Maria Inês Barros tem duas paixões: o tiro e a medicina veterinária. Uma levou-a os Jogos Olímpicos de Paris este verão como a primeira mulher portuguesa a participar no concurso de tiro com armas de caça em fosso olímpico. Veio de lá com um 8.º lugar, o que garantiu o quarto diploma olímpico da comitiva portuguesa, isto depois de, em 2023, já se ter sagrado campeã europeia da modalidade.
A outra paixão ainda não sabe bem para onde a irá levar. Surgiu ainda em criança, junto dos muitos e variados animais da família, o que faz com que tenha um gosto particular pela clínica, mas ainda está a ponderar em que moldes praticará a profissão veterinária.
Certo é que, depois da exaustiva preparação para o maior evento do desporto mundial, o foco este ano da jovem de Penafiel é acabar o curso no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto antes de iniciar a preparação para lutar pela presença em Los Angeles 2028.
Como foi a experiência que viveu nos Jogos Olímpicos de Paris?
Foi um misto de emoções e de surpresas. De emoções porque, como é normal, estava muito nervosa por ser a primeira edição de Jogos Olímpicos em que participava. Acabei por conseguir controlar os nervos e surgiu apenas a ansiedade normal pré-competição, que existe sempre. Durante a competição mantive-me calma, consegui desfrutar dos momentos bons e também dos momentos menos bons.
As surpresas surgiram porque estava com muitas expectativas para os Jogos Olímpicos, afinal é o maior palco desportivo que existe, e fiquei surpreendida pelas condições do alojamento em que nos puseram.
Não ficou instalada na aldeia olímpica, em Paris?
Não. Ficamos em Chateauroux, onde se realizou a competição de tiro, que fica a cerca de 300 quilómetros, por isso era impossível dormir na aldeia olímpica.
Só no meu último dia consegui passar na aldeia olímpica, acabei por almoçar lá e vi os alojamentos.
Mas no sítio onde estávamos, pelo que percebi, havia algumas opções para ficarmos hospedados e eu fiquei num liceu.
“Desde que comecei nas competições de tiro que ir aos Jogos Olímpicos era o meu grande objetivo.” – Maria Inês Barros
E conseguiu ir à cerimónia de abertura? É um momento sempre muito aguardado pelos atletas…
Eu é que tomei a decisão de não ir. Falei com o meu treinador e ir à cerimónia de abertura implicava ir mais cedo – fiquei quase duas semanas nos Jogos – e pela experiência que ouvi do meu treinador e de outros atletas, quanto mais tempo estivesse lá pior seria porque o ambiente afeta-nos cada vez mais. Queria imenso ir à cerimónia de abertura, mas tive de tomar esta decisão pelo melhor resultado desportivo. Estava a treinar bem na altura, ia com alguns resultados bons de palmarés e havia alguma expectativa e, então, tive de fazer essa escolha.
A competição correu-lhe bem. No palmarés levava o título de campeã europeia de 2023 e nesta primeira participação nos Jogos Olímpicos só o desempate é que não lhe permitiu ir à final. Ficou satisfeita com o 8.º lugar e com o diploma olímpico?
Claro, fiquei radiante porque superei as minhas expectativas. Havia sempre a hipótese de medalha, mas tive de ser realista nos meus objetivos. Sou muito pessimista e se colocar as expectativas muito lá em cima e depois se não se concretiza fico muito mal. Sou a minha pior inimiga. Tive de colocar um objetivo pessoal desafiante, mas credível. O meu objetivo nos Jogos era fazer o meu melhor resultado pessoal. Até à altura a minha melhor marca eram 119 acertos em 125 possíveis. Coloquei como objetivo os 120, uma marca que queria há muito ultrapassar e ainda não tinha conseguido. Até porque nos Jogos Olímpicos de Tóquio os 120 pontos nas mulheres ainda deram acesso à final.
Fiz 121, mas não chegou para ir à final. É certo que depois, na final, a medalha de bronze fez 121 pontos.
Foi a Paris detentora do título de campeã europeia da modalidade. Como as adversárias a olhavam? Sentiu o peso desse título?
Em relação ao ambiente que vivi nos Jogos Olímpicos com as adversárias, notei que elas não ligavam a mais nada a não ser à sua preparação. Foi completamente diferente do que estou habituada. Noutras competições há momentos de lazer e de convívio, mas nesta não houve. Só mesmo depois da competição e, mesmo assim, foi um momento agridoce porque havia quem tivesse conseguido atingir os objetivos e quem tivesse ficado aquém das expectativas.
Confesso que eu também estava concentrada no meu desempenho e vivi um pouco na minha bolha.
Aos 23 anos foi a primeira mulher portuguesa a participar nuns Jogos Olímpicos na competição de tiro com arma de caça. Como se sente enquanto pioneira nesta modalidade na comitiva nacional?
Desde que comecei nas competições de tiro que ir aos Jogos Olímpicos era o meu grande objetivo. Apesar de a secção feminina do tiro com armas de caça ter crescido desde que comecei, este era sempre um patamar que ainda não tínhamos atingido. Já temos cerca de 10 atletas olímpicos [desta modalidade] nos homens, era algo que tínhamos de conquistar e era mesmo o meu grande objetivo.
Quando fui ao Campeonato da Europa foi um dos momentos mais altos da minha carreira, não só pelo resultado, como de felicidade por ter alcançado esse objetivo. Agora, acho que ainda não tenho palavras para descrever o que senti por cumprir este objetivo de ir aos Jogos. Foi muito especial.
A sua ligação a esta modalidade é quase uma herança familiar. Como nasceu o interesse pelo tiro aos pratos com arma de caça?
Tudo começou com o meu avô. Ele não fazia tiro aos pratos, era caçador, apenas de vez em quando ia ao campo de tiro experimentar a arma, mas não tinha licença para as competições. Isso incutiu o gosto no meu pai e no meu padrinho, que é o irmão mais novo do meu pai, e os dois acabaram por ter licenças e participar em provas de tiro [aos pratos].
O meu pai começou a ir às competições quando eu nasci e a minha primeira viagem de avião até foi por causa de uma competição que o meu pai participou nos Açores, tinha eu um mês e pouco.
Por isso, desde pequena que ando nestas andanças, que acompanho as provas do meu pai, e quando tinha 11 anos pedi-lhe para experimentar para ver se gostava. A partir do momento que dei o meu primeiro tiro fiquei viciada. Tirei a licença, comecei nas competições e aqui estou.
Como é que a família tem acompanhado o percurso nas competições e como viveram o momento de Paris?
Eles têm acompanhado e apoiam-me imenso. A minha família mais próxima foi ver-me aos jogos. Foi uma experiência nova para eles porque nunca tinham visto a dimensão de uma prova internacional de tiro e foram logo aos Jogos Olímpicos que é o melhor exemplo.
“Nós aprendemos a curar, a manter a qualidade de vida e chegar a um ponto em que a eutanásia é o melhor é muito difícil de interiorizar”
Nos últimos anos, o papel dos animais de companhia nas famílias tem evoluído muito e exigido dos médicos veterinários novas ferramentas de trabalho. Tem acompanhado as preocupações da classe veterinária em melhorar as soft skills dos profissionais para lidarem com os tutores e com esta nova realidade?
É algo que acho fundamental hoje os médicos veterinários desenvolverem as suas soft skils para conseguirmos ter outro tipo de empatia com os tutores. Eles olham para os animais cada vez mais como um elemento da família, também têm a noção de que o animal não vive para sempre e tem uma vida mais reduzida que o ser humano e é sempre difícil lidar com isso.
Tanto eu como os meus colegas sentimos falta disso [de formação nesta área], mas, pelo que percebi, o plano de estudos do ICBAS foi remodelado e espero que acrescentem essa componente porque faz falta.
Também é importante para as questões da saúde mental dos veterinários. Falam entre os alunos sobre estas questões da saúde mental da classe, sobre o que vos preocupa mais antes de entrarem no mercado de trabalho?
Nas aulas do curso de veterinária apercebemo-nos que é uma profissão que tem uma taxa de suicídio muito elevada. Até ficamos surpresos porque achamos que isso aconteceria mais noutras áreas, mas percebemos o porquê: é difícil lidar com o tutor, mas também é difícil lidar com a impotência, porque às vezes são casos em que já não há nada a fazer e nós temos de nos mentalizar que o melhor para o animal é dar um fim à sua vida. Explicar isso ao tutor ao mesmo tempo que estamos a tentar convencer-nos a nós próprios de que o melhor para o animal é a eutanásia custa imenso. Nós aprendemos a curar, a manter a qualidade de vida e chegar a um ponto em que a eutanásia é o melhor é muito difícil de interiorizar.
E há vários veterinários que lidam com isso e não partilham as suas experiências, ficam a remoer aquilo e depois acontece o pior.
Tivemos um professor que passou por isso com um aluno e nas suas aulas acabamos por ter muitas experiências em grupo para partilhar o pior e o melhor [da vida na faculdade]. Ele tinha muito cuidado com isso e fomentava essa partilha. A taxa de suicídio é muito alta na classe e nunca sabemos se vai acontecer com alguém muito próximo de nós.
É um tema sensível no nosso curso.
Falemos então da sua outra paixão, a medicina veterinária. Como é que este amor entra na sua vida?
Desde muito nova que gosto de animais, sempre tive animais em casa. E a minha avó no campo tinha cabrinhas, ovelhas, galinhas, sempre tive contacto com animais desde criança.
Quando na escola davam o papel no início do ano com a pergunta “o que queres ser quando fores grande?” eu escrevia sempre médica veterinária.
Contudo, com o passar dos anos fui ficando indecisa, fui ponderando outras áreas, como medicina humana. No momento de inscrição na universidade – entrei com o estatuto de alta competição, ou seja, só temos três opções de escolha – até estava inclinada para a medicina humana, mas não entrei.
Fiquei triste quando soube que não tinha entrado em medicina humana, mas foi só mesmo até começarem as aulas e ter mais contacto com a medicina veterinária. Aí pensei logo “ainda bem”.
Mas é difícil conciliar a vida académica com a alta competição? Nomeadamente conjugar a alta competição com um curso tão exigente como é o de medicina veterinária…
Não tem sido fácil, mas quando se gosta muito do que se faz arranja-se tempo para tudo. Para além dos treinos, o que é mais difícil são as competições internacionais. Nos últimos anos de 2024 e 2023, os mais críticos da preparação para os jogos, ia a mais competições, tinha mais estágios. Houve meses em que se estivesse uma semana em Portugal era muito. Foi muito complicado gerir isso, porque à medida que avançamos no curso de medicina veterinária a exigência vai aumentando e o 5.º ano é muito prático. Numa cadeira pedem para fazer turnos no hospital, noutra cadeira pedem trabalhos, noutra cadeira são mini-testes e ambulatórios. É difícil gerir isto tudo.
Em prol da minha saúde mental, [o ano passado] inscrevi-me apenas em metade das cadeiras do 5.º ano no segundo semestre. Este ano estou a fazer a outra metade.
Foi uma decisão que me custou imenso. Até à última hora pensei que ia conseguir fazer tudo, mas, olhando para trás, ainda bem que optei apenas por fazer metade, porque se foi muito difícil fazer só metade das cadeiras, imagina se tivesse tentado fazer tudo. Necessito de me dedicar muito tempo a uma área e depois a outra acaba por ficar um pouco desfalcada.
“Fiquei triste quando soube que não tinha entrado em medicina humana, mas foi só mesmo até começarem as aulas e ter mais contacto com a medicina veterinária. Aí pensei logo “ainda bem.” – Maria Inês Barros
Quantas horas treina por semana?
No tiro usamos uma parte da manhã ou uma parte da tarde para treinar no campo de tiro. Quando estava a fazer a preparação para os Jogos tentava treinar duas vezes por semana e depois ao fim de semana tinha sempre estágio.
Já está no 5.º ano, quase a terminar o curso, neste percurso na medicina veterinária o que tem gostado mais: as aulas práticas, o trabalho de campo, a investigação? O que lhe dá mais prazer?
Acho que gosto um bocadinho de tudo. Estou mais inclinada para a área de clínica de pequenos animais ou para a área da patologia [clínica]. Quando comecei o curso achava que as saídas profissionais iam ser apenas a clínica de pequenos animais ou a clínica de grandes animais e, se calhar, animais exóticos. Nunca pensei que a medicina veterinária pudesse ter tantas saídas no mercado de trabalho. À medida que fui avançando no curso fui-me apercebendo de mais hipóteses, de mais oportunidades e fui descobrindo do que realmente gostava na veterinária e estou dividida entre estas duas áreas.
Isso significa que as cabrinhas ficaram para segundo plano?
Sim. Nos ambulatórios que fazemos com os professores dá para perceber como é o dia a dia deles e não fiquei muito fã do dia a dia do veterinário de animais de produção. Não me imagino a fazer aquilo todos os dias no meu futuro.
Imagino-me muito mais a fazer patologia [clínica], que também faz trabalho de campo, ou na área de pequenos animais.
Mas mesmo que vá para patologia [clínica] acho que vou sentir falta da prática clínica com os animais porque gosto muito da medicina interna. Se puder ficar num sítio onde faça clínica, mas também possa fazer alguma preparação na patologia, era o ideal.
Continuando a falar de futuro. Daqui a quatro anos são os Jogos Olímpicos de Los Angeles. Já está a estabelecer objetivos para os próximos anos? Pretende marcar presença nos Jogos Olímpicos de 2028?
Estou a trabalhar para isso. Este ano, que é o ano zero, que em princípio não haverá competições com quotas em disputa, vou tentar concentrar-me para acabar o curso e ter esse objetivo concretizado.
Sempre tive muitos objetivos no desporto e continuo a ter muitos objetivos nos quais quero colocar o visto de concretizado. Vou para trabalhar para isso e espero conseguir o apuramento para os próximos jogos olímpicos.
O apuramento é através de campeonatos internacionais?
No tiro temos o Campeonato da Europa, o Campeonato do Mundo e as Taças do Mundo e as quotas variam muito [de ciclo olímpico para ciclo olímpico]. No ciclo que terminou este ano, as quotas foram distribuídas apenas pelos campeonatos, mas para Tóquio também houve quotas em disputa nas Taças do Mundo.
Varia um pouco de ciclo para ciclo e ainda não sabemos quais são as regras para o novo ciclo.
Na medicina veterinária o objetivo imediato é acabar o curso?
Sim, terminar este ano e depois tentar fazer o estágio o mais cedo possível para não coincidir com a época alta do tiro que é no segundo semestre.