Resumo
O encarceramento da epiglote pela prega ariepiglótica pode ser resolvido cirurgicamente por incisão da mesma, idealmente sem provocar trauma nos tecidos envolventes, havendo várias abordagens cirúrgicas possíveis.
História clínica
Égua de 12 anos utilizada para passeio e para aulas em picadeiro. Apresentava ruído respiratório e dificuldade em desempenhar o exercício físico que lhe era pedido, assim como corrimento nasal, há cerca de um mês.
Sinais clínicos
Ruído inspiratório bastante audível em repouso e possível de localizar na laringe por auscultação com estetoscópio. Ausência de ruídos pulmonares à auscultação.
Diagnóstico
A endoscopia respiratória revelou presença de encarceramento da epiglote pela prega ariepiglótica que se encontrava inflamada e espessada, associado a deslocação dorsal do palato.
Tratamento
Procedeu-se à secção axial transnasal com bisturi em gancho com proteção da lâmina, guiada por endoscópio. Com o cavalo sedado em estação.
Desfecho
Após a cirurgia houve uma redução muito significativa do ruido respiratório, que deixou de ser audível ao fim de cinco dias. Em questionário telefónico um mês após a cirurgia, constatamos que o proprietário estava satisfeito com o desempenho da égua.
Discussão
A utilização do bisturi com proteção da lâmina torna o procedimento bastante mais seguro que a utilização do bisturi convencional, principalmente na fase de tração rostral orientada para fazer a secção axial da mucosa.
Introdução
O encarceramento da epiglote foi descrito pela primeira vez há 38 anos (Boles et al, 1978). É o resultado de um envolvimento do aspeto rostral da epiglote pela membrana ariepiglotica, levando a que deixe de ser possível visualizar o padrão vascular e a ponta afilada da epiglote e a que se observe uma prega livre de tecido imediatamente rostral à glote. A membrana ariepiglótica é constituída por bandas de tecido com origem no processo corniculado das aritenóides e que vão até ao bordo livre da epiglote e se unem à prega glossoepiglótica por baixo da mesma. Esta membrana encontra-se espessada em 20-98% dos casos, estando ulcerada em 45-50% dos casos. O encarceramento pode ocorrer de forma persistente ou intermitente, em repouso ou em trabalho e quando se torna crónico, há espessamento dos tecidos subepiglóticos (Epstein e Parente, 2007; Lacourt e Marcoux, 2011).
O encarceramento tem também sido associado a hipoplasia da epiglote e a deslocamento dorsal do palato (Epstein e Parente, 2007). Além da hipoplasia, situações como a inflamação e o edema dos tecidos subepiglóticos podem induzir a ocorrência de encarceramento. Representa uma incidência de 0,74 a 2,1% em cavalos avaliados ao acaso e de 2,1-9,5% em cavalos examinados em exercício em passadeira para investigação de quebra de performance ou de ruído respiratório (Epstein e Parente, 2007; Lacourt e Marcoux, 2011). Assim, está frequentemente associada a ruido respiratório com ou sem intolerância ao exercício, podendo ainda haver tosse e corrimento nasal (Coleridge et al, 2015).
O encarceramento pode ser resolvido cirurgicamente por incisão da membrana encarceradora, idealmente sem provocar trauma nos tecidos envolventes (Lacourt e Marcoux, 2011). Há duas técnicas cirúrgicas descritas que implicam anestesia geral, por receção da mucosa encarceradora através de laringotomia ou por incisão axial dessa membrana por via trans oral (Ross e Gentili, 1993; Lumsden et al, 1994). Existe no entanto uma técnica cirúrgica que pode ser executada em estação sob sedação e com o auxílio de endoscopia, por secção axial transnasal com bistouri em gancho sem proteção (Honnas e Wheat, 1988; Greet, 1995) ou com proteção, ou em alternativa com laser ou com electrocoagulação. A electrocoagulação parece no entanto originar elevado risco de recorrência e o laser é muito dispendioso (Lacourt e Marcoux, 2011). Se a secção axial for efetuada com um bisturi sem proteção e o cavalo se mexer repentinamente, há o risco de laceração iatrogénica do palato mole ou de outros tecidos envolventes (Lacourt e Marcoux, 2011). Coleridge et al (2015) descreveram ainda outra técnica transoral sob anestesia geral, com auxílio de endoscopia e utilizando um laço de arame obstétrico.
História Clínica
Égua de 12 anos utilizada para passeio e para aulas em picadeiro. Vacinada para Tétano e Influenza Equina há menos de seis meses e desparasitada com Ivermectina 200 µg/kg pv e Praziquantel 1mg/kg pv[a] PO, há dois meses. Estava a ser medicada há um mês com Sulfato de Dihidroestreptomicina 10 mg/kg pv e Penicilina G procaína 8 000 UI/kg pv [b] IM por dia, por apresentar ruído respiratório e dificuldade em desempenhar o exercício físico que lhe era pedido, assim como corrimento nasal.
Sinais Clínicos
Temperatura corporal 37,6ºC, frequência cardíaca 40 batimentos/minuto, frequência respiratória 12 movimentos/minuto e TRC ≤2 segundos. Apresentava ruído inspiratório bastante audível em repouso, o qual foi possível localizar na laringe por auscultação com estetoscópio e sem ruídos pulmonares à auscultação.
Diagnóstico
Após sedação com um agonista-α2, hidroclorido de detomidinac (0,01mg/ Kg pv, IV), procedeu-se à avaliação endoscópicad (figura 1 e 2) das vias aéreas superiores. Foi assim possível verificar a presença de encarceramento da epiglote pela prega ariepiglótica que se encontrava inflamada e espessada, associado a deslocação dorsal do palato.
Tratamento
Foi iniciada terapêutica anti-inflamatória com fenilbutazonae (4,4mg/kg pv, IV, BID, 2 dias; depois 2,2mg/kg pv, IV, BID mais 8 dias) para reduzir a inflamação da prega ariepiglótica e antibioterapia com sulfadoxina e trimetoprimf (15mg/kg pv, IV, SID, durante 10 dias, terminando 5 dias após a cirurgia). Ao 5º dia de medicação, procedeu-se então à cirurgia.
A égua foi colocada no tronco e sedada com hidroclorido de detomidinac (0,01mg/ Kg pv, IV) e tartarato de butorfanolg (0,014mg/kg pv, IV). Introduziu-se o endoscópio pela narina direita e instilou-se 60 ml de lidocaína através de sonda colocada pelo canal de trabalho. Cinco minutos depois introduziu-se o bisturi curvo desenvolvido por Lacourt e Marcoux (2011) (figura 3) com a protecção da lâmina fechada, através da narina esquerda.

Figura 3 – Bisturi em gancho com lâmina protegida desenvolvido por Lacourt e Marcoux (2011). Proteção em posição fechada
O bisturi foi posicionado sobre a epiglote, a protecção da lâmina foi aberta através de pressão exercida no gatilho (figura 4) e o gancho foi introduzido por baixo da prega encarceradora na direcção caudo-rostral no eixo médio da epiglote e retraído na direcção rostral até que a ponta do bisturi trespassasse ligeiramente a mucosa da membrana ariepiglótica encarceradoura. A protecção da lâmina é então fechada de novo e é exercida uma ligeira tracção rostral orientada de forma a cortar a mucosa, protegendo da lâmina os tecidos subjacentes à membrana ariepiglótica (figura 5).

Figura 4 – Bisturi em gancho com lâmina protegida desenvolvido por Lacourt e Marcoux (2011). Proteção em posição aberta

Figura 5 – Membrana ariepiglótica logo após ter sido efetuada a sua secção axial transnasal. a – ponta da epiglote já visível. b – membrana ariepiglótica após secção axial. c – palato mole já por baixo da epiglote
Não foi dado qualquer alimento ao cavalo nas 4 horas após a cirurgia para evitar aspiração para o aparelho respiratório, uma vez que toda a zona da glote foi alvo de anestesia local.
Após a cirurgia foi feita admimistração diária de medicação tópica directamente na região da glote, por sonda introduzida através do canal de trabalho do endoscópio (figura 6). Para tal foi utilizada uma solução com prednisolona 350mg h, sulfadoxina e trimetoprim 14000mg e 2800 mgf, Dimetilsulfóxido 90% 50 mililitros e Glicerina qb até 500 ml.

Figura 6 – Administração de medicação tópica na região da glote por sonda introduzida através do canal de trabalho do endoscópio
A membrana ariepiglótica seccionada continuou a mostrar-se inflamada e espessada no dia após a cirurgia (figura 7), pelo que a medicação anti-inflamatória, como referido anteriormente, foi continuada por cinco dias após a data da cirurgia. A égua manteve-se em repouso durante 15 dias.

Figura 7 – Membrana ariepiglótica um dia após ter sido efetuada a sua secção axial transnasal. a – ponta da epiglote já mais visível. b – membrana ariepiglótica seccionada axialmente. c – palato mole já por baixo da epiglote
Desfecho
Após a cirurgia houve uma redução muito significativa do ruido respiratório, que deixou de ser audível ao fim de cinco dias. A égua regressou a casa do proprietário para reduzir custos de internamento e ficou agendada uma endoscopia de controle aos quinze dias pós-cirurgia. Infelizmente o proprietário não compareceu à endoscopia de controle, tendo no entanto referido telefonicamente que a égua já não apresentava ruido respiratório e iria iniciar o trabalho gradualmente. Em questionário telefónico um mês após a cirurgia, constatamos que o proprietário estava satisfeito com o desempenho da égua.
Discussão
A utilização do bisturi com proteção da lâmina (Lacourt e Marcoux, 2011) torna o procedimento bastante mais seguro que a utilização do bisturi convencional (Honnas e Wheat, 1988; Greet, 1995), principalmente na fase de tração rostral orientada para fazer a secção axial da mucosa. Nesta fase há aumento da resistência devido à elasticidade da mucosa e à possível presença de material fibrótico. Assim é frequente haver um movimento brusco no sentido rostral quando se inicia a aplicação da força de corte, e com o bisturi convencional sem protecção da lâmina era muito mais fácil haver secção acidental do palato mole ou de outros tecidos adjacentes, até porque por vezes o cavalo pode fazer um movimento repentino ou deglutir nesta fase do procedimento (Epstein e Parente, 2007; Lacourt e Marcoux, 2011). Além disto, a lâmina deste bisturi com protecção tem um diâmetro superior, tornando mais fácil a sua inserção sob a mucosa, permitindo que a ponta do bisturi perfure a mucosa mais próximo da ponta da epiglote para que seja possível fazer a secção da totalidade do comprimento. Este bisturi é também mais seguro de introduzir e retirar por via nasal, uma vez que a lâmina faz este percurso com protecção (Lacourt e Marcoux, 2011).
A utilização do bisturi com protecção de lâmina, evita também a anestesia geral e os riscos que esta acarreta, e é um procedimento bastante rápido de executar (Lacourt e Marcoux, 2011). Esta técnica de incisão provoca menos inflamação pós-operatória que a secção por laser (Lacourt e Marcoux, 2011), no entanto neste caso em particular manteve-se após a cirurgia alguma inflamação e espessamento da membrana ariepiglótica que já se encontrava inflamada e espessada à partida devido ao arrastar da situação clínica que tinha no mínimo um mês de evolução.
Autora:
Paula Tilley, Hospital Escolar – Unidade de Equinos, Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa
Bibliografia
Boles, CL, Raker, CE, Wheat JD. Epiglottic entrapment by arytnoepiglottic folds in the horse. J Am Vet Med Assoc 1978, 172:338-42.
Coleridge, MO, DiGiovanni DL, Rodgerson, DH, Spirito MA. Endoscopic, transoral, reduction of epiglottic entrapment via wire snare technique. Vet Surg 2015, 44(3):348-51.
Epstein, KL and Parente, EJ. Epiglottic fold entrapment, In McGorum BC, Dixon, PM, Robinson, NE and Schumacher, J. Equine Respiratory Medicine and Surgery 2007, 30:459-65.
Greet, T. Experiences in treatment of epiglottal entrapment using a hook knife per nasum. EVJ 1995, 27:122-6.
Lacourt, M, Marcoux, M. Treatment of epiglottic entrapment by transnasal axial division in standing sedated horses using a shielded hook bistoury. Vet Surg 2011, 40(3):299-304.
Lumsden, JM, Stick JA, Caron JP, Nickels, FA. Surgical treatment for epiglottic entrapment in horses: 51 cases (1981-1992). J Am Vet Med Assoc 1994, 205(5):729-35.
Ross, MW, Gentile, DG, Evans, LE. Transoral axial division, under endoscopic guidance, for correction of epiglottic entrapment in horses. J Am Vet Med Assoc 1993, 203(3):416-20.
[a] Eqvalan®, Merial Animal Health, Essex, UK.
b Combiótico®, Zoetis Portugal, Lagoas Park, Ed10, 2740-271 Porto Salvo, Portugal.
c Domosedan®, Pfizer, NY 10017, USA.
d Karl Storz, Videoendoscópio, Postfach 230, 78503 Tuttlingen, Alemanha.
e Phenylarthrite®, Vétoquinol, Rua Consiglieri Pedroso 123 Ed H, 2730-056 Barcarena, Portugal.
f Trivetrin®, MSD Animal Health, Lda. Ed Vasco da Gama, nº 19, Quinta da Fonte, Porto Salvo 2770-192
Paço de Arcos, Portugal.
g Torbugesic®, Fort Dodge Animal Health, Fort Dodge, IA 50501.
h Lepicortinolo®, Decomed Farmacêutica, S.A., Rua Sebastião e Silva, 56 2745-838 Massamá, Portugal.