologia veterinária não pode deixar de considerar o animal como parte de todo um ecossistema onde também o Homem se integra, contribuindo conjuntamente com a toxicologia para o paradigma “One World, One Health”. 1,3
Referências:
- Anadón A. Perspectives in veterinary pharmacology and toxicology. Front Vet Sci. 2016;3(SEP):82. doi:10.3389/FVETS.2016.00082/BIBTEX
- Lees P, Bäumer W, Toutain P-L. The Decline and Fall of Materia Medica and the Rise of Pharmacology and Therapeutics in Veterinary Medicine. Front Vet Sci. 2022;0:1592. doi:10.3389/FVETS.2021.777809
- Campion DP, Dowell FJ. Translating Pharmacogenetics and Pharmacogenomics to the Clinic: Progress in Human and Veterinary Medicine. Front Vet Sci. 2019;6(FEB):22. doi:10.3389/FVETS.2019.00022
*Artigo publicado originalmente na edição n.º 159 da revista VETERINÁRIA ATUAL, de abril de 2021.