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Medicina de canis e gatis

Admissão livre e condicionada no shelter management

Construção do CRO de Sines deverá estar terminada em fevereiro de 2020

Adicionalmente à nova política de esterilização dos animais adotados que temos vindo a desenvolver, muitas outras políticas podem, aliás devem, ser associadas para desenvolver e replicar exemplos e experiências já desenvolvidas noutros CRO´s (centros de recolha oficiais ou public animal shelters). No nosso entender, o mesmo problema de sempre, que começou especialmente a tocar-me há 14 anos quando iniciei as minhas funções técnicas na Câmara Municipal de Coimbra, está constantemente em voga: as entradas de animais (ou os pedidos de entradas) que ultrapassam largamente a nossa capacidade de alojar, resultando em sobrelotação, altas taxas de transmissão de doenças, elevada instabilidade emocional nos animais (lutas mais frequentes), e consequentemente aumento das eutanásias de animais doentes por doenças nosocomiais (doenças contraídas já dentro das instalações) e, mais grave ainda, a eutanásia de animais saudáveis de modo a ganhar espaço para novas entradas ditas “urgentes” ou “inadiáveis”.

A proposta que apresentei, ainda em 2008, para iniciarmos um programa ativo e consolidado de esterilizações massivas aos animais adotados, sem possibilidade de “escolha”, disponibilizando todo o meu know-how nos procedimentos cirúrgicos e anestésicos, apresentando propostas de baixo custo, ficou a aguardar a evolução dos tempos, já que terá sido talvez demasiado inovadora e visionária para a época.

Finalmente, depois de inúmeros animais eutanasiados, com a mudança política nas eleições autárquicas e consequentemente na nossa Vereação, iniciou-se em 2014 uma nova valência do Canil Municipal de Coimbra, com mudanças de políticas/ procedimentos que vieram promover um avanço considerável no bem-estar animal (BEA) dos animais abandonados de Coimbra.

 

A página no Facebook, e a possibilidade de permitirmos a existência de FATA´s – Famílias de Acolhimento Temporário de Animais – (ideias já anteriormente construídas, mas que estiveram a aguardar novas mentalidades), a maior flexibilidade e simpatia no atendimento (este é um ponto forte dos nossos colaboradores administrativos), veio dar uma reputação bem positiva a um local que, em quase todos os concelhos, se tenta esconder. Ainda assim sei que muito há para fazer, não só estruturalmente, mas também no ponto de vista funcional. A solução estrutural implica grandes orçamentos, o que a torna de mais difícil aplicação. No entanto, a resolução funcional está diretamente relacionada com os recursos humanos e mudanças ou melhorias nas políticas existentes.

Aprender a lidar com animais abandonados

 

Poucas foram as alterações nos recursos humanos atualmente em funções neste Serviço Médico Veterinário (SMV), mas as poucas que existiram conseguiram fazer muita diferença. No meu entender ainda há que limar arestas e fazer melhores “castings” porque lidar com animais maltratados, abandonados e sem lar, requer muito mais do que lavar canis ou gatis. É uma função tão específica que noutros países, nomeadamente EUA e Brasil, é necessário possuir, com aprovação, um curso de formação específico. Requer sensibilidade e, diria mesmo, um jeito natural. E isto é um ponto crítico, difícil, quase tabu, que tem que ser discutido e melhorado. Porque são as pessoas que fazem as instituições.

No ponto de vista de entrada de animais também há muitos procedimentos já praticados há alguns anos noutros CRO´s (Centros de Recolha Oficiais ou public shelter animals, considerando que a medicina de canis e gatis é demasiado recente em Portugal para ir buscar exemplos, apesar de felizmente ainda haver dois ou três bons exemplos), que tal como este têm uma capacidade limitada de alojamento. Atrevo-me a dizer que, em 2010, neste Centro de Recolha foi construído o novo pavilhão da adoção, que apesar de apenas dispor de mais dez canis amplos, não resolveu o problema da sobrelotação. Um bom exemplo é o Canil de Sintra, que apesar de possuir uma boa gestão interna, boas políticas de raiz, elevado zelo profissional e ter uma ampla capacidade de alojamento (capacidade para cerca de 260 cães) continua a ser pequeno para a quantidade de entradas de cães. Este é um bom exemplo de que não chega construir e ampliar as instalações se as políticas, ou melhor, as mentalidades da sociedade se mantêm velhas e obsoletas ou não acompanham a evolução e se não se educa a população.

 

Ouvindo opiniões de pessoas mais velhas, mais sábias, não só pela experiência de vida, como pela experiência de gestão pública, há que visitar e/ou conhecer, investigar outras realidades ou maneiras de atuar porque o nosso problema – o problema da sobrepopulação de cães e gatos – é extensível a todo o mundo. Não há que inventar, há que tentar aplicar, com adaptações, diferentes políticas que possam resultar melhor, se as atuais não têm mostrado resultados satisfatórios.

Listas de espera e entradas condicionadas

 

A nossa visita ao Canil de Sintra e ao Canil Intermunicipal de Sátão teve em conta esta questão, mas muitos outros devem ser visitados porque se aprende e se pode replicar sempre qualquer coisa. O meu ávido desejo de desenvolvimento curricular e profissional, em contínuo, fez-me procurar outras possibilidades, nomeadamente nos EUA, em que esta especialidade da Medicina Veterinária já passou a ser curricular no ensino superior da Medicina Veterinária, o que ainda não acontece no nosso país. Encontrei uma perspetiva que me pareceu perfeitamente adaptável à nossa realidade estrutural e humana – a possibilidade de instituirmos uma “lista de espera para entregas por particulares” (ver exemplos de Erie County, New York e Douglas County, Nevada). Aí os Canis Municipais (public shelters ou public animal control) praticam o que se chama por “Entradas Condicionadas”.

Como em todas as mudanças substanciais houve “revoluções” e “frustrações” iniciais, considerando que até a uma determinada data ambas as instituições eram de “Admissão Livre”. No entanto, com o tempo, a comunidade começou a aceitar e a perceber a razão da existência da “Lista” – simplesmente tem como objetivo salvar vidas. A criação da “Lista”, bem explicada e com simpatia, era um meio de eliminar a necessidade de eutanasiar animais saudáveis para “arranjar” espaço para colocar os que se pediam para dar entrada, mantendo-se os animais no seu habitat, consequentemente mais saudáveis, enquanto se diligenciavam esforços para a sua recolocação numa nova casa. E afinal que dono consciente não quer isto para o seu animal?

As estatísticas apresentadas pelo Douglas Shelter Municipality mostram que 86% das pessoas que tinham colocado os seus animais na “Lista de Espera” conseguiram elas próprias arranjar novos lares para os seus animais!

Discutiu-se no artigo que li a possibilidade das pessoas abandonarem os seus animais após a sua colocação na “Lista de Espera”. O responsável por este “abrigo de animais” respondeu que houve um caso de abandono de um animal, mas que devido aos registos fotográficos do animal e identificativos do seu detentor foi possível referenciar o caso para as Autoridades Policiais para a aplicação da lei. Na realidade, a dicotomia “admissão livre” e “admissão condicionada” mantém-se como uma das grandes controvérsias na gestão de “abrigos” (tradução à letra de shelters).

Temos que entender as normas culturais em que estamos inseridos e as políticas tendenciais à evolução de mentalidades que são lançadas atualmente, sendo um bom exemplo a Lei nº 69/2014 de 29 de agosto, sobre a criminalização dos maus tratos a animais. Sem querer fazer comparações insensatas, aos olhos de quem não sente um animal de companhia como um membro adotado pela família, a sociedade portuguesa é altamente protetora do encorajamento da responsabilidade parental. No campo dos animais de companhia (e ainda mais no campo dos animais de produção) ainda há muito que crescer e evoluir em termos de responsabilidade. E em vez de se encorajar a responsabilidade do dono, e da comunidade em geral, para providenciar um caminho seguro, repudiando-se o abandono (excepto o repúdio manifestado e legislado nos diplomas legais, que dificilmente são fiscalizados e/ou dão exemplos de boas penalizações), a sociedade tradicional fez o caminho oposto e encorajou a irresponsabilidade, mesmo que o faça de um modo dissimulado, ou sem intenção.

A mensagem social que se transmite num abrigo de “Admissão Livre”, como presentemente o Canil de Coimbra (tendencialmente a sofrer a devida alteração para “Admissão Condicionada”) é que levar os seus animais para o Canil é a melhor coisa a fazer quando o dono (detentor ou cuidador) tem dificuldades financeiras ou quando o animal tem problemas comportamentais ou outros. É certo que é preferível que ao abandono “puro e duro”, mas é muito pouco. Assim, de cada vez que alguém entra nos serviços administrativos a dizer “quero entregar o meu animal”, responde-se “Ok. Só precisa de preencher um papel e pagar a respetiva taxa” e de seguida chama-se um tratador para ir buscar o animal ao carro para o colocar num canil. Fácil, certo? Este modo de atuar não estará a encorajar a irresponsabilidade do detentor? Não estará a facilitar demasiado as coisas? Afinal de quem é a responsabilidade de providenciar um novo lar para aquele animal? É de quem não o conhece? Não sabe nada sobre a sua história de vida? Não sabe onde viveu, em que condições, que educação teve, nem o que gosta de fazer ou comer, nem se se dá bem com crianças ou outros animais, se tem “taras” ou “fobias”?

Isto é um ciclo vicioso – as políticas de “Admissão Livre” encorajam as pessoas a ser irresponsáveis e os serviços dos canis reclamam que têm necessariamente “Admissão Livre” porque as pessoas são irresponsáveis. Os canis tradicionais podem ir ainda mais longe, ao esconder as estatísticas e não dizer às pessoas que os seus animais provavelmente irão ser abatidos por sobrelotação. Uma das formas de encorajar a responsabilidade do detentor é envolvê-lo na procura de um novo lar para o seu próprio animal. Deste modo não só vai perceber as dificuldades que também nós temos, como vai permitir um melhor enquadramento do animal na nova casa. A existência de um programa de marketing, nomeadamente na comunicação social ou nas redes sociais, facilita a publicitação dos animais e também mostra aos donos métodos para eles próprios publicitarem e serem empreendedores nesta causa.

Um programa de voluntariado que promova estes animais, e que até pode ajudar a fazer boas fotografias e textos, pode contribuir positivamente para que a “Lista de Espera” tenha sucesso e reduza a entrada de animais por particulares. Outra possibilidade de encorajar a responsabilidade dos donos através da monitorização das “Listas” é colocando “marcas” ou “rótulos” nos detentores ou nos animais, como exemplos: “adoção urgente”, “dono irresponsável”, “mau cuidador”, “possíveis problemas comportamentais”, “bom para guarda”, “possível abandono eminente”, etc… A resposta apropriada para o abandono de animais não é dizer “As pessoas são irresponsáveis e por isso temos que ter “Admissões abertas” para acomodar a sua irresponsabilidade”. A resposta correta vai no sentido de tratar o abandono como um crime sério (e já temos boa legislação para isto) e reforçando e aplicando a lei contra o mesmo.

 

 

Admissão Condicionada

A “Admissão Condicionada” é apenas uma pequena parte da onda de mudanças que devem ocorrer para transformar os “abrigos” municipais em locais em que 90% ou mais dos animais entrados saem pela “porta da frente”. Na minha opinião não se deve ter receio de adotar a “Admissão Condicionada” e instaurar a “Lista de Espera”. Em primeiro lugar esta política é a mais correta do ponto de vista da eficiência e da gestão. Como segundo ponto valorizo que importa promover a reculturação promovendo a mudança nas normas culturais vigentes sobre o dever da responsabilidade perante a detenção de um animal, indo assim ao encontro das recentes publicações legislativas. Terceiro ponto a favor: temos as estatísticas que mostram que afinal os detentores acabam por responder positivamente a este caminho.

A inovação pode levar ao caminho certo, mas é preciso fazer reflexões com a frequência necessária, no sentido de perceber se houve ou não melhorias a médio ou longo prazo. É sempre possível mudar, pode ser difícil implementar as mudanças, mas os benefícios podem surgir e sempre que haja pontos críticos a melhorar, as políticas devem ser revistas e reestruturadas, sem medos ou receios de errar, porque só não erra quem não faz. No seguimento de providenciar um melhor serviço público, importa que se torne obrigatório um sorriso, maior simpatia e hospitalidade, a existência de um livro de elogios (além do obrigatório livro de reclamações), cumprimento de horários estipulados e publicitados, nomeadamente das vacinações, das adoções e das visitas aos fins-de-semana.

Outras regras de bom atendimento ao público, ou simplesmente de respeito ao próximo, implicam o olhar nos olhos, tratar com respeito e equidade, respeitar colegas e locais de trabalho, cumprir normas técnicas em vigor, cumprir e vigiar o cumprimento das normas mínimas de bem-estar animal, ter o discernimento suficiente para conhecer o comportamento animal de modo a evitar conflitos entre animais quando soltos em simultâneo para o “momento de exercício e socialização” (por exemplo, enquanto são realizadas as higienizações dos alojamentos).

Recursos humanos

Entendo que não podemos deixar fora da discussão que os recursos humanos disponíveis por norma são também críticos, sendo a formação, a vocação e a motivação, fatores que podem fazer a diferença em todo o trabalho de grupo implícito num centro de recolha de animais. Na realidade, a carga negativa imposta, desde há longa data, ao vulgarmente designado “canil municipal” por si só traduz-se num estado de desmotivação para os trabalhadores que, com uma grande e difícil carga emocional, têm que lidar diariamente com um constante influxo de animais, alguns desprezados, deixados ou abandonados em situações desumanas, outros muito traumatizados, animais assilvestrados, animais que, por uma razão ou outra, não se enquadram na categoria dos “adotáveis a curto ou médio prazo”, e os laços afetivos com muitos animais que invariavelmente vão sendo criados, e vão exercendo uma pressão passível de conflitos, quando decisões sanitárias ou políticas têm que ser tomadas.

Infelizmente, o número de lares que procuram um animal de companhia sem olhar à raça, à beleza, ao porte é insuficiente para o número de animais que aguardam um novo detentor. Todavia, todos devem ser respeitados e neste prisma, os médicos veterinários que exercem funções em centros de recolha de animais, no âmbito da gestão da saúde animal, física e mental, têm um papel preponderante não só pela sua atuação direta e pelo exemplo que representam, como pela possibilidade que têm em poder transmitir os seus conhecimentos, com formações contínuas, de modo a que também o pessoal que com eles trabalha possa enveredar e contribuir para um melhor caminho.

A dicotomia admissão livre e admissão condicionada no shelter management

Mariana Portugal, Mestre em Medicina Veterinária,

Centro Municipal de Recolha Oficial de Animais de Companhia de Coimbra, Câmara Municipal de Coimbra

 

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