Há uns dias tive a oportunidade de ler um artigo aqui na revista acerca do “novo cenário” da medicina veterinária. Esse artigo centrava-se nesta realidade que se desenha, já há algum tempo, relacionada com a corporatização do setor da medicina veterinária de animais de companhia.
Este tema não é novidade, mas sem dúvida que, nos últimos anos, tem ganhado um novo destaque. Penso que isso se deva ao facto de, só agora, ao fim de alguns anos dentro desta realidade, é que começámos todos a entender o real impacto no nosso setor, no geral, e nos médicos-veterinários, em particular.
No nosso País, a consolidação ou corporatização do setor ainda tem uma expressão relativamente pequena, pelo menos comparado com outros países do centro e norte da Europa, como o Reino Unido ou a Suécia, onde a realidade é bem diferente. Apesar disto, esse mesmo artigo referia que, em Portugal, 21% dos veterinários já trabalhavam em práticas corporativas, o que já é qualquer coisa…
Neste artigo gostava de falar sobre uma “nova faceta” desta realidade.
Nos últimos tempos tive oportunidade de contactar com colegas de diferentes países, principalmente donos ou gestores de clínicas e hospitais. Se há alguns anos o que se verificava neste tipo de círculos era um certo “hype”, pela entrada das corporações e pela oportunidade de integrar as mesmas, a realidade é que agora o tom das conversas demonstra “um vento de mudança” a começar a soprar. Neste momento ainda é uma “brisa moderada”, mas já se começa a sentir sem dúvida um certo “movimento contra-corporativo” ou “independentista” no tom das conversas e nos temas discutidos. Posto nestes termos parece algo revolucionário ou até algo belicista, o que não é, de todo, o meu objetivo. Ainda para mais no estado atual em que o nosso mundo se encontra, chega de tensões!
O que se verifica é que, perante os desafios e particularidades que esta nova realidade está a trazer ao setor, há um sentimento de resistência à consolidação/corporatização, principalmente pelas unidades que não fazem parte das realidades corporativas. São vários os fatores por detrás deste sentimento inicial, maioritariamente ligados aos profissionais, mas, atualmente também ligados aos comportamentos dos clientes.
Em Portugal esta tendência ainda não é por demais evidente, talvez também porque a expressão da corporatização ainda é pequena, mas em países como Inglaterra e, até já aqui ao lado, em Espanha já começa a ser algo mais expressivo.
Na minha opinião alguns dos fatores preponderantes para este sentimento são:
- Perda de autonomia e personalização: Muitos colegas têm o receio de significativas perdas de autonomia nos processos de decisão e que as práticas de grupo levem à descaracterização das suas clínicas e hospitais;
- Pressão profissional e bem-estar: Existe a preocupação de que o ambiente corporativo contribua para piores condições de trabalho, objetivos irrealistas e menor satisfação profissional (apesar de, pessoalmente, não estar absolutamente certo disto, o que é certo é que existem já dados que suportam estas preocupações);
- Preocupações éticas e de precificação: Entre os clientes e também entre alguns profissionais estão a aumentar as críticas relativas ao aumento dos preços “exagerado” e ao foco no lucro em detrimento do nível de cuidado. Até pelos governos começa a haver preocupação. Por exemplo, no Reino Unido está a decorrer uma investigação governamental para avaliar se a consolidação está a limitar a concorrência e a transparência nos preços.
Pessoalmente não sou, por princípio, contra a entrada destas grandes corporações no setor veterinário, sempre disse que, se as “coisas fossem bem feitas” poderia inclusivamente trazer vantagens ao setor e à classe.
Além disso, é importante referir que não tenho dados suficientes e certezas absolutas acerca de alguns dos fatores referidos, sendo esta, apenas, uma opinião empiricamente fundamentada.
No entanto, o que é facto é que há uma nova realidade, com novos desafios muito particulares e que, por outro lado, este movimento de “resistência está a ganhar força. O futuro dirá qual será o caminho.
Na minha opinião, o futuro será de convivência entre estas duas realidades. Essa convivência poderá ser pontualmente tensa, mas será uma convivência natural. Acredito que há espaço para ambas as realidades poderem coexistir sem grandes atritos e, quem sabe com vantagens para todos, se algumas premissas importantes forem asseguradas. Premissas como o respeito e a dignidade profissional entre colegas, premissas de honestidade, de dignificação da profissão e de foco no que é mais importante: o cuidado dos nossos pacientes e respeito pelos nossos clientes.
Do que tenho a certeza é de que as clínicas e hospitais que se mantiverem fora destes grupos consolidados terão de se preparar e equipar para uma competição “mais séria”. Terão que profissionalizar e capacitar a sua gestão! Poderão ter de rever as suas estratégias de posicionamento e abordagem ao mercado, práticas de marketing, terão de capacitar as suas lideranças e equipas e não apenas com competências técnicas, mas também em soft skills. A sua gestão financeira terá de ser mais cuidada, a sua estratégia de preços pode ter de ser revista e adequada à sua situação, a atração e manutenção de talentos tem de ser planeada, etc, etc, etc.
É, pois, importante que os líderes dessas organizações se armem e capacitem com estas ferramentas e que apoiem a capacitação das suas equipas ou que, em alternativa, considerem investir na profissionalização da gestão do seu CAMV através da contratação de serviços especializados de consultoria e gestão (prática completamente banalizada nos Estados Unidos e cada vez mais comum na Europa).
Em vez de resistirmos à mudança (inevitável), devemos preparar-nos para ela. Assim, sairemos mais fortes, com organizações mais eficientes, lucrativas e, acima de tudo, que promovam a felicidade e realização dos veterinários — sejam eles donos de clínicas ou não.
Quanto aos colegas que optem por integrar estes grupos terão também de se preparar para mudanças significativas. Aqui as soft-skills como a comunicação, a gestão de equipas, a delegação e a negociação serão cruciais para assegurarem a melhor transição possível para uma nova realidade e posição dentro da organização.
Nenhuma das realidades é isenta de problemas e desafios e nenhuma das realidades é plena de vantagens, como tudo na vida…
Deixo duas matrizes SWOT onde tentei ilustrar, de forma gráfica e simples, o que me parece ser uma visão adequada (se bem que simplista e generalista) destas duas diferentes realidades.
*Médico veterinário; consultor; coach
**Artigo de opinião publicado na edição 192, de abril, da VETERINÁRIA ATUAL