Começou em 2020 o processo de revisão de toda a legislação europeia relativa ao bem-estar animal e é esperado que até final deste ano seja conhecido o novo regulamento que irá conduzir a produção animal. O tema esteve em discussão na última conferência VIDA RURAL | Bem-estar animal: desafios na cadeia de valor.
A chefe de Divisão de Bem-Estar Animal da Direção-Geral da Alimentação e Veterinária (DGAV), Maria Jorge Correia, trouxe ao encontro alguns elementos que poderão integrar o próximo quadro normativo.
Segundo a responsável, este processo de revisão “é algo complexo, amplo e de grande importância para o setor já que vai abranger todas as áreas desde a produção, ao transporte e abate” e será enquadrado na estratégia Do Prado ao Prato, elemento fundamental do Pacto Ecológico Europeu, no qual o bem-estar animal “é considerado uma área prioritária”.
De acordo com a oradora, “a legislação atual tem conceitos vagos e que é necessário trabalhar, nomeadamente os indicadores de bem-estar animal, e ir ao encontro das expectativas da sociedade”. A iniciativa de cidadãos europeus End the Cage Age é um exemplo do que a sociedade espera do próximo quadro regulatório. Esta iniciativa pediu à Comissão Europeia que acabe com os sistemas de confinamento animal e os representantes europeus já admitiram a proibição progressiva de sistemas de confinamento dos animais, sendo necessário acautelar os pareceres científicos para o efeito e realizar estudos do impacto socioeconómico desta iniciativa nos vários setores.
Que cenários estão em cima da mesa?
Não se sabendo ainda qual será o desenho final do novo articulado europeu, Maria Jorge Correia avançou no encontro algumas das ideias que têm estado a ser discutidas no seio das instituições europeias e que podem ser incluídas no documento final.
Para além da possibilidade de proibição ou limitação de determinados sistemas de criação – nomeadamente das gaiolas enriquecidas para galinhas poedeiras ou coelhos, das maternidades para porcas, dos compartimentos para vitelos – a representante da DGAV mencionou igualmente a questão da formação dos produtores. “Na DGAV temos vindo a defender que seja uma obrigatoriedade, já que, atualmente, é apenas aconselhado que os produtores tenham competência, experiência ou formação”, frisou, lembrando que a Direção-Geral já criou cursos de formação sobre bem-estar animal que abrangem a maior parte das espécies pecuárias e “aconselhamos vivamente que os produtores façam esta formação”.
Outra ideia que está a ser debatida na Comissão Europeia são os planos de bem-estar animal. A intenção é “que haja procedimentos ao nível das explorações baseados em boas práticas, suportados por um médico veterinário e por técnicos assistentes de exploração, e defendemos que nestes planos de bem-estar se incluam os planos de contingência, uma vez que há uma série de contingências que as explorações podem ter que enfrentar, por exemplo a questão dos incêndios”, explicou a responsável.
Especificamente para cada espécie, Maria Jorge Correia frisou que, nas aves, além da proibição quase certa das gaiolas, o que estará em cima da mesa serão os prazos para esta conversão e os apoios que os produtores necessitarão para a realizar.
Sobre a possibilidade de proibição do corte de bico, “defendemos que se houver proibição de corte de bico esta não pode ocorrer ao mesmo tempo da conversão do sistema [sem gaiolas]”, explicou a oradora. A DGAV defende que os produtores devem aprender a funcionar com o sistema que será determinado pela legislação e só quando funcionarem bem com o novo articulado devem partir para outro tipo de medidas.
O acesso ao ar livre, o enriquecimento ambiental e os tempos de crescimento mais lento das aves serão outras matérias a serem incluídas.
Sobre os bovinos e vitelos “vão surgir requisitos específicos para bovinos de leite e de carne”, avançou a responsável, tendo adiantado que a questão das mutilações nestas espécies, alvo de grande discórdia, já tem uma tomada de posição da DGAV: “Defendemos que pode ser feita, mas tem de ser com anestesia e analgesia, até uma certa idade e com métodos autorizados. Não pode ser feita de qualquer maneira.”
O confinamento, se será mantido ou permitido até determinada idade, assim como os pavimentos e o enriquecimento ambiental serão outras matérias reguladas.
Em relação aos suínos, regular “a velha questão do corte de cauda é a grande prioridade”, referiu, faltando saber se vai ser proibida tout court ou se existirão diretrizes sobre isto, assim como para outras mutilações.
As maternidades serão, igualmente, alvo de novas diretrizes, nomeadamente ao tempo de contenção das porcas e à delimitação do espaço, assim como os períodos de transição para a implementação das medidas reguladas.
Transporte: apostar na divisão de responsabilidades
As novas regras vão incidir igualmente sobre as condições do transporte animal, “considerada uma parte muito crítica de todo este processo”.
A ideia que está a ser debatida nos organismos europeus passa por “espalhar responsabilidades entre o detentor, o transportador e o organizador e, eventualmente, definir determinadas categorias de animais que não são aptos a ser transportados”, avançou Maria Jorge Correia.
A possibilidade de delimitação dos tempos de viagem é um ponto muito sensível para Portugal, que está num dos cantos da Europa, assim como a exportação para países terceiros. “Estamos a exportar animais para Israel e é algo muito importante para a nossa produção, mas há quem queira proibir esta exportação”, advertiu a oradora, acrescentando que a obrigatoriedade de melhoria das condições de transporte marítimo, rodoviário e aéreo também é tida como certa, assim como a revisão do sistema de formação de condutores.
Neste item, uma das questões críticas é a temperatura. A European Regional Science Association (ERSA) já publicou recomendações para as temperaturas durante o transporte e, por exemplo, para suínos recomenda o máximo de 25º C. “Com o registo de temperaturas cada vez mais elevadas, se tivermos de cumprir esta temperatura não nos será possível transportar animais durante seis meses do ano”, explicou Maria Jorge Correia.
Sobre o abate, o que se discute é a proibição dos tanques de imersão para aves, a utilização de óxido de carbono para suínos, a necessidade de aprovação prévia de equipamento de atordoamento e a videovigilância nos matadouros.
A rotulagem de certificação em bem-estar animal também está em discussão e ainda “não se sabe se vai ser voluntária ou obrigatória” e se vai ter um ou vários níveis, como já acontece hoje com os ovos.
Certo é que, assegura Maria Jorge Correia, “a partir do final do ano vamos ter grandes desafios com esta legislação de bem-estar animal que, com certeza, vai ter impacto na produção, no transporte e no abate”. A responsável apelou para o trabalho em conjunto com todos os setores produtivos para que, em conjunto com a DGAV, possam ser apresentadas em Bruxelas propostas baseadas em factos concretos. “Contamos com o envolvimento de todos os stakeholders para este trabalho”, rematou.