Os desafios atuais inerentes ao setor da Medicina Veterinária não decorrem apenas da natural evolução técnica e tecnológica dos serviços oferecidos. Não se limitam apenas à evolução das mentalidades dos donos, num mundo de informação cada vez mais rápida e partilhada. Em Portugal, o maior desafio atual deste setor pode mesmo passar por uma questão de fundo cada vez mais difícil de negar: o excesso de oferta de mão-de-obra ao nível do Médico Veterinário. A afirmação anterior poderá passar por ser discutível e polémica. Este artigo pretende clarificar a questão, comparando o que se passa no nosso país com outros países da Europa, uns semelhantes ao nosso, outros mais maduros.
Já no ano 2000 a Federação de Veterinários da Europa (FVE) identificou o problema no estudo Veterinary Demography: A Threat To Quality? A FVE é uma organização que incorpora as entidades que, como a Ordem dos Médicos Veterinários, representam oficialmente os Médicos Veterinários nos diferentes países europeus. Este estudo constitui, portanto, uma fonte imprescindível tanto para a caracterização histórica da evolução da profissão veterinária na Europa, como para a identificação dos seus problemas e consequentes recomendações para os abordar. Nessa altura elaborou as seguintes recomendações:
- Todos os Estados Membros da UE e países associados da UE a cessar a abertura de novos estabelecimentos de ensino veterinário na Europa, já que claramente não há necessidade de tais;
- Todos os Estados Membros da UE e países associados da UE a introduzir mecanismos de controlo para limitar o número de estudantes de veterinária para um nível compatível com as instalações de ensino;
- À Comissão Europeia a limitar o apoio financeiro para a construção de novos estabelecimentos de ensino veterinário em países onde não existem tais estabelecimentos.
A FVE concluía que a abertura descontrolada de novos estabelecimentos de ensino veterinário e o acesso ilimitado de estudantes de veterinária aos estabelecimentos de ensino veterinário representa uma ameaça para a qualidade da formação ministrada e, finalmente, para a qualidade do serviço prestado pela profissão veterinária. A OMV, como membro da FVE, conhece bem estes dados e estimativas. As recomendações feitas então, a fim de evitar esta situação, foram também ratificadas pela OMV. Recorremos a estudos oficiais e publicados. Construímos de seguida projeções que tiveram em conta as atuais vagas no ensino dos respetivos países e as variações registadas nos últimos anos.
Os resultados, apresentados de forma gráfica, servirão para apresentar questões consequentes. As respostas poderão ser muitas e variadas, mas tentamos apenas servir de plataforma de lançamento. A classe Médico-Veterinária começa a dinamizar-se na discussão de assuntos do seu interesse. Agradecemos por isso, também, aos colegas que nos ajudaram a compilar a informação que serve de base a este artigo. Este estudo decorre de uma discussão realizada no âmbito de um grupo restrito a Médicos Veterinários numa plataforma de Social Media. A pretensão é a de a generaliza-la ainda mais.
Dados
No estudo da FVE do ano 2000 foram feitas estimativas para o ano 2010 (Figura 1) no qual o “best-case scenario” para Portugal era o de um aumento de 60% na população de veterinários e o “worst-case scenario” um aumento de pouco menos de 120% na população de veterinários. A realidade é que conseguimos superar as piores estimativas e em 2013 atingimos um incremento de quase 140% na população de veterinários em Portugal. No mesmo período (2000-2013) a população nacional aumentou menos de 5%.
Figura 1. Estimativa do incremento da população de Médicos Veterinários da UE no ano 2010 (FVE).
Os autores já solicitaram dados atuais de demografia veterinária à FVE, mas estes ainda não estão disponíveis, pelo que recorremos a fontes heterogéneas incluindo as próprias Ordens Veterinárias dos vários países, publicações estatísticas oficiais e dados da indústria para compilar as tabelas e gráficos deste artigo. Procurámos também obter dados oficiais das populações humanas europeias. As populações animais não dispõem de valores absolutos ou oficiais pelo que optámos pela fonte mais credível (FEDIAF).
O profundo desequilíbrio que Portugal revela na sua demografia de veterinários manifesta-se nos seguintes gráficos que comparam a evolução da população e do número de veterinários inscritos nos diferentes países. Os dados de cada país foram normalizados tomando como base o ano 2000 para revelar variações de magnitude. Os dados mais atuais do número de veterinários dos diferentes países estão agregados no período 2010-2013 devido à variabilidade das fontes.
A Tabela 1 e a Figura 7 resumem os dados demográficos de população e Médicos Veterinários passados, presentes e em projeções futuras da França, Reino Unido, Alemanha, Espanha e Portugal.
O que se pode verificar é uma tendência alarmante para o agravamento do ratio de Médicos Veterinários por cada 10.000 habitantes em Portugal. Rapidamente, os números vão escalar para mais do dobro do registado nos países comparados. Temos atualmente (2013) no nosso país 5,27 Médicos Veterinários por cada 10 mil habitantes, o que representa 80% mais Médicos Veterinários por habitante que a média da França, Reino Unido e Alemanha. Se continuarmos esta tendência, em dez anos iremos ter 120% mais Médicos Veterinários por habitante que estes três países e em 20 anos iremos ter duas vezes e meia mais veterinários por habitante que eles.
É importante destacar também que estes são países que têm o dobro de renta per cápita (PIB) que Portugal. Espanha também se debate historicamente com o mesmo problema mas, aparentemente, foi capaz de dominar esta subida. Nas próximas décadas Portugal irá também ultrapassar amplamente Espanha se nada for feito para corrigir este rumo. Sendo um caso parecido com o português, seria interessante saber como Espanha foi capaz de travar a mesma tendência.
No ano 2013, o número de vagas para o curso de Medicina Veterinária no Ensino Superior Público era de 353 (318 na 1ª fase e 35 na 2ª fase) e no Ensino Superior Privado era de 125, perfazendo um total de 478. Este número muito provavelmente ultrapassa as 500 vagas quando somamos as vagas para candidatos maiores de 23 anos e os licenciados em outras áreas. Estes números chocam porque representam cerca de 10% dos veterinários ativos, pelo que no futuro parece muito difícil garantir empregabilidade, níveis salariais e a solvência de inúmeros CAMV.
Devemos ainda acrescentar que a porção relativa de veterinários de equinos e animais de produção vem diminuindo em Portugal e é bastante menor que nos outros países em comparação. Isto acrescenta pressão ao setor dos animais de companhia, porventura o mais afetado com o excesso de veterinários.
Discussão
Este artigo não pretende ser um estudo definitivo da questão, mas sim colocar à classe médico-veterinária, aos seus representantes e às associações profissionais várias questões para serem analisadas. Compete à nossa Ordem e outras associações profissionais primeiro reconhecer o problema, realizar uma análise objetiva e depois definir uma estratégia conjunta fundamentada em factos com o objetivo de informar e influenciar aqueles que definem as políticas educativas e o seu financiamento. Outras Ordens profissionais, como por exemplo os Médicos, têm conseguido regular eficazmente a oferta educativa para não desequilibrar o mercado.
Este problema é central e prioritário. Devemos concentrar-nos nele de forma a não atomizar esforços, facilitar o consenso e despersonalizar o debate. Outros problemas que preocupam os colegas, como a concorrência ilegal ou desleal, a regulação dos CAMV’s e outros são também muito importantes, mas se não resolvermos primeiro este, de nada servirá tentar corrigir os outros. No Reino Unido, alguns autores afirmaram-se frontalmente contra a abertura de mais vagas nas respetivas universidades. Uma das razões apontadas é o facto de cada veterinário agora demorar mais tempo a construir uma casuística limite, considerada necessária para a sua formação profissional. Acreditamos que esse fator é já sobejamente visível em Portugal, onde cada CAMV verifica um decréscimo das consultas para os mesmos ou mais veterinários. Isso é um risco direto e real para a qualidade do serviço oferecido.
O curso de veterinária é, e sempre será, um curso popular e muito procurado, o que garante muitos estudantes e o financiamento (público ou privado) necessário. Será que as universidades têm como prioridade um número elevado de cursos e vagas para poder garantir o seu financiamento e sobrevivência? Lamentavelmente parecem ter sido estes interesses, e não os da classe dos Médicos Veterinários, a prevalecer nos últimos anos levando a uma situação de sobre saturação do mercado laboral veterinário e consequente pauperização do nosso mercado. No entanto, a OMV continua a manter como objetivo a defesa do interesse dos seus membros e não o das instituições de ensino.
É a nossa responsabilidade e direito instar os nossos representantes a defender os interesses da classe neste tema, influenciando o poder político e a tutela para legislar de forma a garantir a racionalidade no aceso ao curso de Medicina Veterinária, diminuindo o número de vagas e escolas de veterinária para níveis que sejam compatíveis com a nossa realidade demográfica e económica.
Questões finais
Tal como verificado noutros países, urge efetuar um estudo socioeconómico que revele a realidade dos Médicos Veterinários em Portugal, quantificando empregabilidade, taxa salarial, segurança no emprego e emigração. A pressão sofrida pelos CAMV’s devido à atual crise económica, ao aumento da concorrência e ao aparecimento de inúmeras situações ilícitas na prática da Medicina Veterinária também carece de estudo quanto à sua relação o excesso da oferta verificado. Com o estado atual do mercado e com a evolução projetada, acreditamos que importa pedir medidas à tutela para corrigir o rumo. Ou pode a classe veterinária, encabeçada pela OMV, optar por tomar medidas autónomas?
Fontes:
- Veterinary Demography: A Threat To Quality? FVE, 2000
- Relatório de Atividades OMV, 2013
- RCVS Facts UK, 2013
- Démographie professionnelle en France et en Allemagne: queles éléments de comparaison, 2011
- Estadística de Profesionales Sanitarios Colegiados en España, INE 2012
- World Population Review, 2014
- World Economic Outlook Database. FMI, 2014
- Estatísticas OMV, www.omv.pt, 29 de Abril de 2014
- FEDIAF Facts & Figures, 2012
- Veterinary future looks far from rosy. Veterinary Times 43:13 Pg 17, 2013
*Emir M. Chaher – Licenciado em Medicina Veterinária pela Faculdade de Ciências Veterinárias da Universidade de Buenos Aires, Argentina em 1997. Fundador do Grupo IberoVet. Diretor Clínico da Clínica Veterinária de Alcochete e da IberoVet – Equine Veterinary Services.
*Paulo Alexandre Gomes Pereira – Licenciado em Medicina Veterinária pela Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Técnica de Lisboa, em 1996. Exerce funções em Clínica de Animais de Companhia, em Portugal e no Reino Unido. Pós-Graduação e experiência em Gestão de CAMV.