Todos os leitores saberão certamente que ter um animal acarreta uma enorme responsabilidade. Muitas pessoas, sem a preparação e condições necessárias, acabam por se dar conta disso quando já é tarde. Ou seja, quando já trouxeram o animal para o seu lar.
Como explicar então, de forma muito resumida, a origem deste problema? O abandono de animais remonta, muito provavelmente, ao início da domesticação dos mesmos. E, como não poderia deixar de ser, a culpa de os deixar à sua sorte é inteiramente da espécie humana, que tomou a decisão de os acolher em primeiro lugar. Assim sendo, quais poderiam ser as causas que levam alguém a cometer um ato tão ignóbil?
De acordo com a DGAV, todos os anos são abandonados cerca de 30 mil animais, e uma das razões apontada é a incapacidade financeira. Os custos consideráveis associados aos nossos animais são, com frequência, desvalorizados ou até inteiramente desconhecidos por parte das pessoas. Em lugar de fazer uma pré-avaliação das necessidades para ter um animal a seu cargo, muitas delas só se dão conta quando já os têm. Exemplo disso é a falta de capacidade para fazer frente a despesas de saúde, em parte por um total desconhecimento dos valores praticados, mas também por não saberem de antemão que os animais, tal como as pessoas, necessitam de variados cuidados de saúde.
A falta de tempo assume também particular relevo e mostra, uma vez mais, a gritante falta de informação e preparação prévias. A isto, acrescento ainda o egoísmo exclusivo da nossa espécie, que leva a que se registem as maiores taxas de abandono durante os períodos de férias, sobretudo no Verão.
Mas antes, e com maior preponderância que as anteriores, está a preparação através do nível de informação e formação adquiridas. Estas duas são, de certa forma, as keystone species no ecossistema da adoção responsável.
Com a chegada da pandemia verificou-se um aumento exorbitante de adoções. Muitas, acredito, aconteceram pura e exclusivamente para combater a monotonia e aborrecimento causados por esta situação, sem qualquer intenção de ter um verdadeiro companheiro para todas as horas e momentos. Sem grande surpresa, logo após o levantamento das restrições, o número de animais abandonados ultrapassou em grande medida os valores registados nos últimos anos, com 43.600 cães e gatos abandonados em Portugal, de acordo com um relatório do ICNF.
Novamente, o toque egocentrista na natureza de alguns levou-os a querer compensar esse período de maior solidão com um animal, com um evidente déficit de preparação.
O abandono é, irrefutavelmente, uma questão que está longe de alcançar qualquer tipo de resolução. Não obstante, há certos aspetos e critérios que poderão contribuir para a sua atenuação.
No que diz respeito a profissionais de saúde animal, a proximidade com tutores ou até mesmo com eventuais futuros tutores (conhecidos que tenham demonstrado interesse e vontade em adotar/comprar um animal) poderá ser determinante. Deverá ser levado a cabo um processo de consciencialização copioso nos CAMV, seja ele transmitido oralmente em consulta, através de materiais informativos de suporte e nas respetivas redes sociais. A listagem e enumeração da quantidade de tarefas e obrigações que implica ter um animal deverão ficar bem inculcadas na mente de todos os recém-tutores.
Mas será que apenas é possível agir perante atuais ou recém-tutores? De que forma poderemos também sensibilizar o resto da sociedade? Um meio de divulgação tradicional e altamente eficaz – e que continua a representar uma das vias mais resilientes no mundo da comunicação – é o word of mouth. Os veterinários, sendo profissionais de primeira linha, são alguém cuja palavra e conhecimento de causa representam um veículo de informação fiável junto das pessoas com as quais se relacionam, em momentos extraprofissionais. Devem valer-se ao máximo destes atributos.
Outro tema que merece ser enfatizado é a insistência e a persistência na esterilização. Salvo, obviamente, algumas exceções, como são os casos em que, segundo a recomendação de colegas especializados em comportamento, a intervenção esteja contraindicada. Dentro da classe, todos estamos conscientes da taxa de reprodução dos animais em causa, que frequentemente leva a mais abandonos.
Tal como referi, a informação e formação são os pináculos que permitirão fazer face a este problema. Deverá haver uma maior aposta na inclusão de módulos formativos específicos e obrigatórios no plano de aprendizagem a nível nacional – tal como está a acontecer no país vizinho, tornando-se obrigatório completar um curso para poder ter um cão. Precisamos de mais iniciativas que visem educar e sensibilizar a sociedade de forma eficaz.
Finalmente, a criação de um gabinete de apoio a todos os que adotem animais poderá ser um precioso contributo. Com um acompanhamento e monitorização constantes, será mais simples antecipar e prevenir potenciais casos de abandono.
Está à vista de todos que o abandono animal é um tema extremamente complexo que envolve várias componentes e cujas repercussões afetam vários intervenientes. Há que frisar que, além de afetar penosamente a vida de milhares de animais de companhia em Portugal, este é um problema que poderá afetar diretamente a saúde pública. O aumento de abandonos juntamente com associações e CROs sem capacidade para acolher mais animais, traduz-se num maior número de animais errantes sem qualquer tipo de controlo sanitário, aumentando a probabilidade de uma maior disseminação de zoonoses.
Apesar de haver quem defenda que o foco da solução estará na criação de mais locais de acolhimento, estou convicto de que um maior investimento em formação e informação será determinante para reduzir os números atuais e alcançar um ponto de inflexão. Apenas com uma sociedade que encare a adoção de um animal como um compromisso para toda a vida – optando ou não, por isso, adotar – será possível reverter este flagelo que assola o mundo contemporâneo.
* Bernardo Soares – UPPartner DVM / animal health advisor (bernardo.soares@uppartner.pt)
** Artigo publicado na edição 163, setembro, da revista VETERINÁRIA ATUAL.